sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

CONVITE - COLETÂNEA NA PAISAGEM DOMÉSTICA - PORTAL CRONÓPIOS

Prezados leitores:

Convido para leitura de uma coletânea de meus poemas entitulada Na paisagem doméstica
no Portal Literário Cronópios. http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4845
Aproveito para desejar à todos um fim de ano de descanso e harmonia.
Muita saúde, felicidade e poesia em 2011.
Muito amor e atitude ética.
Beijo para todos.

Jorge Elias Neto

domingo, 12 de dezembro de 2010

Nydia Bonetti

havana



na rota dos meus sonhos
ainda te encontro
con sus guitarras y cantos
sus poemas de arcilla y piedra
minerales y hojas
ojos de tabaco y doçura
manos de esperanza
fuegos de ternura
habana
(reconheço-me ilha)
cenizas de lo que soñé



setembros


o tempo
corrói a vida pelas bordas
insaciável
já devorou
mais da metade do que sou
[...ou do que fui?
e nos setembros
ele arranca pedaços
inteiros



Nydia Bonetti, 1958, do interior de São Paulo, poeta e engenheira civil, tem poemas publicados na Revista ZUNAI e outras mídias eletrônicas. Bloga no LONGITUDES, trabalha atualmente no projeto do seu primeiro livro, ainda sem título definitivo.
blog: http://nydiabonetti.blogspot.com/

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

FERNANDO PESSOA


A loucura chamada afirmar, a doença chamada crer, a infâmia chamada feliz - tudo isto cheira a mundo, sabe à triste coisa que é a terra.
Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, porque não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto numa manhã de rosas, com Maio nas nuvens brancas e o sorriso das virgens nas quintas afastadas. Tua ânsia morra entre mirtos, teu tédio cesse entre tamarindos e o som da água acompanhe tudo isto como um entardecer ao pé de margens, e o rio, sem sentido salvo correr, eterno, para marés longínquas. O resto é a vida que nos deixa, a chama que morre no nosso olhar, a púrpura gasta antes de a vestirmos, a lua que vela o nosso abandono, as estrelas que estendem o seu silêncio sobre a nossa hora de desengano. Assídua, a máguo estéril e amiga que nos aperta ao peito com amor.
Meu destino é a decadência.
Meu domínio foi outrora em vales fundos. O som de águas que nunca sentiram sangue rega o ouvido dos meus sonhos. O copado das árvores que esquece a vida era verde sempre nos meus esquecimentos. A lua era fluida como água entre pedras. O amor nunca veio àquele vale e por isso tudo ali era feliz. Nem sonho, nem amor, nem deuses em templo, passando entre a brisa e a hora una e sem que soubesse saudades das crenças mais bêbadas, mas escusas.


Fernando Pessoa
(Livro do desassossego - Companhia das Letras)

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Massa


Para uns,
ruínas – degredo.
Para outros,
planície Divina,
colinas de nuvens.
Eu,
banido pela consciência,
permaneço – altivo.
Massa amorfa
dentre os dejetos
do Universo.

 
 
Jorge Elias Neto

sábado, 27 de novembro de 2010

das sombras

A mínima distância
já é um desencontro.

(Vestia seu corpo
com as rendas da íris...)

Restam noites de dilatadas pupilas
a vasculhar indícios do derradeiro gozo.

No horizonte dos lençóis,
a sombra da silueta persiste.

Como persiste os miasmas
dos pés enlaçados.

Só miragem na depressão do leito.
E um em torno de sombras devassas.


Jorge Elias Neto

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Fotografia






Rosto obliquo – velado
Desvio na fenda da fala
Gestos sem crias
Vazias mãos incestuosas
Obscuras manchas
na pele clara
Mãos em posição de intriga
Coto de vela escorrida
nos cabelos de fogo
Ombro suspenso,
derradeiro encosto
Olhar fitando intervalos
Sob um fundo de rosas
o sol posto

Jorge Elias Neto

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Antonio Carlos Secchin

Não, não era ainda a era da passagem
do nada ao nada, e do nada ao restante.
Viver era tanger o instante, era linguagem
de se inventar o visível, e era bastante.
Falar é tatear o nome do que se afasta.
Além da terra, há só o sonho de perdê-la.
Além do céu, o mesmo céu, que se alastra.
num arquipélago de escuro e de estrelas.

(Antonio Carlos Secchin in: Todos os Ventos - 2002 - Ed. Nova Fronteira)

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Romério Rômulo


"vejam bem ” ( para zeca afonso )



é difícil o caminho do corpo,
mais estranho é o caminho do pão.
são estradas, vieses malditos
repisados e feitos à mão.

as estradas do corpo, aventura,
velhas carnes postadas no chão
são estradas ardidas, agrura,
entranhadas no teu coração.

quando o vale da noite ensurdece,
acontece na vida um desvão,
todo o pão se resvala na noite
que te sobra na palma da mão.


romério rômulo, julho/2010

Romério Rômulo nasceu em Felixlândia, Minas Gerais, e mora em Ouro Preto, onde é professor de Economia Política da UFOP. Prefaciou a primeira edição assinada das poesias eróticas de Bernardo Guimarães, “O Elixir do Pajé” (Dubolso, 1988), mais de 100 anos depois da edição original. Já publicou diversos livros, como “Só pedras no caminho pedras pedras só pedras nada mais” (Lemi, BH, 1979), “Anjo Tardio” (Edição do Autor, Ouro Preto, 1983), “Bené para Flauta e Murilo” (Edições Dubolso, Sabará, 1990) e a caixa “Tempo Quando” (contendo 4 livros em 2 volumes, Dubolso, 1996). Seu último livro é “Matéria Bruta” (Altana, SP, 2006). Atualmente, prepara um livro de poemas sobre o amor.



Contato: romerioromulo@hotmail.com

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Borgiana II


Repousa o veludo da pele
tigre selvagem,
nessa distante gleba
a qual chegastes por caminhos incertos.

Lembranças grisalhas, velho tigre ...
Compartilho teus dentes nada castos...

Restou-nos o passado...
E suas páginas
de bordas marcadas.
Sempre reviradas, velho tigre,
para não esquecer de outros dias.

(O que nos resta quando o orvalho se perde no esquecimento?)

Nas catedrais, teu ouro roubado.
Depois raspado dos pilares
para cobrir os dentes.
Como se sorrir dourado
os fizesse arremedo de gente...

(Quanto de tua mordedura permeia nossos sonhos?)

Não se traduz o mistério de tuas escápulas,
nem a névoa em teus olhos...
Quem sabe a milonga nos taquarais
ou tuas listras obliquas,
resistam ao imprevisível fim.

Tardam as horas ...
Cada expectativa tem teu cheiro.
E se esforça
para caber no poema.

Jorge Elias Neto

Vitória, 29 de outubro de 2010

terça-feira, 26 de outubro de 2010

CONVITE PARA LEITURA - PORTAL CRONÓPIOS DE LITERATURA BRASILEIRA





Convido para leitura do texto com poemas que
publiquei no Portal Cronópios de Literatura Brasileira.
Forte abraço para todos.
http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4775

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Íntimo


Ondas guardadas,
não devolvem o gosto de sal
aos lábios despidos
de lembranças.

Deixados sós,
os lábios,
não se desviam do destino.
Mas o súbito tranco
da cancela dos dentes
intimida o deslizar da língua.

Hóstias - estrelas
no firmamento
da boca -
aprisionaram o desejo.

O corpo se abre
e se fecha
à partir da boca.

Os lábios escancaram
um vermelho escandaloso;
                                   e se cala.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Borgiana I


Atiro os cacos
do espelho partido.
Busco-os no chão,
onde as imagens já se dispersaram.


Com o que resta na moldura,
brinco de cortar os dedos,
encaixando respostas
no rosto trincado.


E se, no entanto, a figura
se assemelha ao medo,
remisturo todo
o ser desfigurado.


Pois a faina louca
de remexer segredos
fez-me encontrar as sombras
dos dias passados.


Jorge Elias Neto


Vitória, 05 de outubro de 2010

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Despedida

Existe uma impossibilidade
nas flores que brotam
na boca da menina adormecida.

Mas a menina apenas dorme
com a ilusão do beijo
brotando entre os dentes.

Jorge Elias Neto

domingo, 3 de outubro de 2010

Arquétipo – Um facho de luz sobre a sombra

"Nenhuma circunstância exterior substitui a experiência interna. E é
só à luz dos acontecimentos internos que entendo a mim mesmo. São
eles que constituem a singularidade de minha vida".
Carl Gustav Jung


                              O que se dispersa além dos olhos

                              diz do vacilo de não se ter sorvido o tempo.

