quarta-feira, 31 de março de 2010

Heitor Brasileiro Filho


Foto: Julay

REGRESSO DE SOSÍGENES

Um barco ancora
no cais de Belmonte
trazendo um sobrevivente
do naufrágio de Caronte

um espectro observa
longamente
à sombra dos casarís
a igrejinha resignada
& o antigo chafariz

um vulto retorna
para rever a sua gente
traz na cabeça a aureola
do sol
nos olhos
pétalas de girassol
& o coração recontente

nem a hera sob a estrela
nem a treva que a trai
nem o acinte nem o açoite
só a brisa vê o bonsai
comungando com a foice

tudo era tão arrumado
como um buquê
de algodãodoce

terno - de PalhaçoVerde -
calça de nuvem ocre-azul
calçado bi colorido:
musgo - na pele
pérola - no bico

ascende pegadas de fogo
no horizonte amarelecido

& sob a camisa ornada de rendas
nem abotoaduras de ouro
nem os botões de madrepérola

mas
(
sob a camisa
de rendas
)
seus amores
& uma prenda




B A N Z O

Uns morrem de bronca
outros de azia
neurópida
arrelia ...

Meu avô Zeca morreu de banzo
bem ele dizia:
todo homem tem um limite

Zeca Moreira agora está quite
com a vida
(nosso tempo e suas diatribes)
orgulhoso morreu de banzo
cria mais honroso
que morrer de gripe

do homem centenário
áspero
rústico
ficou o camponês cuidador do gado

até com a idade foi ante perdulário
preferiu morrer aos noventa e seis
mas, bom temente, não marcou
horário
(como bem cria
julgou ser mais honroso
que uma broncopneumonia)

Vingou-se do tédio e humilhou a dor
zombou da angústia e da nostalgia
e com ele foi-se uma legião
de arcanjos
louvar-lhe a coragem e a rebeldia

Uns morrem de bronca
outros (quando o fígado
vira bife) de aleivosia

vaidoso
meu avô Zeca
morreu de Banzo






CRACK


Não havia mais
caminho


uma pedra




O F I C I N A


Aceito o ofício –
o exercício da liberdade
é o mais caro de todos os vícios
– a graça

como um padeiro oficia
o trigo que nos sacia
sigo o rito da li–
ber da de em exercício
o pão nosso de cada dia

Enquanto o universo conspira
enquanto o homem maquina
a palavra oficina:
despe-me da agnostia
& põe-me a conversar com Deus
no balcão do bar da esquina
que teima em ser padaria

Nem diário escrito
nem memória iconográfica:
escrito diário
festa esferográfica
desafio:
cio iconoclasta

incontrolável rio
que a tudo rui
inunda
anima
& arrasta

As margens que o oprimem
exalam em orifícios
do elo
contra a corrente
de frialdade
sublime
des atam

Assim abraço o ofício
o exercício da liberdade
o mais elevado de todos os vícios
a graça


Heitor Brasileiro Filho é natural de Jacobina, Bahia, nascido em Setembro de 1964. Radicado em Ilhéus desde 1994. Licenciado em Letras e pós-graduado em Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa (UESC). Ensaísta, cronista e poeta com destacada participação em concursos literários. Possui poemas publicados na imprensa baiana e em Diálogos – Panorama da Nova Poesia Grapiúna

sexta-feira, 19 de março de 2010

Luiz Guilherme Santos Neves


As migalhas de ouro

“ide à cidade, à casa de um tal” (Mateus, 26,18)



Eu sou aquele que preparou a ceia do senhor, aquele que o acolheu com os discípulos, aquele que serviu a comida pascal. Primeiro, pela manhã, chegaram Pedro e João, e disse um deles: “O tempo do mestre está próximo. Isso ele mandou dizer”. E completou: “Vimos preparar a ceia em vossa casa, porque essa é a vontade dele”.

Conduzi-os então à parte superior da casa onde lhes mostrei a grande sala branca, mobiliada com coxins e com a mesa retangular com tampo de grande grossura. Disse-lhes: “Eis a sala e eis a mesa onde será a ceia do senhor. Ide e dizei-lhe que na hora vespertina aqui estarão o pão e o vinho; e os alimentos serão servidos sobre toalha de linho branco. Porque sendo essa a sua vontade é também a minha vontade e o meu prazer de servir”.

