quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

NOVO LIVRO - GLACIAL



Caros amigos:

Acabo de lançar meu novo livro pela Editora Patuá.
Para aqueles interessados em adquirir um exemplar, segue o link da Editora:
http://www.editorapatua.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=294&Itemid=53

Aproveito para deixar meu abraço de fim de ano para todos.

Jorge Elias Neto

terça-feira, 21 de outubro de 2014

ÚMIDA


 

 

Farfalham nas rachas da ilha
línguas ásperas

vento sul

        – alado centauro –

entre coxas de sereias órfãs

Maresia
poeira salgada nos cílios
corte na lamina dos lábios

gozo entre versos
e um sol perdido
no horizonte das dúvidas
de ser o sexo das putas
o melhor berço
para um segredo 

:o cansaço

  

Mar

   – orgia divina –

desafogo do escroto

Murmúrio
açoite das ondas
nas carnes, nas bundas
dos que de quatro vasculham
a ira do Mundo

 Estranha rocha
estrangeira
trazida de além mar


Seu nome de batismo

sustenta as preces

sob a carne crua

  

Sustenta a paz dos escombros

do rombo

no jazido das encostas

que recebe afetos

do que late 

        e engorda

e geme

para ser feliz.

 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Caranguejo Neles!

           Jorge Elias Neto

Para aqueles que concordam comigo sobre o desmoronamento das relações interpessoais, a falta de integração da família, oriunda do advento das mídias portáteis, que fazem de um SELF (tradução: Sou ELinda(o) na Foto) uma falsa mensagem de confraternização, segue a ideia que me ocorreu após uma conversa com o Tommasi, mentor do motor a álcool,  ídolo de muitos, nos anos oitenta, nas corridas de Kart e Stock car: reunir a família para comer caranguejo.
Surpresos...!?
O que um ser primitivo, o famoso uçá – como chamavam os indios antes de Cabral -, com sua armadura pré-histórica, acostumado a andar de lado, pode, contra a tecnologia das mídias, dos tabletsipod,ipadzap-zaps e facebooks da vida?... Simples, meu caro Watson: alguém consegue comer caranguejoou siri sem sujar as mãos?
Amigos, o hábito faz o monge. Façam como o Tommasi: acostumem seus filhos, desde pequenos, a fazer parte do grupo dos fanáticos por caranguejo. Digo isso por pensar que comer caranguejo não é coisa para glutão ou gourmet. Comer caranguejo é um ritual. Leva horas em torno da mesa. E, quando acaba, após deixar uma verdadeira montanha de restos de cascas empilhadas, já não se sabe se a satisfação decorre da plenitude gástrica ou do prazeroso, e necessário bate-papo... Arrisco dizer ser desnecessário fazer uma opção, já que as duas alternativas são complementares e indissociáveis. Mesmo aqueles mais preconceituosos, que resistem a destrinchar o artrópode com o famoso “martelinho” de madeira, não conseguem resistir a uma bela puã com vinagrete.
Capixabas, conclamo a todos ― e vejo nisso um ganho suplementar em favor da preservação de nossos manguezais, pois sem eles não existe siri nem caranguejo ― a cultuar a caranguejada em família.
Alguém consegue imaginar, por mais fanático que seja, uma pessoa que, com a mão suja de caranguejo, consiga ficar com os dedos convulsivos tateando a tela de um celular? Ou alguém que ouse alternar uma pata de caranguejo com uma “partidinha” no tablet?
E digo mais: sejamos inflexíveis. Nada de deixar uma toalhinha com álcool à disposição dos compulsivos-obsessivos de plantão. Eles que aprendam a ter autocontrole. Afinal, comercaranguejo é terapia ― terapia de grupo.
Tem até um mantra... O som característico que se produz quando se busca, no fundo das patas, sugando com avidez, a porção mais temperada do petisco.
Não esqueçam: não se come caranguejo sem sujar as mãos. E isso é um artificio inteligente para aqueles que percebem a complexidade do momento atual e a verdadeira falácia que são as relações travadas virtualmente. Cumpramos com nosso papel contra o distanciamento entre as pessoas - sejamos pró-ativos. Como já disse em uma crônica anterior : fiquemos atentos à síndrome da pseudopresença (o estar não estando).