Estarei na ultima idade.
Quando ruir a biblioteca
não restará mais nada.
Sem nenhum escrúpulo, já estarei
a mijar nas calças todas as cervejas
que pensei esquecidas.
Aprenderei que não só a memória,
mas também a bexiga dos velhos,
despejam seus guardados...
E como ancião,
terei em meus ouvidos um ruído agudo
a dizer da morte ...
(esse crepúsculo atravessado na garganta).
Mas minha memória recente, sempre desatenta,
privilegiará as flautas de antanho,
olvidando a impertinência dos últimos segundos.
Saberei que retive com primor
uma certa dignidade burguesa.
Execrada nos versos.
Denunciada no franzir da testa.
Em minha face retalhada,
Será definitivo
o rendado da ironia.
Recearei de alguns saberes, sem dúvida.
Mas um cristão tardio, espero não ser.
Lembrar: não fechar o ciclo previsível de tantos homens.
Não me permitir, ao menos, essa contradição.


Jorge Elias Neto

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Um poema a ser escrito


                              Foto: Luis Henrique Borges

Que homem ruidoso medrou minha carne?

domingo, 26 de setembro de 2010

O poema acima de mim

Se disser tudo,
me restará apenas a última mentira.


Mas rente ao chão,
toda mentira resvala  na inutilidade.


Jorge Elias Neto

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Desejo


Rasgo-te entre os nós,
para ver desfiar tuas esperanças.

Esvazio a palavra,
para te corroer as entranhas.

Busco assombrar-te em teus sonhos,
para assim te sugar a alma.

Em tí despejo os dejetos de minhas vidas,
para te ver culpado pela minha existência.


Grito enlouquecido as minhas trôpegas verdades,
para que se faça cruel o teu destino.

Imagino e sorrio como o falso profeta,
para te ensandecer com verdades distorcidas.

Uso a sedução dos demônios convictos,
para te assinalar o abismo das excrescências humanas.

Por fim te beijo.....
O marco final do falso testemunho do que me fiz por teu amor.




Jorge Elias Neto - 2005

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Lente

FOTO: Luis Henrique B. Borges


Lente


Era outono...


Duas meninas
deixaram suas casas para trás,
na lonjura da esquina.


Eram crianças...


No pires dos olhos
ainda não transbordara a mentira;
ela apenas rodopiava...


E, por não bastar o milagre
da inocência,


era outono...

 
 
(Rascunhos do absurdo - 2010)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Caligrafia do bruto



                                      Para Sakineh Mohammadi-Ashtia



                 Quem  não tiver pecados que atire a primeira pedra!


Pedra atirada.
No ar,
uma réstia
da caligrafia do bruto.

Apedreja-se com força.
Quem sabe assim
desencarnam as frustações!...

Reconheço o homem na pedra.
Cada pedra trás seu nome.
A figura de um deus incompleto,
incoerentemente arremessada,
invalida a palavra: Humanidade.

Mas aqui,
neste instante,
em conformidade com os dogmas,
corrompe-se a alma,
deforma-se o molde.

A estranheza de lapidar o corpo.
A ironia de deformar o nome
do delicado gesto do artesão.

Garganta seca de suplicas.
Olhos vazados por lascas.
O ventre fendido
Já não tem fome de amor.

Despedaçado,
jaz o corpo da criatura humana,
jaz a beleza.
Sob o lençol branco maculado
pelo sangue dos opressores,
desfeito,
o arco dos lábios.

A mais terna face desfigurada.
Deixaram-na de lado;
é impura.
Já não se presta mais a prazeres
a carne macerada.



Jorge Elias Neto

domingo, 29 de agosto de 2010

Luz e sombra, uma questão semântica?


Luz e sombra, uma questão semântica?




Hoje sei que também a sombra se recolhe.

Resfria o solo

para o corpo que tomba,

no interminável instante

do anônimo suspiro.

O baque expande

as possibilidades da sombra.

Que se debate,

e rompe, deparando

num deslumbramento, com o Sol.

O paradoxo da despedida.

Parte se dispersa.

Parte se integra aos mortos.

A sombra debruçada

na mansarda da eternidade.

(Os ossos da baleia)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010




Na paisagem doméstica



E se dissesse: fica ...
Varreríamos de vez nossas obscenidades,
ou deixaríamos estendido
sob o chão de casa
esse falso tapete de culpas?
Vê essas garrafas enfileiradas?
Os silêncios que rasguei das paredes,
colei nos gargalos em que me perdi.
Na profundeza úmida,
resta, olvidado, seu nome.

(Os ossos da baleia



domingo, 22 de agosto de 2010

Mário Faustino


O HOMEM E SUA HORA


Et in saecula saeculorum: mas
Que século, este século - que ano
Mais-que-bissexto, este -
Ai, estações -
Esta estação não é das chuvas, quando
Os frutos se preparam, nem das secas,
Quando os pomos preclaros se oferecem.
(Nem podemos chamá-la primavera,
Verão, outono, inverno, coisas que
Profundamente, Herói, desconhecemos...)
Esta é outra estação, é quando os frutos
Apodrecem e com eles quem os come.
Eis a Quinta estação, quando um mês tomba,
O décimo-terceiro, o Mais-Que-Agosto,
Como este dia é mais que Sexta-feira
E a Hora mais que Sexta e roxa.
Aqui,
Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo,
Venho a Delfos e Patmos consultar-vos,
Vós que sabeis que conjunções de agouros
E astros forma esta Hora, que soturnos
Vôos de asas pressagas este instante.
Nox ruit, Aenea, tudo se acumula
Contra nós, no horizonte. As velas que ontem
Acendemos ou brancas enfunamos
O vento apaga e empurra para o abismo.
As cidades que erguemos, nós e nossos
Serenos ascendentes se arruinam
(Muros que escravos levantamos, campos
Ubi Troja - Nossa Tróia, Tróia! - fruit ...)
E no céu onde a noite rui só vemos
Pálidos anjos, livros e balanças,
Candelabros, cavalos, crocodilos
Vomitando tranqüilos cogumelos
Róseos de sangue e lava - bestas, bestas
Aladas pairam, à hora de o futuro
Fazer-se flama, e a nuvem derreter-se
Em cinza presente.- Vê, em torno
De mesas tortas jogam meus sonâmbulos,
Meus líderes, meus deuses. Como ocultam
As cartas limpas, como atiram negros
Naipes no vale glauco de meu sonho!
Erza, trazem mais putas para Elêusis
E hoje Amatonte é todo o vasto mundo:
Prostitutas sagradas! - Se esta carne
Demais sólida pudesse dissolver-se,
Derreter-se e em rocio transformar-se!
Príncipe louro, oh náusea, proibição
Do mais ilustre amor, oh permissão,
Oh propaganda santa do mais rude!
L'amor che move il sole e l'altre stelle
Aqui parou, em ponto morto. Nem
Cometas hoje aciona, ou gestos de
Ternura move rumo aos eixos trêmulos
De seres enlaçados; nem desperta
Encantados centauros de seu sono.
Amor represo em ritos e remorsos,
Eros defunto e desalado. Eros!
(...)
Aqui devo deixar-te, Herói. Retiro-me
Para uma ilha, Chipre, onde nascido
Outrora fui, onde erguerei não uma
Turris ebúrnea, torre inversa, torre
Subterrânea, defesa contra as pombas
Cobálticas, columbas de outro Espírito -
Torre abolida! No marfim que leves
Lunares unicórnios cumularam
Em cemitérios amorosos, eu,
Pigmalion, talharei a nova estátua:
Estátua de marfim, cândida estátua,
Mulher primeira, fêmea de ar, de terra,
De água, de fogo - Hephaistos, sobe, ajuda-me
A compor essa estátua; fácil corpo
Difícil Face, Santa Face - falta
O sopro acendedor de tua esperta
Inspiração... à noite, enquanto durmo,
128 Cava-lhe, oh coxo, o gesto e o peito, pede
À deusa tua esposa dê-lhe quantos
Encantos pendem de seu cinto. Phanos,
Phanos, imagens de beleza, chagas
Na memória dos homens... pede a Hermes
Idéias que asas gerem nos tendões
Das palavras certeiras - logos, logos
Carregando de força os sons vazios -
Dá-lhe tu mesmo, Fabro, o mel, a voz
Densa, eficaz, dourada, melopaico
Néctar de sete cordas, musical
Pandora de salvar, não de perder...
Orfeu retesa a lira e solta o pássaro.
Pronta esta estátua, agora, os deuses e eu
Miramos o milagre: branca estátua
De leite, gala, Galatéia, límpida
Contrafação de canto e eternidade ...
(...)
Vai, estátua, levar ao dicionário
A paz entre as palavras conflagradas.
Ensina cada infante a discursar
Exata, ardente, claramente: nomes
Em paz com suas coisas, verbos em
Paz com o baile das coisas, oradores
Em paz com seus ouvintes, alvas páginas
Em paz com os planos atros do universo -
(...)
Vênus fará de teu marfim fecunda
Carne que tomarei por fêmea, carne
Feita de verbo, cara carne, mãe
de Paphos, filho nosso, que outra ilha
Fundará, consagrada a tua música,
Teu pensamento, paisagem tua.
Ilha sonora e redolente, cheia
De pios templos, cujos sacerdotes
Repetirão a cada aurora (hrodo,
Hrododaktulos Eos, brododaktulos!)
Que Santo, Santo, Santo é o Ser Humano
Flecha partindo atrás de flecha eterna -
Agora e sempre, sempre, nunc et semper...