Antes de sair, um dos dois, que era um dos Doze perguntou: “Quem sóis vós? Respondi: “Eu sou aquele que servirá a ceia do senhor, o que estará presente e será omitido, cujo nome jamais será sabido, mas que terá olhos para ver e ouvidos para ouvir e, em mudez e quietude, testemunhará, porque será o décimo quarto participante.”

Ouvindo essas palavras eles se foram em silêncio.

Caindo a tarde, vieram todos e abri-lhes a porta e os conduzi ao andar superior onde entraram na sala mobiliada e pronta. E pôs-se Jesus à mesa com os doze discípulos. E se assentou ele ao meio dela, e não na cabeceira; e, de cada lado dele, à direita e à esquerda, eram três daqueles seus discípulos, e os seis restantes, pelo lado contrário, de maneira a ficarem os doze em dianteira uns dos outros, permanecendo vazios os flancos da mesa. Após orar em silêncio, disse-me Jesus: “Seja servida a ceia”.

E eu os servi a cada um em seu lugar. E junto deles, ao lado de suas destras, havia pão e vinho; mas eles não os tocaram.

Durante a refeição, Jesus tomou do pão ao seu lado, benzeu-o e o partiu em doze porções que distribuiu aos discípulos dizendo: “Tomai e comei isto é o meu corpo.” Pegou depois o cálice, onde derramei o vinho, deu graças, e o fez correr entre os discípulos, dizendo: “Bebei dele porque isto é o meu sangue.”

Tendo eles assim provado do pão e do vinho, dirigiu-se Jesus a mim, de pé, próximo à mesa, e, separando uma hóstia de pão e um pouco de vinho, deu-me com estas palavras: “Comei e bebei; sóis presente entre nós e tende vez à comunhão”. E tendo eu feito como ele ordenara, vi quando tomou do pão e do vinho, e ele próprio os levou à boca, primeiro o pão, depois o vinho.

Em seguida, havendo me pedido uma bacia cheia d’ água e uma toalha, com ela cingiu o corpo após depor as vestes. E a cada discípulo lavou os pés com a água da bacia enxugando-os com a toalha com que estava cingido. E assim tendo feito a todos o fez também a mim. E disse depois de nos lavar os pés: “Vós estais puros, mas nem todos,” referindo-se ao Iscariotes. E acrescentou solene, embora tranqüilo, lançando, todavia, inquietação entre os discípulos: “Em verdade vos digo que um de vós me há de trair”.

Ouvindo estas palavras, perguntaram-se todos, entreolhando-se e entreolhando-me: “Porventura será quem?” Respondeu-lhes Jesus: “Aquele que pôs comigo a mão no prato”. E vimos que, assentado em frente ao mestre, a mão de Judas tocava a de Jesus no prato entre ambos.

Tendo assim revelada a sua perfídia, ergueu-se o filho de Simão Iscariotes, e levando a bolsa presa à cinta, tomou o rumo da escada. Estando trancada a porta da casa, eu o segui para abri-la. À saída, ouvi-lhe as palavras: “Habitará em mim a traição porque assim será preciso. Serei o figo da figueira, o instrumento das profecias. O caminho da crucificação e da ressurreição passa pelo meu corpo e será a danação da minha alma”. A seguir, retirou-se.

Quando tornei à sala, já todos estavam de pé e se aprontavam para sair. Seguido dos discípulos, disse-me Jesus: “Bendito sois vós que me recebestes em vossa casa e nela me oferecestes a ceia da Páscoa. Rogo ao pai que vos fortifiqueis por este ato”. E se foi e se foram.

No dia seguinte, entre a hora sexta e a nona, abateram-se as trevas sobre a terra. Uma mulher vendo-me sair de casa nessa súbita obscuridade e sabendo que eu havia recebido Jesus, gritou: “Aquele hospedou o rei dos Judeus, deu-lhe de comer e de beber.”

Logo uma pequena multidão se pôs em fúria e com tochas atearam fogo à casa que ardeu o tempo das trevas daquele dia.

Quando o fogo baixou e esfriaram as cinzas, os que puderam ver viram e maravilharam-se: da casa ardida restavam intactas a mesa e os coxins, e luziam como ouro as migalhas do pão partido sobre o tampo da mesa. E os que viram isso, acreditaram que ali tinha estado o filho de Deus.

(Publicado na Revista Letra, ano IV, 1984, Vitória-ES).


