quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Sérgio Blank


APÓSTROFO SEGUIDO DE S

a minha letra — risco em silêncio
não é a de enxofre
nem consoante fricativa alveolar surda
não é santa ou santo ou são-salavá
a décima-oitava letra do alfabeto
a minha inicial — cronograma em sangue
dois segundos de poema
espírito escrito na cidade
que neon algum ilumina — ofusca em sono
a letra muda desta planta genealógica: cáspite
o esse — cascavel em catacrese
o nome em que me inscrevo no juízo de salomão
minha voz rubricada nestes versos — quatorze no todo


BARROCO NO BAR

sentado a bordo desta basílica alcoólica
faço baralho com todos à vista
ás a rei ao boreal ou ao sul
bebo a todos sem as hierarquias
se sou barão e ele é mais pois é visconde
ou o tal ali possa ser arquiduque
vão todos à merda e duque foi nome de cachorro
barbitúrico à mão de cor tão bordô
faça-me instrumento de sua paz
que a noite é feto e esperança é a última que falece

Sérgio [Luiz] Blank nasceu em Vitória, ES, em 7 de abril de 1964.
Publicou:
Poesia: Estilo de ser assim, tampouco, edição alternativa promovida pela Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Ufes, 1984;
Pus, Fundação Ceciliano Abel de Almeida/Editora Anima, 1987;
Um, Cultural-ES, 1989;
A tabela periódica, Secretaria de Produção e Difusão Cultural/Ufes,1993;
Vírgula (1996).
Literatura para crianças: Safira, Departamento Estadual de Cultura, 1991.
Tem textos avulsos publicados nas revistas Cuca, Letra, Você, e em outros periódicos.
Síntese crítica:
Francisco Aurelio Ribeiro, na orelha de A tabela periódica, definiu Sérgio Blank como “poeta totalmente inserido na ‘condição pós-moderna’. Seus poemas têm como marcas recorrentes dessa estética a morte da inocência, a destruição do outro, o cinismo assumido, a simulação da realidade, o narcisismo, o escatológico e a desconstrução.” Reinaldo Santos Neves definiu-o como “autor de sombrias canções, escritas em idioma de algaravia, que versam sobre um tal de homo sapiens perdido e confuso num mundo em adiantado estado de decomposição”.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Entre a força e o lirismo - William Lial

William Lial

Com metáforas perfeitamente empregadas, assim como as demais figuras imagéticas que se tornam indispensáveis à compreensão e absorção de cada poema, com o lirismo e o naturalismo convivendo harmonicamente, cada qual adequado ao tema e a necessidade do poeta e da sua voz, com temas atuais, questionando nosso lugar no mundo, o fazer poético, o mundo em sociedade e outros mais, o novo livro do poeta Jorge Elias Neto¹, Rascunhos do absurdo, se mostra bem dosado entre a força e o lirismo das palavras.

O novo trabalho do poeta já nos permite vislumbrar o que teremos pela frente, ainda no poema sem título que serve de abertura ao livro, quando nos diz: “Tenho algumas verdades litorâneas./ Dessas que não molham os pés,/ mas se empanturram de areia/ e saem se enterrando ao mínimo sinal/ de proximidade do desconhecido”. Versos com os quais muitos podem se identificar, afinal, quem tem verdades absolutas?!

E nessas alfinetadas o livro vai seguindo, página a página, e no caminho encontramos O risco (p. 26), uma espécie de metapoesia que relata os movimentos de um “risco” rebelde que “esperneava ao mínimo/ indício de caligrafia” e “usava a camuflagem/ dos desentendidos” enquanto “serelepe,/ causava seus descaminhos” e “seguia desmoldando intenções”. Um rebelde que “não se deixava / ferrar com palavras” que “criava-se no silêncio” e “optou pela clandestinidade/ ao abandonar o traço”, como a feitura de um poema que não se constrói baseando-se em modelos, formas ou escolas, que foge às regras e se constrói por si só.