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poema

Nada saberei dizer de tuas agruras.
A fenda obscura de teu beijo cala;
é ironia pura.
Disfarça a dura pele que trazes
a sustentar a boca
cariada de desejos.

Lembrarei apenas a distraída forma
que contornou certa manhã meus desencontros.
E percorreu-me afoita a alma,
e num enlace torto, desvendou meus medos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Hilton Valeriano




O JANSENISTA

A promiscuidade dos séculos.
Estar morto e não sabê-lo.


PASCAL


Ser e não obstante sucumbir
ante razões que não justificam
a recusa de ser perecível.


CIRCUNSTÂNCIAS

Vês a aparente necessidade de todas as coisas?
Aceite-as em sua fragilidade essencial.

Acolhimento e recusa aguardam incautos andarilhos.

Vês a perplexidade de todos os fatos?
Aceite-os em sua precária alegria de ser.

Resignação e esquecimento aguardam altivos andarilhos.

Acaso reclamas os despojos de tua derrota?
Soma de nulidades!

Todas as circunstâncias são inelutáveis.


Hilton Valeriano. Formado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Residente em Hortolândia-SP. Tem poemas publicados nas revistas Zunái, Germina, Sibila, Jornal de Poesia, Veropoema, A Cigarra, Diversos e afins. Edita o blog Poesia Diversa:http://poesiadiversidade.blogspot.com

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

POMPEI


Foto: grávida - Pompéia


Revisito o silêncio das trevas.
Sonhos adormecidos,
desfeitos por gestos
que precedem a consciência.
Sigo nos séculos,
interrompido no ventre da mãe.
Restos calcinados,
dispersos, estremados,
entrecortados pelo espanto.
O Céu sabe das cinzas.
Sempre soube...
E aproveitou-se da inocência
dos que não me conheceram
para dizer que me negaram a existência
ao renegar o Deus, o Cristo.
O Céu, criação humana, é ilusório.
Não este céu furioso,
de fuligem e chamas;
este é terreno, pragmático,
irrespirável,
eficiente em devolver à Terra
suas entranhas.
Não este céu preciso,
entornando água,
moldando,
fazendo onipresente
o ventre que me gerou.
Estou onde não existo.
Persisto.
Desafio o intransponível tempo
nesse ventre vazio
que seu olhar disperso fita.
Parto contigo.
Em sua memória o calor da sombra que não fui.
Assim o caos, serenamente,
retingirá de verde o olhar baço.
Estou além do pretenso molde
que permaneceu guardado pela redoma de vidro.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Os ossos da baleia (Fragmento)


XXIV

Eis a introdução não escrita.
Alijada da obra.

Pensá-la, virou um hábito de reinicio;
pausa no entreposto das suposições.

Passado?
Mas os tomates podres são de um vermelho tão sincero...

(do livro Os ossos da baleia – inédito)

terça-feira, 27 de julho de 2010

Silvério Duque



LÚCIFER
SOBRE UM POEMA DE MIHAI EMINESCU


à Cristina Nicoleta Mănescu, por sua história.


Sobrou de toda mágoa – e destas ânsias –
este anjo cujos olhos renasciam
entre os vôos que, nas asas, se insurgiam
por entre os céus sem fim e sem distâncias.

Ele girou em torno de seu rosto
num estertor de infinito que o nutria,
e, na manhã reescrita que o seguia,
vi a rosácea inconsútil de um sol-posto.

O anjo, de asas de sombra e luz que medra,
deixou seu nome em tudo quanto existe,
por ser, entre as estrelas, a mais triste.

Tudo que o anjo quis, perdeu na queda...
O ardor pelo que morre e o rosto terno
de alguém que se cansou de amar o Eterno.

(do livro Ciranda de sombras - inédito)


SONETO

Que sabes tu dos frutos, das sementes,
da dureza das flores contra o vento?
A aurora vem tragar a noite espessa
de onde brotou, sem dores, o teu grito.

Se a afirmação do amor nos aborrece,
morrer é mera vocação dos vivos,
pois, no morrer de tudo, há um recomeço.
Não queiras mal ao tempo ou ao espanto;

não queiras mal ao grão, à terra escura...
Que sabes tu das trevas ou da carne?
Que sabes tu das noites, dos princípios?

Hoje, é chegado o tempo dos retornos
e toda forma espera o seu ofício
como o vaso existente em todo barro.

(do livro A pele de Esaú - 2010)



SONETO

E o que eu adoro em ti é a tua carne,
porque tudo o que é vivo se deseja;
assim, desejo em ti o meu tormento
que há-de crescer na proporção do tempo.

O que eu almejo em ti é a tua sombra,
pois toda boca habita as mesmas vozes
que hão-de tecer com gritos o teu nome
na tarde azul tragada pela noite.

Beijo o teu rosto como se existisse
algum lugar pr’além do Precipício,
e, junto ao gosto de teu lábio esquivo,

uma palavra, sobrescrita em sangue,
há-de adornar o verso em que eu me esqueço
e há-de extirpar, do amor, a fúria imensa.

(do livro A pele de Esaú - 2010)


SILVÉRIO DUQUE – Feira de Santana, Bahia, aos 31 de março de 1978. Sua primeira grande paixão foi a música, a qual exerce profissionalmente desde os seus 12 anos, participando, como clarinetista, das Bandas Filarmônicas 14 se Agosto e Maria Quitéria, na cidade de Tanquinho. Mais tarde, coordenará por certo tempo a escola de música da Sociedade Filarmônica Euterpe Feirense, em sua terra-natal. Após trabalhar como desenhista, restaurador e até mesmo como ajudante de mecânico descobre, bem antes de ingressar no Curso de Licenciatura em Letras Vernáculas da Universidade Estadual de Feira de Santana, seu mais verdadeiro ofício: o Magistério. Sua primeira obra publicada foi o opúsculo O crânio dos peixes (Edições MAC/2002), seguindo-se de Baladas e outros aportes de viagem (Edições Pirapuama/2006). Entre um livro e outro, participou de concursos literários, periódicos, bienais e vários projetos musicais e literários. Foi primeiro lugar, na categoria Poesia, da 3ª edição do concurso literário Bahia de Todas as Letras 2007/2008, realizado pelas editoras Via Litterarum e Editus/UESC, com patrocínio da Fundação Chagas. Seu trabalho também é encontrado nas antologias: II Prêmio Literário Canon de Poesia 2009 e Concurso Feirense de Poesia Godofredo Filho, como em vários sites de Literatura espalhados pela Internet A pele de Esaú (Ed. Via Literarum/ 2010) é o seu mais novo trabalho e, segundo as palavras do próprio autor, sua “obra mais madura, até então”. Seu próximo livro, Ciranda de sombras está no prelo.
Blog: http://poetasilverioduque.blogspot.com

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Alvorada



Há dias em que não amanhecemos. Somos ejetados da cama pela lembrança de nossas obrigações. Em dias como esses, confesso perder o senso do ecologicamente correto; demoro-me vaporejando pensamentos debaixo de uma ducha quente.
A pouca luz natural que se esforça em me lembrar que já é dia, é absorvida pelo negro dos azulejos. Lâmpadas apagadas; dia apagado.
São seis horas da manhã _ minto para meu reflexo no espelho.
Rapidamente a névoa recobre o ambiente e embaça o vidro do box. Nesse momento, parece que meu ciclo respiratório só se faz por expirações.
Aprendi a aproveitar para desenhar figuras na transitoriedade do quadro que se apresenta a minha volta: escrevo meu nome, desenho um boneco de cara alegre, faço um circulo perfeito, com um movimento rápido e egocentrado _ artifícios terapêuticos.
Recosto-me na parede e fico deixando a água corrente lavar a minha superficialidade.
Quando já não é mais possível manter-me ali, sem que trinque o relógio, conto até cinqüenta, desligo o chuveiro, e faço amanhecer o dia.

