quarta-feira, 26 de maio de 2010

Encosta do mundo


Na encosta do mundo
(sim, pois realmente existe um mundo
impensado por nossos contemporâneos
cientificamente munidos com incoerência),
um acaso de pedras
precipita-se sobre um mar inaudito.
Nela, as ondas batem
desfazendo precipícios.
Existisse o homem ali,
retomaria os mitos
ou se lançaria ao mar.
Mas findaram-se os séculos das navegações,
e pereceram, à força do fogo de canhões,
as últimas cidadelas.
Na encosta do mundo
o que se perde, não se conta como tempo.
A encosta do mundo
se preserva em uma dimensão
refutada pelo homem.

domingo, 23 de maio de 2010

Resenha do poeta Silas Correa Leite


Os Variados Corpos da Poesia Cor de Carne de Jorge Elias Neto
Rascunhos dos Absurdos da Dicotomia Vida/Morte e Seus Subterrâneos Letrais


“... A literatura é revanche de ordem mental
Contra o caos do mundo” Jorge Luis Borges



-Já recebi livro de aluno universitário, de professor, de jornalista, de profissional liberal, de publicitário e de livre pensador, até um que me assustou, no bom sentido, as páginas de rostos contristados de um juiz de direito, e até mesmo de um professor de medicina, ele mesmo médico e sonhador mexicano, mas, agora, recebi um livro de poemas de um médico cardiologista do Estado do Espírito Santo, o também poeta Dr Jorge Elias Neto. Será o impossível?

-Eu mesmo, poeta por acidente de percurso e exílio de existir, sempre sonhei ser médico. Sendo de origem humilde, pois não é que acabei poeta, trabalhando, por assim dizer, o bisturi da alma. Fiz tantos cursos, li feito um condenado à vida, até que achei, literalmente, um médico que, sim, trabalha o bisturi da alma, o bisturi da dicotomia vida/morte com a qual ele lida, escrevendo a poesia cor de carne; rascunhos de tantas vivências e subterrâneos desse rol de escreViver a vida por trás e por dentro da máscara de oxigênio, tirando a parte carbonária do ser sensível. Sobreviver é ser livro?

-O Poeta Gustavo Felicíssimo, pesquisador, ensaísta, já no prefácio muito bem articulado diz do Poeta Jorge Elias Neto: “Sua obra poética é marcadamente filosófica, metafísica e existencialista (...). Constrói seus poemas tateando o indizível, em busca da ciência de desinventar (...). Trabalhar a idéia da morte e entender a multiplicidade de atitudes do homem diante dessa locomotiva (a morte – grifo nosso). O homem passa a ser o criador de suas verdades e realidades(...) e se lança na investigação identitária de si mesmo e no descortinar do sentindo da vida (...).

-Jorge Elias Neto é isso: um médico que labuta entre o sangue e a luz, na sua poesia cor de carne põe a razão, porque o coração arrebata estados de ânimos e ele mergulha na ciência de palavrear o ritmo alucinante da vida que tem em mãos; que órbita como se um médico a coagular momentos irados, versos que saltam como vidas sendo paridas do seu lado pensador, sentidor, gravitando entre a própria alma nau e as acontecências do entorno. Em que submerge tentando salvar vidas, mesmo que expondo sua alma ferida, questionadora. Poeta é feito de escamas das quais tenta se livrar, criando... “Na perspectiva da ponte/O pássaro solitário nunca volta” (Solo, in pg. 21). Eis o poema em vôo de libertação/arrebentação(?). Mais:

-“Levem-me as horas
Para os caprichos mundanos!

Já destaquei a etiqueta.

Tomei posse do individuo.

Será que não vêem
No meu antebraço
O carimbo de pago”

(A Prazo, pg 63).

-O escritor que se fez médico sabe que não nascemos prontos. Vamos nos fazendo (refazendo) entre agulhas e clichês - em cada escolha, cada corte, cada parto, cada vida que erramos, cada espectro que enfrentamos; a foice da morte, o rebento da vida, a dicotomia paz/horror, amor/dor, sensibilidade e declínio. Seus poemas mostram o homem moderno condenado a pensar-se. Como poeta assume esse compromisso além da lente, do bisturi e da máscara de oxigênio, numa sensibilidade ilimitada e numa desconfortável sentição do que é a bruta vida errada, do sistema bruto que é a saúde corporativada, barateada, do que é significante e do que gratifica o ser no servir, sentir, além de bulas e receitas, de achar-se acima das aparências e satisfações pessoais. É líquido e químico: viver também dói. Sentir é um retirada de etiquetas das coisas abomináveis com os quais nos defrontamos. Não há pílulas de existir a seco, que nos façam passar em branco os desafios, enfrentações íntimas e nódoas do cardume delicado da existencialização. Jorge Elias Neto rascunha de próprio punho as temperaturas do que mapeia. O DNA da alma não tem enredo do que capitular na criação. A Poesia é exigência; o resto é palavrório” nos diz Pierre Bertaux, in Holderlin, ou “le temps d´un poéte.