E a metapoesia também está presente no poema Singular (p. 28). O fazer poético na atitude de um velho poeta que no “derradeiro momento” ao ler seus versos compreende “ter carecido de deslumbramento”, pois “não deixou no leito das páginas/ palavras não ditas;/ nem ao menos rascunhos de alucinações”. “Rascunhos de alucinações”, uma bela figura metafórica que muito pode dizer e nos fazer imaginar.

Outras figuras também surgem no decorrer da leitura, como em Ventre vazio (p. 29) que dentre muitos momentos, também ligados ao fazer poético, descrevendo o caudal de emoções da criação literária, encontramos versos como “ao longe,/ seguia o choro ensaiando epílogo” e “o cheiro do cueiro/ fez parir a loucura”. E um pouco mais além, quase todo composto por uma grande imagem poética, temos o poema Polos (p. 34) que começa dizendo: “Meu pai vestia uma pele/ de sonhos amarrotados” e “tardava horas campeando/ pequenos nadas”. Isso faz o leitor, sensível a belas imagens, parar e idealizar circunstâncias, idealizar uma vida inteira que se enquadre nesses versos. E essa é uma das grandes qualidades das belas poesias, o poder de fazer seu leitor viver outro momento, noutro lugar, noutro corpo.

Já Só sei que vou te amar (p.41), “Parte IV”, traz um toque de erotismo ao livro, como se vê logo no início da primeira estrofe: “Começo a perceber/ um certo arrepio/ de santidade/ através da tua camiseta” e “somente o riso,/ na antevéspera/ do teu gozo,/ ou teu mamilo rijo de agora/ – esse futuro e presente –/ horizontalizam meus/ pensamentos”. Uma perfeita escolha de palavras que fazem o leitor se encontrar na cena, uma lascívia poética expressada na voz de alguém dominado pelo desejo.

Ainda no mesmo poema, agora na “Parte V” (p. 44), temos palavras fortes com um toque iconoclasta, rebelde, em versos como: “Bebi a cachaça das encruzilhadas;/ Roubei hóstias nas sacristias; o tridente do diabo/ enfiei no rabo da mãe de santo/ e fiz pior:/ encarei no olho do homem!”, os quais depois encerra sentenciando que “o frescor da pureza?/ Não encontrarás na minha pele”; versos que não poderiam ser diferentes para fechar toda a rebeldia do poema.

No poema Balada da carne (p.69), o realismo vem em forma de crueza, numa sinceridade naturalista. O personagem do poema sabe bem o que quer, dentro da sua ira seca, quando diz que “Já que à frente sempre estará o horizonte/ não me enterrarei além dos olhos”. E sem delicadeza “ordena” a todos: “já que eu disse sim,/ limitem os convidados/ presentes à minha embriaguez”, feito alguém que parece sentir-se estranho ao meio, deslocado. Não há metonímias, não há gestos brandos ou disfarçados, nem mesmo a si poupa o personagem, pois “já que a rima é farta; e o poeta,/ um estorvo”, segundo afirma, “que se recompense o primeiro idiota/ a me cortar a carne”; um momento machadiano, bem Brás Cubas, quando este dedicou seu livro ao verme que primeiro roeu as frias carnes do seu cadáver².

A poesia de Jorge Elias é também bastante visual, fotográfica. Certos versos, estrofes ou mesmo poemas inteiros nos põem diante dos olhos verdadeiros quadros, momentos congelados, parados a nossa frente, como podemos observar nos versos do poema 1º de janeiro de 2008 (p. 74):

(...)

No vazio do salão amanhecido
Ainda ressoam os ecos dos champanhes,
Os alaridos esperançosos,
Os sussurros de cumplicidade.

De sólido,
ficaram os confetes e serpentinas,
que nada entendem da solidão.

Há também poemas minúsculos, formados de pouquíssimos versos, mas que dizem muito, como 7 de janeiro de 2008, que com apenas três versos, em duas estrofes, mostra um homem, hoje, pequeno, recomeçando, distante do que já foi um dia: “Recomeço,/ e essa sombra de hoje/ nada diz do homem que fui” (p. 75). Poucas palavras que dizem tudo o que se quer dizer. Não precisamos saber mais nada, já sabemos tudo.