Jorge Elias Neto

terça-feira, 20 de julho de 2010

PEDRO NUNES


SONETOS

III


O meu corpo é ausente do seu corpo,
meu amor: a noite apenas começa
e não é senão o anúncio da dor,
essa dor do furioso cio, etérea

dor. A noite não engana do amor
a fúria mal contornada, a eterna
angústia dos que debruçam famélicos,
sobre o éter, o desejo e o vapor

da nave que flutuou em azuis.
Da sorvência das horas vãs palavras
nada podem. É tudo furta-luz.

O amor prescinde de lavrar a pá
o perfeito verbo: tudo conclui
que o amor é um vento apaziguado.

Pedro J. Nunes é escritor, autor de Aninhanha, Vilarejo e outras histórias, Menino e A pulga e o jesuíta (Prêmio Secult de Literatura Infantojuvenil 2009, a ser publicado em breve). Site: www.pedrojnunes.tertuliacapixaba.com.br .

quinta-feira, 15 de julho de 2010

LAMPEJOS


Desenho: Isadora

Lampejos


O polegar inquieto de Darwin.
A caminhada ofegante de meu pai,
lembrando a loucura do bípede
(e um se [ ... ] que não o trará de volta).
Os mil nomes da beleza.
Uma reviravolta.

Deslumbramentos
e inércia;
sem remorsos.

O refúgio das ruas,
com suas casas e prédios
a dar sentido as calçadas.

Não suportarei perguntar sobre as sobras.
E minha filha a indagar sobre estrelas...

Quando nada se espera, só a ilusão desta taça de vinho.
Só o carinho das mãos de Isadora,
só essa falsa idéia
de continuidade –
que pesa nos ombros de meus filhos.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

4º aniversário da Diversos Afins - Edição especial - Convite



Prezados leitores:

Segue convite de Fabrício Brandão e Leila Andrade - editores da revista eletrônica Diversos Afins para leitura da edição de aniversário.
Parabéns e muito sucesso para estes amigos que tive a oportunidade de conhecer quando de minha visita a cidade de Ilhéus.

A 46ª Leva, através da exposição de escritores e artistas que integram nossa caminhada, tenciona prestar uma justa homenagem a todos os que, de algum modo, estiveram conosco em nossa infante existência. Saudamos a arte de Fao Carreira, Canato, João Colagem e Marco Angeli. Miramos um pouco de nós nas fotografias de Valéria Simões, Wellington de Medeiros, Antonio Paim e Ricardo Prado. Os poetas Neuzamaria Kerner, Jorge Elias Neto, Graça Pires, L. Rafael Nolli, Cássio Amaral, Ildásio Tavares, Felipe Stefani e Romério Rômulo nos ofertam seu lirismo. Nalgumas linhas de prosa, os contos de Roberta Tostes, Larissa Mendes, Rodrigo Melo e Alice Fergo percorrem densas vertentes humanas. A sabatina com o artista plástico Marco Angeli pontua os sensíveis diferenciais de uma carreira marcante. Bolívar Landi nos propõe olhares atentos ao filme argentino O Segredo de Seus Olhos. No Aperitivo da Palavra, um convite à leitura de Eros Resoluto, livro de contos do escritor Marcus Vinícius Rodrigues. Há muito mais nas entrelinhas do que podemos perceber e a cada leitor cabe uma particular e infinita conjunção de saberes e sabores. Agradecemos e saudamos a todos os colaboradores e parceiros e, em especial, aos leitores. Celebremos, pois, a vida e seus instigantes mistérios!

www.diversos-afins.blogspot.com

sexta-feira, 9 de julho de 2010

RUY ESPINHEIRA FILHO


O QUE SOMOS


Críticos dizem do poeta:
Um lavrador da memória.

Sim, certamente é isto, pois
dos nossos comos e ondes

só sabemos quando, diante
de nós mesmos, recordamos

nosso enredo nas batalhas,
as bandeiras, as mortalhas,

as trevas, as claridades,
os olvidos, as saudades...

Aqui, o riso. Ali, a dor.
E o amor. E o desamor.

Mas sabe o poeta das sendas
da alma de névoas e lendas

que, em meio ao que de nós vemos,
pode contar outras glórias

vindas de acordes profundos
que tecem, na história, estórias

(quase sempre onde ficamos
melhor: no que fabulamos).

Enfim, o que todos somos
é só o que até hoje fomos,

ou que sonhamos que fomos
(e então sonhamos que somos...)

E assim vai singrando a vida,
rumo ao indesejado cais.

E vamos nós, nessa ida,
levando tudo o que somos:

as ficções da memória
e o que já não somos mais ...





OUTRO ANIVERSÁRIO



Sessenta e cinco navegações
completas
em torno do Sol.

Tudo vazio onde prometeram
fulgurantes legiões
de anjos.

Nenhum deus
a não ser a lembrança dos que morreram
na alma
nm a um
belos ou hediondos
durante a viagem.

Sessenta e cinco vezes
a volta ao Sol
e nenhuma revelação
nenhum sentido
nada

além do cultivo de uma sombra
cada vez mais longa
no ouro agonizante
da tarde.



ESPINHEIRA FILHO, Ruy. In: Sob o Céu de Samarcanda. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil Editora,2009.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

CONVITE - ENTREVISTA



Prezados leitores:

O poeta e filosofo Hilton Valeriano mantém o blog POESIA DIVERSA, o qual acompanho regularmente em decorrência da qualidade dos poemas postados.
Além de poemas, Hilton tem publicado uma série de entrevistas com poetas. Nesta semana foi nossa vez de responder os questionamentos do poeta. Convido todos para leitura. Caso queiram, deixem seus comentários.

Forte abraço para todos.


POESIA DIVERSA> http://poesiadiversidade.blogspot.com/

terça-feira, 22 de junho de 2010

GERMINA LITERATURA - CONVITE



A excelente revista de literatura e arte GERMINA, na pessoa do editor e companheiro no CRONÓPIOS José Aloise Bahia, publicou uma coletânea de meus poemas.
Convido todos a acessar este periódico que vem se firmando como um dos mais bem elaborados em nosso meio.


Germina: http://www.germinaliteratura.com.br/index1.htm
Poemas no Germina:http://www.germinaliteratura.com.br/2010/jorge_elias_neto.htm

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Viajante Lunar



Hoje vi a Lua boiando tranqüila, nas águas de uma lagoa.
Mergulhei os pés na Lua.
Várias Luas surgiram, em torno de mim,
foram crescendo, crescendo...
Fiquei cercado pelo luar.

(Verdes versos - 2007)

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Encosta do mundo


Na encosta do mundo
(sim, pois realmente existe um mundo
impensado por nossos contemporâneos
cientificamente munidos com incoerência),
um acaso de pedras
precipita-se sobre um mar inaudito.
Nela, as ondas batem
desfazendo precipícios.
Existisse o homem ali,
retomaria os mitos
ou se lançaria ao mar.
Mas findaram-se os séculos das navegações,
e pereceram, à força do fogo de canhões,
as últimas cidadelas.
Na encosta do mundo
o que se perde, não se conta como tempo.
A encosta do mundo
se preserva em uma dimensão
refutada pelo homem.

domingo, 23 de maio de 2010

Resenha do poeta Silas Correa Leite


Os Variados Corpos da Poesia Cor de Carne de Jorge Elias Neto
Rascunhos dos Absurdos da Dicotomia Vida/Morte e Seus Subterrâneos Letrais


“... A literatura é revanche de ordem mental
Contra o caos do mundo” Jorge Luis Borges



-Já recebi livro de aluno universitário, de professor, de jornalista, de profissional liberal, de publicitário e de livre pensador, até um que me assustou, no bom sentido, as páginas de rostos contristados de um juiz de direito, e até mesmo de um professor de medicina, ele mesmo médico e sonhador mexicano, mas, agora, recebi um livro de poemas de um médico cardiologista do Estado do Espírito Santo, o também poeta Dr Jorge Elias Neto. Será o impossível?

-Eu mesmo, poeta por acidente de percurso e exílio de existir, sempre sonhei ser médico. Sendo de origem humilde, pois não é que acabei poeta, trabalhando, por assim dizer, o bisturi da alma. Fiz tantos cursos, li feito um condenado à vida, até que achei, literalmente, um médico que, sim, trabalha o bisturi da alma, o bisturi da dicotomia vida/morte com a qual ele lida, escrevendo a poesia cor de carne; rascunhos de tantas vivências e subterrâneos desse rol de escreViver a vida por trás e por dentro da máscara de oxigênio, tirando a parte carbonária do ser sensível. Sobreviver é ser livro?