-O autor poderia simplesmente recolher-se no seu canto e se aproveitar do cargo, da posição profissional. Mas prefere ainda assim campear rascunhos e dizer-se também gerador de palavras, do fogo das palavras. Tem carapaça mas tem um organismo sensível. O poeta-médico sonha um ninho em que as palavras contenham a morte. “O poeta é um verdadeiro ladrão do fogo", disse Rimbaud. Resistir é fogo.

“Herdei de meu pai/Esse Cristo forjado em miolo de pão” (Cristo de Pão) é um dos melhores poemas do livro (pg 79). A morte permeia a obra, mas não uma morte-fim, mas uma morte continuação de algum modo. Poetar é plantar sonhos entre arames e muros. “Deixarei para as ondas decidirem/Sobre a imortalidade/Do meu nome na areia. (Epitáfio Desejado, in, pg 89). Lidar com a morte é questionar a vida. E questionar a vida é uma espécie de rascunho de morrer de algum modo; feito a canção de Fátima Guedes que proseia e pontua a dor: “Flor-de-ir-embora/É flor que se alimenta/Do que a gente chora”.

-A poesia de Jorge Elias Neto é exatamente isso: flor-e-cultura-de sobreviver. O absurdo de. Muito mais do que rascunhos, são poemas à flor da pele, porque escrever é também uma forma de estar Vivo, muito além dos pólos do vale da sombra da morte para onde toda alma caminha. Mas o autor, sabe sim, com alumbrada visão, transformar sapatos em borboletas...

-Os parênteses de sua existência/resistência doem em nós pelos seus versos que celembram além das lágrimas, as areias do tempo na soleira das idéias. Seu escrever é um testamento moral da sensibilidade guardiã de todas as esperanças. A dor existe, e estamos cercados dela. Mas ainda assim há aroma nos aluviões do seu poetar.

-Bendito seja o poeta que sabe o corte e sabe o ungüento da palavra para sempre, e de novo, e outra vez, e de levantar-se, argüir, continuar, pelos que se foram, pelos que se perderam no caminho, pelos que partiram antes de nós. Escrever pegadas. A crueza das letras respira vida, apesar de todas as perdas. Rascunhos Poéticos do Absurdo é isso. Um livro e tanto. Uma obra respirando a vida no seu fulgor. O universo de Deus deixa poemas suspensos no ar. Escrevê-lo é de quem enxerga além da vida, o píer do barqueiro e sua leva de estrelamentos. Paradas cardíacas não são fins em si mesmos? Escrever poemas clarifica os santos suspensos nas tábuas de esperanças sentidas, frutos de ocupações. De médico e poeta o Jorge Elias Neto tem a iluminura enlivrada.

-0-

Silas Correa Leite



Silas Correa Leite – Santa Itararé das Letras/Augusta Sampa
Teórico da Educação, Jornalista Comunitário, Conselheiro em Direitos Humanos
Pós-graduado em Literatura na Comunicação, USP. Prêmio Lygia Fagundes Telles Para Professor Escritor – Membro da UBE-União Brasileira de Escritores
Autor de Porta-Lapsos, Poemas, Editora All-Print e Campo de Trigo Com Corvos, Contos Premiados, Editora Design, finalista do Prêmio Telecom, Portugal, a venda no site www.livrariacultura.com.br
E-mail: poesilas@terra.com.br
Blogue premiado do UOL: www.portas-lapsos.zip.,net

domingo, 16 de maio de 2010

Os ossos da baleia



I

Minha terra
é uma ilusão da linguagem.

Tenho de meu
esse rastilho de palavras
que pressinto atadas aos calcanhares.
Se o desfaço, perde-se
o encantamento das vivências cerzidas.

Sei que as mãos ensaiam obscenidades
entre dois espelhos.
Quero mesmo criar algumas reentrâncias
na estrutura dos olhares.
Mas olhos extraviados não ardem
no lugar comum em que me perco...

II

Dou conta de minhas cicatrizes;
e são bem humanas:
com cheiro de menstruação e defunto.