Luiz Guilherme Santos Neves (Vitória, ES, 24/9/1933). Professor, historiador, escritor, membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo e do Centro Cultural de Estudos e Pesquisas do Espírito Santo. Publicou, como ficcionista, entre outras obras, os romances A nau decapitada (1982), As chamas na missa (1986), O templo e a forca (2000), O capitão do fim (2002), Torre do Delírio (contos, 1992), Escrivão da Frota (crônicas, 1997) Crônicas da Insólita Fortuna (crônicas históricas, 1998), Memória das Cinzas – Encontro Póstumo com Fernão Ferreiro (2009). Na literatura infantil: História de Barbagato (1996); Eu estava na armada de Cabral (2004); Eu estava no começo do Brasil (2006). É autor de várias obras didáticas e de pesquisa histórica, muitas delas em parceria com Renato Pacheco e outros, entre as quais Espírito Santo: Impressões (1991), Espírito Santo, Brasil (1994), Índice do folclore capixaba (1994), Dos comes e bebes do Espírito Santo (1997), Vila Velha da Senhora da Penha (1997), Mão e obra: O artesanato do Espírito Santo (2001) e Mar de âncoras: o comércio exterior do Espírito Santo (2003), além de cinco obras para o Projeto Memória Viva, da Prefeitura de Vitória. Na área do folclore publicou Breviário do Folclore Capixaba (2009) e participou da equipe que produziu o Atlas do Folclore Capixaba (2010)

domingo, 14 de março de 2010

Dia da poesia e dos poetas

Aos poetas e leitores, minha homenagem nesse 14 de março.
Juntem os olhos da criança,à flor da quaresmeira.
Juntem as páginas que me dei às suas páginas,
e voem em paz.

Um abraço para todos



Ilha de Vitória
Foto: Gabriel Targueta



Qual Poema


Não seria um poema épico
que completaria a farsa humana.
Muito menos um dístico romântico,
falso artifício lunático de um sonhador.
Quem sabe o áspero concreto,
menos homem e mais objeto...?
Talvez o moderno José
pudesse garimpar em cada um
a fortuita questão do porquê...
Não seriam flores, amores,
não seriam ilusões e esperanças.
Nem a bossa, nem a farofa
nem mesmo urubus e girassóis.
Santa Maria Egipcíaca teria lido nos olhos duros do barqueiro
a síntese do que poderia ser dito?
Seria em haikais ou trovas
que encontraríamos o que vem após os dois pontos?...
Estaria na poeira sertaneja dos cordéis
o ferir fatal da peixeira que cortaria o fio da palavra?
Não, penso que na imagem dentro de cada um esteja o poema definitivo,
que jamais poderá ser escrito.

( Verdes versos - 2007)



Sobre o que se espera...




Do Poema

Tudo se espera do poema.
Que seja o contraponto da realidade,
o remanso para o repouso do herege,
o inferno permitido para as paixões contidas.

No poema, o que se procura é o ar diferente
que se vai buscar no expirar delirante de um poeta.
Como se o poeta fosse só delírio...
O poema se fez da vida do poeta;
é ele que o espera.

Do Poeta

Nada mais que a diferença.
O ser quase divino que veio ao mundo
tocado pelos deuses.
O que não se percebe, ou pelo menos não
se quer perceber, é que ele só foi tocado pela
[contradição humana.
Para quem muito espera do poeta-homem, vale o conselho:
atenha-se apenas aos seus versos.
Ele é apenas o exemplo típico
da máxima de Nietzsche:
“A arte existe para que o homem não morra da verdade”.


Do encontro entre o Poeta e o Poema

Que da simplicidade do artesão
resulte a palavra-arte.
E esta deixe para trás o homem
e siga sua trilha para a eternidade.

(Verdes versos - 2007)

quarta-feira, 10 de março de 2010

Jorge Luis Borges


Cristo na cruz


Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. Ê o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
È áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?

Kyoto, 1984

in: "Os Conjurados" - 1985

quinta-feira, 4 de março de 2010

Dia da mulher


Preto e branco


Para Lourdes, a primeira mulher da minha vida

No tempo de meu eu-menino
(um dentre os vários eus que se vêem acumulando
nessa agenda de horas incompreendidas),
me perguntaram se eu achava minha mãe bonita.
Eu a fitei de longe
(com aqueles olhos que ficaram no ontem),
e respondi, com a convicção de minha maior verdade:
– Minha mãe é linda!



(Verdes versos - 2007)