-O Poeta Gustavo Felicíssimo, pesquisador, ensaísta, já no prefácio muito bem articulado diz do Poeta Jorge Elias Neto: “Sua obra poética é marcadamente filosófica, metafísica e existencialista (...). Constrói seus poemas tateando o indizível, em busca da ciência de desinventar (...). Trabalhar a idéia da morte e entender a multiplicidade de atitudes do homem diante dessa locomotiva (a morte – grifo nosso). O homem passa a ser o criador de suas verdades e realidades(...) e se lança na investigação identitária de si mesmo e no descortinar do sentindo da vida (...).

-Jorge Elias Neto é isso: um médico que labuta entre o sangue e a luz, na sua poesia cor de carne põe a razão, porque o coração arrebata estados de ânimos e ele mergulha na ciência de palavrear o ritmo alucinante da vida que tem em mãos; que órbita como se um médico a coagular momentos irados, versos que saltam como vidas sendo paridas do seu lado pensador, sentidor, gravitando entre a própria alma nau e as acontecências do entorno. Em que submerge tentando salvar vidas, mesmo que expondo sua alma ferida, questionadora. Poeta é feito de escamas das quais tenta se livrar, criando... “Na perspectiva da ponte/O pássaro solitário nunca volta” (Solo, in pg. 21). Eis o poema em vôo de libertação/arrebentação(?). Mais:

-“Levem-me as horas
Para os caprichos mundanos!

Já destaquei a etiqueta.

Tomei posse do individuo.

Será que não vêem
No meu antebraço
O carimbo de pago”

(A Prazo, pg 63).

-O escritor que se fez médico sabe que não nascemos prontos. Vamos nos fazendo (refazendo) entre agulhas e clichês - em cada escolha, cada corte, cada parto, cada vida que erramos, cada espectro que enfrentamos; a foice da morte, o rebento da vida, a dicotomia paz/horror, amor/dor, sensibilidade e declínio. Seus poemas mostram o homem moderno condenado a pensar-se. Como poeta assume esse compromisso além da lente, do bisturi e da máscara de oxigênio, numa sensibilidade ilimitada e numa desconfortável sentição do que é a bruta vida errada, do sistema bruto que é a saúde corporativada, barateada, do que é significante e do que gratifica o ser no servir, sentir, além de bulas e receitas, de achar-se acima das aparências e satisfações pessoais. É líquido e químico: viver também dói. Sentir é um retirada de etiquetas das coisas abomináveis com os quais nos defrontamos. Não há pílulas de existir a seco, que nos façam passar em branco os desafios, enfrentações íntimas e nódoas do cardume delicado da existencialização. Jorge Elias Neto rascunha de próprio punho as temperaturas do que mapeia. O DNA da alma não tem enredo do que capitular na criação. A Poesia é exigência; o resto é palavrório” nos diz Pierre Bertaux, in Holderlin, ou “le temps d´un poéte.

-O autor poderia simplesmente recolher-se no seu canto e se aproveitar do cargo, da posição profissional. Mas prefere ainda assim campear rascunhos e dizer-se também gerador de palavras, do fogo das palavras. Tem carapaça mas tem um organismo sensível. O poeta-médico sonha um ninho em que as palavras contenham a morte. “O poeta é um verdadeiro ladrão do fogo", disse Rimbaud. Resistir é fogo.

“Herdei de meu pai/Esse Cristo forjado em miolo de pão” (Cristo de Pão) é um dos melhores poemas do livro (pg 79). A morte permeia a obra, mas não uma morte-fim, mas uma morte continuação de algum modo. Poetar é plantar sonhos entre arames e muros. “Deixarei para as ondas decidirem/Sobre a imortalidade/Do meu nome na areia. (Epitáfio Desejado, in, pg 89). Lidar com a morte é questionar a vida. E questionar a vida é uma espécie de rascunho de morrer de algum modo; feito a canção de Fátima Guedes que proseia e pontua a dor: “Flor-de-ir-embora/É flor que se alimenta/Do que a gente chora”.

-A poesia de Jorge Elias Neto é exatamente isso: flor-e-cultura-de sobreviver. O absurdo de. Muito mais do que rascunhos, são poemas à flor da pele, porque escrever é também uma forma de estar Vivo, muito além dos pólos do vale da sombra da morte para onde toda alma caminha. Mas o autor, sabe sim, com alumbrada visão, transformar sapatos em borboletas...

-Os parênteses de sua existência/resistência doem em nós pelos seus versos que celembram além das lágrimas, as areias do tempo na soleira das idéias. Seu escrever é um testamento moral da sensibilidade guardiã de todas as esperanças. A dor existe, e estamos cercados dela. Mas ainda assim há aroma nos aluviões do seu poetar.

-Bendito seja o poeta que sabe o corte e sabe o ungüento da palavra para sempre, e de novo, e outra vez, e de levantar-se, argüir, continuar, pelos que se foram, pelos que se perderam no caminho, pelos que partiram antes de nós. Escrever pegadas. A crueza das letras respira vida, apesar de todas as perdas. Rascunhos Poéticos do Absurdo é isso. Um livro e tanto. Uma obra respirando a vida no seu fulgor. O universo de Deus deixa poemas suspensos no ar. Escrevê-lo é de quem enxerga além da vida, o píer do barqueiro e sua leva de estrelamentos. Paradas cardíacas não são fins em si mesmos? Escrever poemas clarifica os santos suspensos nas tábuas de esperanças sentidas, frutos de ocupações. De médico e poeta o Jorge Elias Neto tem a iluminura enlivrada.

-0-

Silas Correa Leite



Silas Correa Leite – Santa Itararé das Letras/Augusta Sampa
Teórico da Educação, Jornalista Comunitário, Conselheiro em Direitos Humanos
Pós-graduado em Literatura na Comunicação, USP. Prêmio Lygia Fagundes Telles Para Professor Escritor – Membro da UBE-União Brasileira de Escritores
Autor de Porta-Lapsos, Poemas, Editora All-Print e Campo de Trigo Com Corvos, Contos Premiados, Editora Design, finalista do Prêmio Telecom, Portugal, a venda no site www.livrariacultura.com.br
E-mail: poesilas@terra.com.br
Blogue premiado do UOL: www.portas-lapsos.zip.,net

domingo, 16 de maio de 2010

Os ossos da baleia



I

Minha terra
é uma ilusão da linguagem.

Tenho de meu
esse rastilho de palavras
que pressinto atadas aos calcanhares.
Se o desfaço, perde-se
o encantamento das vivências cerzidas.

Sei que as mãos ensaiam obscenidades
entre dois espelhos.
Quero mesmo criar algumas reentrâncias
na estrutura dos olhares.
Mas olhos extraviados não ardem
no lugar comum em que me perco...

II

Dou conta de minhas cicatrizes;
e são bem humanas:
com cheiro de menstruação e defunto.

Para os crentes,
desejo o reino dos Céus.
Para mim,
a realidade.
Sou um desencontrado;
Não me cabem subterfúgios.


Jorge Elias Neto

terça-feira, 11 de maio de 2010

O ABSURDO EM VERSOS

Shirlene Rohr de Souza

Em um tempo tão desfavorável às atividades que exigem reflexão, a poesia parece ser uma entidade estranha, esdrúxula, lenta demais, pesada demais, talvez absurda. É nesta cena que Jorge Elias Neto lança Rascunhos do Absurdo, um livro que reúne poemas que desafiam a pressa, ou melhor, que desprezam a pressa. Rascunhos do Absurdo nasce das impressões de um cotidiano observado sem o frenesi do olhar coetâneo, viciado nas extravagâncias do mundo virtual e suas telas coloridas, tomadas por hipertextos sedutores como o canto das sereias.
Os poemas, divididos em quatro seções — “Livro de Notas”, “O estalo da palavra”, “Gaza” e “O encantamento do poeta Maratiba” —, formam, em tons cinzentos, um quadro abstrato no qual se revela a alma do poeta, desacreditada da lógica e ciente do absurdo da pretensa racionalidade e superioridade do homem.
Os temas que se erguem nos poemas de Jorge Elias Neto emergem do vão que se abre entre a vida e a morte. Eles tocam em feridas que a razão e a ciência tanto tentam declinar: a loucura, a dor, a morte, a angústia, a perda, a fome, a saudade. Mas no livro também há nesgas de cores mais vivas como o amor, o desejo sensual e o voo do pássaro.
É preciso dizer que os temas não se encapam de superficialidades: em Rascunhos do Absurdo, o poeta se envereda pelos caminhos dantes percorridos por filósofos e metafísicos. Todavia, seu percurso se define pelo traçado dos versos curtos, assentados em uma sintaxe segura e sólida que, paradoxalmente, trata do que há de mais insólito no viver. Sendo a palavra — absurda também — a matéria da poesia, as tentativas de expressar o indizível tornam os versos inquietos.
Nas letras dos versos de Rascunhos do Absurdo — salvo, talvez, nas fendas em que se lê paixão e sensualidade, rasgos de uma vida que insiste —, o espanto de alguém que descobre que a existência humana não tem sentido, verdade que se esconde atrás da esperança, sentimento que, como lembra Nietzsche, foi único mal que não conseguiu escapar da caixa de Pandora.
Na descrença, presente nos versos pesados, outro aceno nietzscheano: os ombros do poeta suportam o peso do mundo. Mas ele sabe que o absurdo, talvez, seja o traço que guarda aquilo que há de mais humano, demasiado humano, no homem, ainda que a ciência e a razão, em discursos admiravelmente lógicos, defendam o sentido da existência humana.
Em Rascunhos do Absurdo, o leitor — este que se distingue na massa indivíduos ávidos por imagens coloridas — poderá sentir as influências de Camus, Nietzsche, Borges e Dostoievski, entre outros pensadores que ousaram a confessar publicamente, em seus escritos, que naquilo em que a sociedade insana enxerga a lógica, o poeta e o filósofo enxergam o absurdo.