Em Querido homem! (p.76), Deus observa sua criação, o homem, e lamenta seu devaneio e seu desdenhar de tudo, e avisa que “para atingir o Sagrado não cabe/ o escambo”; não é com troca de favores com Deus que o homem conseguirá sua salvação. E a relha do Todo Poderoso termina com uma bela imagem Sua, caricaturado de homem, dizendo: “Nesse vai e vem da rede, vejo meus/ pés penderem soltos sobre o desafio/ do amanhecer”. Até podemos ver Deus sentado em algum parapeito, ou quem sabe sobre uma nuvem, balançando a pernas.

Na página seguinte, em Poema para o homem contemporâneo, mais uma crítica ao homem e seu tédio, em versos que se confessam políticos, engajados, ao afirmarem ser esse poema a liturgia de um cético que tem como credo “um poema diletante/ que roga à tua carne/ a fratura que os ossos recusaram”, e que “tem uma ambição desmesurada:/ o ressurgimento do homem/ desse tronco de lama”.

As metáforas são realmente uma constante no livro. Metáforas fortes, expressivas como as do poema Taramela moral (p. 82), quando diz que “o facho/ desvirginou o segredo da fechadura;/ trouxe a incerteza/ da parcela do corpo”, e que “do outro lado/ as paredes acenam/ por sombras”, e a humanização nos “lençóis com feição de espera”³. As figuras imagéticas aqui dão vida ao inanimado que personificam características humanas.

Já Le Papillon blessé (p. 108), retrata a fragilidade do homem etéreo e a insignificância em que vive como “borboletas que persistem/ suspensas na cor indistinta do tempo”, mas que “sempre restará o marolar das asas,/ cortejando, com seus signos,/ aquele que, no absurdo da vida, se perceber/ só”.

E para encerrar, um dos melhores poemas do livro, Céu de bombas (p. 92), que transcrevo aqui por inteiro. Um poema forte, de cunho social, falando de guerra e da sensação de estar no meio de uma. Os grifos que encontrarão no poema são meus, para compartilhar com meu leitor os versos, as metáforas e outras figuras que mais me chamaram a atenção e que mais demonstram a força do poema e de seu poeta, como nos versos metafóricos “flashes de bombas” e “estrelas dos profetas cruzaram os céus”, além da bela ironia na última estrofe. Vamos ao poema:

Céu de bombas

Não interrompam o cotidiano das serpentes.
Elas não buscam no homem seu veneno.

Por que choras por mim, meu pai?
Cumpri com o que me coube
nessa Gaza de feras.

Em cada criança morta, sacrificada,
um objetivo insano.

Despeço-me do dia
sob flashs e bombas.

Uma fome doentia
molhou teu corpo com meu sangue.

Estrelas dos profetas cruzaram os céus
e pulverizaram os créditos de
minha infância.

A ambição do poder comeu meu destino.
Com a força, roubaram-me o sorriso.

Meu pai, nem sei perguntar por quê.
Não tive tempo de me nutrir de ódio.

Pensando bem, pai,
que as lágrimas partam.

Transpareça a indignação em teu rosto
nas telas indiferente do Mundo.

Sobretudo, crê, pai,
crê no triunfo do olhar da tua filha,
fosco de morte,
voltado para esse lindo céu,
reluzente de bombas,
nessa noite de um domingo de fúria.

Enfim, Rascunhos do absurdo é um livro que impressiona e cativa, dada sua força, já mencionada acima, e sua qualidade de composição. Apesar dos muitos momentos de forte expressividade no uso das palavras e das metáforas, em nenhuma ocasião o autor se excede ou se torna verborrágico, prolixo. Cada figura está em seu devido lugar e cada palavra expressa o que precisa expressar para que o leitor sinta e absorva cada verso.

 
ELIAS NETO, Jorge. Rascunhos do absurdo. Vitória: Flor&Cultura, 2010. 108 p.