Para os crentes,
desejo o reino dos Céus.
Para mim,
a realidade.
Sou um desencontrado;
Não me cabem subterfúgios.


Jorge Elias Neto

terça-feira, 11 de maio de 2010

O ABSURDO EM VERSOS

Shirlene Rohr de Souza

Em um tempo tão desfavorável às atividades que exigem reflexão, a poesia parece ser uma entidade estranha, esdrúxula, lenta demais, pesada demais, talvez absurda. É nesta cena que Jorge Elias Neto lança Rascunhos do Absurdo, um livro que reúne poemas que desafiam a pressa, ou melhor, que desprezam a pressa. Rascunhos do Absurdo nasce das impressões de um cotidiano observado sem o frenesi do olhar coetâneo, viciado nas extravagâncias do mundo virtual e suas telas coloridas, tomadas por hipertextos sedutores como o canto das sereias.
Os poemas, divididos em quatro seções — “Livro de Notas”, “O estalo da palavra”, “Gaza” e “O encantamento do poeta Maratiba” —, formam, em tons cinzentos, um quadro abstrato no qual se revela a alma do poeta, desacreditada da lógica e ciente do absurdo da pretensa racionalidade e superioridade do homem.
Os temas que se erguem nos poemas de Jorge Elias Neto emergem do vão que se abre entre a vida e a morte. Eles tocam em feridas que a razão e a ciência tanto tentam declinar: a loucura, a dor, a morte, a angústia, a perda, a fome, a saudade. Mas no livro também há nesgas de cores mais vivas como o amor, o desejo sensual e o voo do pássaro.
É preciso dizer que os temas não se encapam de superficialidades: em Rascunhos do Absurdo, o poeta se envereda pelos caminhos dantes percorridos por filósofos e metafísicos. Todavia, seu percurso se define pelo traçado dos versos curtos, assentados em uma sintaxe segura e sólida que, paradoxalmente, trata do que há de mais insólito no viver. Sendo a palavra — absurda também — a matéria da poesia, as tentativas de expressar o indizível tornam os versos inquietos.
Nas letras dos versos de Rascunhos do Absurdo — salvo, talvez, nas fendas em que se lê paixão e sensualidade, rasgos de uma vida que insiste —, o espanto de alguém que descobre que a existência humana não tem sentido, verdade que se esconde atrás da esperança, sentimento que, como lembra Nietzsche, foi único mal que não conseguiu escapar da caixa de Pandora.
Na descrença, presente nos versos pesados, outro aceno nietzscheano: os ombros do poeta suportam o peso do mundo. Mas ele sabe que o absurdo, talvez, seja o traço que guarda aquilo que há de mais humano, demasiado humano, no homem, ainda que a ciência e a razão, em discursos admiravelmente lógicos, defendam o sentido da existência humana.
Em Rascunhos do Absurdo, o leitor — este que se distingue na massa indivíduos ávidos por imagens coloridas — poderá sentir as influências de Camus, Nietzsche, Borges e Dostoievski, entre outros pensadores que ousaram a confessar publicamente, em seus escritos, que naquilo em que a sociedade insana enxerga a lógica, o poeta e o filósofo enxergam o absurdo.

Shirlene Rohr de Souza é professora da Universidade do Estado de Mato Grosso.

domingo, 9 de maio de 2010

DIA DA MÃES - VÓ BELA

O lançamento foi ótimo, maravilhoso ... Mas não poderia me omitir e não deixar uma homenagem as mães. Não sou afeito as datas comemorativas, entretanto me curvo diante daquela que desde pequenino me susurrou poemas, todas às noites, me empurrando para a trilha de pedras marroadas em que me perdí, por amor.
Uma homenagem para Isabel Teodomira Pereira.
Meu primeiro poema publicado.

Vó Bela


Para minha avó Isabel Teodomira Pereira


Ainda te vejo terminar os dias
cozendo a colcha de retalho de tua genealogia.
Sabias, sim, os segredos da vida,
única explicação para a transparência de teu olhar...
Entendias também os sortilégios da morte.
Muitos dos teus já tinhas visto partir no nefasto trilho do fim absoluto.
Confesso não ter conhecido quem melhor divagasse entre magos e dragões,
conhecesse os cordéis do seu povo,
que, vestida de santa, ensaiasse noites inteiras os martírios do ser divino.

Usou o apoio imprevisto das estrelas e se fez poetisa.
Recitando os versos de seus heróis sertanejos,
embalaste o sono do pequeno ávido,
e plantaste o sonho que agora luto
para não se esvair.