Shirlene Rohr de Souza é professora da Universidade do Estado de Mato Grosso.

domingo, 9 de maio de 2010

DIA DA MÃES - VÓ BELA

O lançamento foi ótimo, maravilhoso ... Mas não poderia me omitir e não deixar uma homenagem as mães. Não sou afeito as datas comemorativas, entretanto me curvo diante daquela que desde pequenino me susurrou poemas, todas às noites, me empurrando para a trilha de pedras marroadas em que me perdí, por amor.
Uma homenagem para Isabel Teodomira Pereira.
Meu primeiro poema publicado.

Vó Bela


Para minha avó Isabel Teodomira Pereira


Ainda te vejo terminar os dias
cozendo a colcha de retalho de tua genealogia.
Sabias, sim, os segredos da vida,
única explicação para a transparência de teu olhar...
Entendias também os sortilégios da morte.
Muitos dos teus já tinhas visto partir no nefasto trilho do fim absoluto.
Confesso não ter conhecido quem melhor divagasse entre magos e dragões,
conhecesse os cordéis do seu povo,
que, vestida de santa, ensaiasse noites inteiras os martírios do ser divino.

Usou o apoio imprevisto das estrelas e se fez poetisa.
Recitando os versos de seus heróis sertanejos,
embalaste o sono do pequeno ávido,
e plantaste o sonho que agora luto
para não se esvair.

sexta-feira, 30 de abril de 2010

CONVITE - LANÇAMENTO DE RASCUNHOS DO ABSURDO



A poesia de Jorge Elias Neto


Ao merecer o privilégio de ler Rascunhos do absurdo antes de sua publicação, compreendi, de imediato, que me encontrava diante de um poeta que pretendia dar mais força às palavras, na invenção do belo. E senti isso de pronto ao ler “Régua quebrada”, onde destaco:

“Não me importo/em numerar as penas do cisne.”
“Cato palavras de aluvião. Insisto na ingenuidade da metamorfose./
“Só sei transformar sapato em borboletas.”

No poema “Só sei que vou te amar”, a gente tem que admitir, como um perfume anódino, esta verdade etérea do poeta:

“Aceitar o fato/que os grãos de areia não sonham.”

Também no poema “Cúmplice”, não há como negar-se um toque de flauta na alma:

“Já coloquei todos os parênteses/em nossa existência. / A porta ficou fechada/
para a monotonia da brisa.”

Outro poema que tange bandolim em nosso coração é “Testamento moral”:

“Na soleira da porta/a lágrima escorre/limpando a pegada do poeta sonâmbulo.”

E como pretendesse perfumar a nossa tristeza com a sua própria dor, Jorge Elias nos presenteia com o poema “No entorno”, com estes versos que têm aroma de saudade:

“ Enquanto tivermos pulmão para soprar as pétalas/
Exerceremos o ofício temerário de celebrar a vida.”

Para não roubar ao leitor a oportunidade de descobrir mais encantamento na poesia de Jorge Elias Neto, recomendo, finalmente a leitura de “Sonho no absurdo”, que contém o terceiro capítulo do livro – GAZA.
Para quem já visitou Israel em três oportunidades, inclusive a região de Gaza, a última parte de Rascunhos do absurdo, é de deixar o coração em chamas, pela beleza incendiária dos seus versos. Por isso mesmo, reservo-me o direito de deixar ao leitor a oportunidade de sofrer esta ode extraordinária sem minha interferência, mas concluindo, envaidecido, reproduzindo, como se fossem minhas, as mesmas palavras do poeta e pesquisador Gustavo Felicíssimo: “É certo que, com essa potência e consciência literária, a poesia de Jorge Elias Neto enquadra-se neste momento, sem nenhum alarde, no rol daquilo que de melhor e mais significativo vem sendo produzido por nossos poetas contemporâneos. E ele nem sequer desconfia disso.”

Berredo de Menezes

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Jô Drumond - Convite e Poemas



FACES E DISFARCES

Traço retraço
Formas disformes
Faço refaço
Versos dispersos
Submeto as formas
Subverto os versos
A anteface disfarça
Meu "eu" retorcido
(2000)


LABIRINTO FILOSÓFICO

Passei toda minha vida
Perseguindo mil porquês

Procuro ainda a saída
Sem fio pra me guiar

Não paro nunca a andança
Atrás do impoderável

Da vida não levo nada
Não sei se deixo saudades

Mas deixo aqui palavras
Que não se apagarão

E deixo também minhas duvidas
Àqueles que virão

(2001)


MEMÓRIA PEREGRINA

Com iscas de nostalgia
E anzóis vergados de saudade
Pesco retalhos da vida
Nos abismos da memória

Nos arpejos do presente
Emerge o passado
Com sabor de futuro

(2007)


Jô Drumond (Josina Nunes Drumond)
Escritora, poeta, pesquisadora e tradutora

É doutora em Comunicação e Semiótica pela Puc/SP e mestre em Estudos Literários, pela Ufes. É pós-graduada (lato sensu) em Arte e Cultura Barroca, pela Univ. Federal de Ouro Preto e em Literatura de Língua Portuguesa, pela Ufes. Tem três graduações: Letras, pela UFMG, Língua, Literatura e Civilização Francesas, pela Université de Nancy (França), e Artes Plásticas, pela Ufes.

Tem diversas publicações (poemas, contos, crônicas, ensaios) em livros próprios, em antologias, em revistas de pós-graduação, em anais de congressos, e na Internet.

Atualmente é Diretora Cultural da Aliança Francesa de Vitória, Tradutora Juramentada do Estado do ES, membro da Academia Espírito-santense de Letras, Vice-presidente da Academia Feminina Espírito-santense de Letras, membro do Conselho Estadual de Cultura. É também membro correspondente da Academia Feminina Mineira de Letras.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Noir - Facetas da alma ( I )


Filme: Noir


Um olhar,
na ausência,
é insubornável.



Noir

Disseste
que a corda
apazigua os desencantados.

Disseste
que a terra treme
nas bordas
do despenhadeiro.

A terra não tem nada
com teu descontentamento.
Ela é acima de qualquer suspeita.

É que a luz só atinge tuas costas.

Hoje,
a estupidez não é mais um traço,
é um demônio que se agiganta.

(Rascunhos do absurdo – 2010)




Dialética do desenlace

Para o interlocutor ausente



Estamos sós.
E a tristeza que invade os espaços íntimos
não permite sobriedade.

Desfazem-se gestos
para evitar a tortura de sentir-se interpretado.

Quando calar-se
é um virar de costas.

(Inédito)

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Realidade - Facetas da alma (I)



Meu punhal tem duas faces:
a que brota
e a que geme.


A realidade de cada um


Desconheço a ordenação dos anjos,
mas sei das cores nas fachadas das casas.

Na foto antiga, as casas já receberam
O insofismável tom trazido pela areia do tempo.
Naqueles olhos ausentes,
que cruzaram desapercebidas
a falsa eternização do momento,
surpreendo o olhar humano.

Desconheço a verdade dos santos,
mas tenho aprendido sobre a mutilação do desejo.

(Verdes versos – 2007)



Rotina

Convivia-se com a conformidade
de ter o universo próximo de casa.

O espaço delimitado
pelo absurdo traço da conveniência
era marcado pelas solas dos sapatos
(e trazia a fotografia do mijo
fora da privada).

Para o gozo o número era par.
Pouco importava a singularidade da morte.

(Rascunhos do absurdo – 2010)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sem fichas - Facetas da alma (I)


Não encerro, dentre meus subterfúgios,
a idéia de passagem.


Refutação do tempo humano

O homem aquietará.
E juntos, todos os ponteiros
deixaram de ter sentido.

(Inédito)

Sem fichas


A vida não é um jogo de baralho.
Não poderei simplesmente dizer “passo”.
Não me chegará às mãos
meu atestado de óbito.

(verdes versos 2007)

quarta-feira, 31 de março de 2010

Heitor Brasileiro Filho


Foto: Julay

REGRESSO DE SOSÍGENES

Um barco ancora
no cais de Belmonte
trazendo um sobrevivente
do naufrágio de Caronte

um espectro observa
longamente
à sombra dos casarís
a igrejinha resignada
& o antigo chafariz

um vulto retorna
para rever a sua gente
traz na cabeça a aureola
do sol
nos olhos
pétalas de girassol
& o coração recontente

nem a hera sob a estrela
nem a treva que a trai
nem o acinte nem o açoite
só a brisa vê o bonsai
comungando com a foice

tudo era tão arrumado
como um buquê
de algodãodoce

terno - de PalhaçoVerde -
calça de nuvem ocre-azul
calçado bi colorido:
musgo - na pele
pérola - no bico

ascende pegadas de fogo
no horizonte amarelecido

& sob a camisa ornada de rendas
nem abotoaduras de ouro
nem os botões de madrepérola

mas
(
sob a camisa
de rendas
)
seus amores
& uma prenda




B A N Z O

Uns morrem de bronca
outros de azia
neurópida
arrelia ...

Meu avô Zeca morreu de banzo
bem ele dizia:
todo homem tem um limite

Zeca Moreira agora está quite
com a vida
(nosso tempo e suas diatribes)
orgulhoso morreu de banzo
cria mais honroso
que morrer de gripe

do homem centenário
áspero
rústico
ficou o camponês cuidador do gado

até com a idade foi ante perdulário
preferiu morrer aos noventa e seis
mas, bom temente, não marcou
horário
(como bem cria
julgou ser mais honroso
que uma broncopneumonia)

Vingou-se do tédio e humilhou a dor
zombou da angústia e da nostalgia
e com ele foi-se uma legião
de arcanjos
louvar-lhe a coragem e a rebeldia

Uns morrem de bronca
outros (quando o fígado
vira bife) de aleivosia

vaidoso
meu avô Zeca
morreu de Banzo






CRACK


Não havia mais
caminho


uma pedra




O F I C I N A


Aceito o ofício –
o exercício da liberdade
é o mais caro de todos os vícios
– a graça

como um padeiro oficia
o trigo que nos sacia
sigo o rito da li–
ber da de em exercício
o pão nosso de cada dia

Enquanto o universo conspira
enquanto o homem maquina
a palavra oficina:
despe-me da agnostia
& põe-me a conversar com Deus
no balcão do bar da esquina
que teima em ser padaria

Nem diário escrito
nem memória iconográfica:
escrito diário
festa esferográfica
desafio:
cio iconoclasta

incontrolável rio
que a tudo rui
inunda
anima
& arrasta

As margens que o oprimem
exalam em orifícios
do elo
contra a corrente
de frialdade
sublime
des atam

Assim abraço o ofício
o exercício da liberdade
o mais elevado de todos os vícios
a graça


Heitor Brasileiro Filho é natural de Jacobina, Bahia, nascido em Setembro de 1964. Radicado em Ilhéus desde 1994. Licenciado em Letras e pós-graduado em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa (UESC). Ensaísta, cronista e poeta com destacada participação em concursos literários. Possui poemas publicados na imprensa baiana e em Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna

sexta-feira, 19 de março de 2010

Luiz Guilherme Santos Neves


As migalhas de ouro

“ide à cidade, à casa de um tal” (Mateus, 26,18)



Eu sou aquele que preparou a ceia do senhor, aquele que o acolheu com os discípulos, aquele que serviu a comida pascal. Primeiro, pela manhã, chegaram Pedro e João, e disse um deles: “O tempo do mestre está próximo. Isso ele mandou dizer”. E completou: “Vimos preparar a ceia em vossa casa, porque essa é a vontade dele”.

Conduzi-os então à parte superior da casa onde lhes mostrei a grande sala branca, mobiliada com coxins e com a mesa retangular com tampo de grande grossura. Disse-lhes: “Eis a sala e eis a mesa onde será a ceia do senhor. Ide e dizei-lhe que na hora vespertina aqui estarão o pão e o vinho; e os alimentos serão servidos sobre toalha de linho branco. Porque sendo essa a sua vontade é também a minha vontade e o meu prazer de servir”.

Antes de sair, um dos dois, que era um dos Doze perguntou: “Quem sóis vós? Respondi: “Eu sou aquele que servirá a ceia do senhor, o que estará presente e será omitido, cujo nome jamais será sabido, mas que terá olhos para ver e ouvidos para ouvir e, em mudez e quietude, testemunhará, porque será o décimo quarto participante.”

Ouvindo essas palavras eles se foram em silêncio.

Caindo a tarde, vieram todos e abri-lhes a porta e os conduzi ao andar superior onde entraram na sala mobiliada e pronta. E pôs-se Jesus à mesa com os doze discípulos. E se assentou ele ao meio dela, e não na cabeceira; e, de cada lado dele, à direita e à esquerda, eram três daqueles seus discípulos, e os seis restantes, pelo lado contrário, de maneira a ficarem os doze em dianteira uns dos outros, permanecendo vazios os flancos da mesa. Após orar em silêncio, disse-me Jesus: “Seja servida a ceia”.

E eu os servi a cada um em seu lugar. E junto deles, ao lado de suas destras, havia pão e vinho; mas eles não os tocaram.

Durante a refeição, Jesus tomou do pão ao seu lado, benzeu-o e o partiu em doze porções que distribuiu aos discípulos dizendo: “Tomai e comei isto é o meu corpo.” Pegou depois o cálice, onde derramei o vinho, deu graças, e o fez correr entre os discípulos, dizendo: “Bebei dele porque isto é o meu sangue.”

Tendo eles assim provado do pão e do vinho, dirigiu-se Jesus a mim, de pé, próximo à mesa, e, separando uma hóstia de pão e um pouco de vinho, deu-me com estas palavras: “Comei e bebei; sóis presente entre nós e tende vez à comunhão”. E tendo eu feito como ele ordenara, vi quando tomou do pão e do vinho, e ele próprio os levou à boca, primeiro o pão, depois o vinho.

Em seguida, havendo me pedido uma bacia cheia d’ água e uma toalha, com ela cingiu o corpo após depor as vestes. E a cada discípulo lavou os pés com a água da bacia enxugando-os com a toalha com que estava cingido. E assim tendo feito a todos o fez também a mim. E disse depois de nos lavar os pés: “Vós estais puros, mas nem todos,” referindo-se ao Iscariotes. E acrescentou solene, embora tranqüilo, lançando, todavia, inquietação entre os discípulos: “Em verdade vos digo que um de vós me há de trair”.

Ouvindo estas palavras, perguntaram-se todos, entreolhando-se e entreolhando-me: “Porventura será quem?” Respondeu-lhes Jesus: “Aquele que pôs comigo a mão no prato”. E vimos que, assentado em frente ao mestre, a mão de Judas tocava a de Jesus no prato entre ambos.

Tendo assim revelada a sua perfídia, ergueu-se o filho de Simão Iscariotes, e levando a bolsa presa à cinta, tomou o rumo da escada. Estando trancada a porta da casa, eu o segui para abri-la. À saída, ouvi-lhe as palavras: “Habitará em mim a traição porque assim será preciso. Serei o figo da figueira, o instrumento das profecias. O caminho da crucificação e da ressurreição passa pelo meu corpo e será a danação da minha alma”. A seguir, retirou-se.

Quando tornei à sala, já todos estavam de pé e se aprontavam para sair. Seguido dos discípulos, disse-me Jesus: “Bendito sois vós que me recebestes em vossa casa e nela me oferecestes a ceia da Páscoa. Rogo ao pai que vos fortifiqueis por este ato”. E se foi e se foram.

No dia seguinte, entre a hora sexta e a nona, abateram-se as trevas sobre a terra. Uma mulher vendo-me sair de casa nessa súbita obscuridade e sabendo que eu havia recebido Jesus, gritou: “Aquele hospedou o rei dos Judeus, deu-lhe de comer e de beber.”

Logo uma pequena multidão se pôs em fúria e com tochas atearam fogo à casa que ardeu o tempo das trevas daquele dia.

Quando o fogo baixou e esfriaram as cinzas, os que puderam ver viram e maravilharam-se: da casa ardida restavam intactas a mesa e os coxins, e luziam como ouro as migalhas do pão partido sobre o tampo da mesa. E os que viram isso, acreditaram que ali tinha estado o filho de Deus.

(Publicado na Revista Letra, ano IV, 1984, Vitória-ES).


Luiz Guilherme Santos Neves (Vitória, ES, 24/9/1933). Professor, historiador, escritor, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e do Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo. Publicou, como ficcionista, entre outras obras, os romances A nau decapitada (1982), As chamas na missa (1986), O templo e a forca (2000), O capitão do fim (2002), Torre do Delírio (contos, 1992), Escrivão da Frota (crônicas, 1997) Crônicas da Insólita Fortuna (crônicas históricas, 1998), Memória das Cinzas – Encontro Póstumo com Fernão Ferreiro (2009). Na literatura infantil: História de Barbagato (1996); Eu estava na armada de Cabral (2004); Eu estava no começo do Brasil (2006). É autor de várias obras didáticas e de pesquisa histórica, muitas delas em parceria com Renato Pacheco e outros, entre as quais Espírito Santo: Impressões (1991), Espírito Santo, Brasil (1994), Índice do folclore capixaba (1994), Dos comes e bebes do Espírito Santo (1997), Vila Velha da Senhora da Penha (1997), Mão e obra: O artesanato do Espírito Santo (2001) e Mar de âncoras: o comércio exterior do Espírito Santo (2003), além de cinco obras para o Projeto Memória Viva, da Prefeitura de Vitória. Na área do folclore publicou Breviário do Folclore Capixaba (2009) e participou da equipe que produziu o Atlas do Folclore Capixaba (2010)

domingo, 14 de março de 2010

Dia da poesia e dos poetas

Aos poetas e leitores, minha homenagem nesse 14 de março.
Juntem os olhos da criança,à flor da quaresmeira.
Juntem as páginas que me dei às suas páginas,
e voem em paz.

Um abraço para todos



Ilha de Vitória
Foto: Gabriel Targueta



Qual Poema


Não seria um poema épico
que completaria a farsa humana.
Muito menos um dístico romântico,
falso artifício lunático de um sonhador.
Quem sabe o áspero concreto,
menos homem e mais objeto...?
Talvez o moderno José
pudesse garimpar em cada um
a fortuita questão do porquê...
Não seriam flores, amores,
não seriam ilusões e esperanças.
Nem a bossa, nem a farofa
nem mesmo urubus e girassóis.
Santa Maria Egipcíaca teria lido nos olhos duros do barqueiro
a síntese do que poderia ser dito?
Seria em haikais ou trovas
que encontraríamos o que vem após os dois pontos?...
Estaria na poeira sertaneja dos cordéis
o ferir fatal da peixeira que cortaria o fio da palavra?
Não, penso que na imagem dentro de cada um esteja o poema definitivo,
que jamais poderá ser escrito.

( Verdes versos - 2007)



Sobre o que se espera...




Do Poema

Tudo se espera do poema.
Que seja o contraponto da realidade,
o remanso para o repouso do herege,
o inferno permitido para as paixões contidas.

No poema, o que se procura é o ar diferente
que se vai buscar no expirar delirante de um poeta.
Como se o poeta fosse só delírio...
O poema se fez da vida do poeta;
é ele que o espera.

Do Poeta

Nada mais que a diferença.
O ser quase divino que veio ao mundo
tocado pelos deuses.
O que não se percebe, ou pelo menos não
se quer perceber, é que ele só foi tocado pela
[contradição humana.
Para quem muito espera do poeta-homem, vale o conselho:
atenha-se apenas aos seus versos.
Ele é apenas o exemplo típico
da máxima de Nietzsche:
“A arte existe para que o homem não morra da verdade”.


Do encontro entre o Poeta e o Poema

Que da simplicidade do artesão
resulte a palavra-arte.
E esta deixe para trás o homem
e siga sua trilha para a eternidade.

(Verdes versos - 2007)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Jorge Luis Borges


Cristo na cruz


Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. Ê o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
È áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?

Kyoto, 1984

in: "Os Conjurados" - 1985

quinta-feira, 4 de março de 2010

Dia da mulher


Preto e branco


Para Lourdes, a primeira mulher da minha vida

No tempo de meu eu-menino
(um dentre os vários eus que se vêem acumulando
nessa agenda de horas incompreendidas),
me perguntaram se eu achava minha mãe bonita.
Eu a fitei de longe
(com aqueles olhos que ficaram no ontem),
e respondi, com a convicção de minha maior verdade:
– Minha mãe é linda!



(Verdes versos - 2007)

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Fernando Pessoa


Cristo é uma forma da emoção.
No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites, nem até lógicos, e gozamos, no convívio de vários eternos, da coexistência de diferentes infinitos e de diversas eternidades.

(Fernando Pessoa in Livro do desassossego - COmpanhia das letras
Pág - 265)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Paulo Sodré


Foto:Fernando Maués


De
Poemas de pó, poalha e poeira
(2009)


O que se adivinha tanto pelas mãos

1.

Poema não medra
em terrenos propícios.

Daninho, alastra-se
palavra afora,
ilegal, ilícito, liberto.

Poema não pede
licença, permissão:
dá-se, inunda, invade.

Silencioso, espalha-se,
versos às tontas, à toa,
gentil, receoso ou maltês.


2.

Não que o poema
seja tolo e tosco
a romper portas,
arrogante como o tempo.

Não.

Cheiro fresco de murta,
aragem, imiscui-se ele nas frestas
que o encantamento
franqueia, abre, permite.

(Sim)

Um poema adentra,
onde o encanto, fluido,
autoriza janelas e fendas.


3.

Onde suas mãos:
a esguia clareza.

Quando suas mãos:
as claras linhas.

Como suas mãos:
o alinho de seda.

Porque suas mãos:
o sedoso terreno.

Dado o encanto,
faz-se dele janela,
por onde, aos poucos,
medra o destemor
de dez poemas.


4.

Das mãos
(as minhas)
longe
e quietas
as suas.

Da vontade
(a minha)
distante
e calada
a sua.

Olho-as
(as suas,
as minhas),
e a hora
ancora
em porto
sem nome,
sem dono.

O mar
(ou a piscina)
sem viagem.

Uma passagem?


5.

Suas mãos,
sim, desenho
de lúcidas linhas.

Suas mãos,
tanto som
de seda, sim.

Suas mãos,
sim, augúrio
de tépidas manhãs.

Seu corpo,
sim...


6.

Não retiro
de suas mãos
os óculos.

Receio olhar
a clara linha
da nuca;

o rijo contorno
dos ombros,

a mata macia
do peito,

a ágil musculatura
das pernas,

o fino esculpir
dos pés.

Receio adivinhar
cheiro de líbanos
em sua terra tão alva.

Suas mãos:
continuo.


7.

O que fazer com os dedos
na sombra do improvável?

O que dizer às palavras
na contramão da prudência?

O que riscar nos encontros,
o que morder nos frutos,
o que deitar nos lençóis
guardados para suas mãos?

Dedos, palavras, figos:
o arrepio rodopia
pela ciranda de lembrar
as mãos,
lindas,
as suas.


8.

No oitavo poema,
sobre suas mãos,
os anéis.

De nuvem, de água,
de acácia, de novembro.

Um instante de anel:

peixe mínimo
em tanta água
tão aguardada.

Por um instante,
um anel.


9.

Penúltimo poema:

Já mil sílabas
para dez dedos
de suas mãos.

Botticelli lhe daria
formas nítidas,
em desenho de Líbano,
máscula planície.

Plebeu dou-lhe
as sílabas tontas,
adivinhando, em neblina,
o vinho de seus dedos.


10.


Tocar cada canto
de suas mãos,
buscando nêspera
ou dia de festa.

Cada canto
das linhas;

cada sumo
de nêspera;

cada hora
de festa

e contentar
de digitais e gestos,
ao menos,
o poema.


Paulo Roberto Sodré (Vitória/ES, 1962), é poeta: Interiores (1984), Lhecídio: gravuras de sherazade na penúltima noite (1989), Dos olhos, das mãos, dos dentes (1992), De Ulisses a Telêmacos (1998), Senhor Branco ou o indesejado das gentes (2006), Poemas de pó, poalha e poeira (2009), e ensaísta: Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandes Torneol (1998) e Cantigas de madre galego-portuguesas: estudo de xéneros das cantigas líricas (2008). Atua como professor de Literatura Portuguesa no Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1989. Vive em Vitória.