Por isso digo: caranguejo neles.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

O arquiteto, o menino e a janela

Da janela vê-se o Corcovado
                                      O Redentor que lindo
                                                    Tom Jobim



A cidade é feita do conflito.
E se um menino, morador em um morro de nossa cidade, tivesse a parede de sua casa perfurada por uma bala? Como qualquer criança, se oorifício permitisse —  e é bem possível que isso ocorra hoje, com o armamento pesado utilizado nas verdadeiras batalhas travadas nas nossas cidades —  , ele encostaria, curioso, seus olhos naquele buraco para ver o que aquela luz trazia  —  uma imagem  visível do lado de fora de sua casa.
Ouvi Paulo Mendes da Rocha, o celebrado arquiteto capixaba, dizer que na música de Tom Jobim, Corcovado, o importante não é o Cristo Redentor visível, com toda sua potência de Ídolo maior, abrindo os braços sobre a cidade;o importante é a janela que possibilita essa visão. Eis um olhar que aproxima oarquiteto do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Mas e o nosso menino, que olhou através daquela pequena “janela” tardia, não incluída no projeto inicial de sua casa, uma “janela” construída de fora para dentro, feita por um autor anônimo ou não, aleatória, que quase lhe custou a vida? O que ele poderia dizer ou pensar? Poderíamos trabalhar com probabilidades.
Primeiro caberia saber se era o primeiro ou apenas mais um buraco oriundo do conflito urbano. Fosse o primeiro, e o menino olhasse, talvez visse apenas a parede contrária de um beco, uma vida a transcorrer como se nada tivesse ocorrido, pessoas correndo, pessoas chorando, pessoas subindo e descendo em suas jornadas de Sísifo. Agora, e se o menino nos surpreendesse,  e sentisse uma brisa ligeira a tocar-lhe o rosto, e ouvisse um barulho de bola rolando no quintal do amigo ou desse um enigmático sorriso ao observar que, caprichosamente, o buraco estava em um local privilegiado para  vigiar o amadurecimento das goiabas do vizinho?
O passado nos ensina que vivemos e viemos do conflito, disse Paulo Mendes da Rocha. A cidade se faz de conflitos, e triste daqueles nãoatentos para esta verdade. O amar, o odiar, o querer ser desejado, o desejar sem limites. Um aglomerado de desejos e insatisfações. E tentamos ignorar isso tudo.
Que seja única a janela do menino. Não abusemos das probabilidades estatísticas. Não sejamos hipócritas de fazer do caos urbano um simples poema.
Não basta tampar o buraco na parede, o sol com a peneira, ou seja lá que ditado popular venhamos a pensar.
Na verdade, o menino mora em uma casa, tem uma família e suas dificuldades inerentes aos desvios e desigualdades sociais. O que o meninoprecisa é de uma janela que abra de dentro para fora, que tenha um trinco – é verdade – mas que, quando aberta, sem esforço, o menino possa ver no sem-sentido da vida algo que emociona e o faça crescer como Homem.


segunda-feira, 28 de julho de 2014

PARA AS CRIANÇAS DE GAZA

A revolução dos anjos


As mãos se encontraram
e da força fez-se
                       a escuridão

Pássaros perderam-se na noite
mas não tinha sentido voar
― caminho ―
              nenhum ―.

(O vasto pertence aos
        indomáveis
e a suas lágrimas).

As mãos se encontraram
com a força que subsistia no silêncio
e estenderam sobre o anjo
suas asas
               tombadas.

 Parque das Hortênsias 26-07-14


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 Sorriso da inocência


Pousaram para a fotografia
         as crianças.

Estavam quietas
despojadas
sob o Sol da tarde
Sem pressa
não lhes ocorriam mais brincadeiras 

Foto para guardar
        ― lembrança ―

Olhinhos ausentes
a fitar a história

E fez-se um frio
          despido

de qualquer certeza.

Vitória, 26 de julho de 2014


terça-feira, 22 de julho de 2014

TRILOGIA PARA GAZA - Jorge Elias Neto


Céu de bombas
                            

Não interrompam o cotidiano das serpentes.
Elas não buscam no homem seu veneno.


Por que choras por mim, meu pai?

Cumpri com o que me coube
nessa Gaza de feras.

Em cada criança morta, sacrificada,
um objetivo insano.

Despeço-me do dia
sob flashs e bombas.

Uma fome doentia
molhou teu corpo com meu sangue.

Estrelas dos profetas cruzaram os céus
e pulverizaram os créditos de minha infância.

A ambição de poder comeu meu destino.
Com a força, roubaram-me o sorriso.

Meu pai, nem sei perguntar por quê.
Não tive tempo de me nutrir de ódio.

Pensando bem, pai,
que as lágrimas partam.

Transpareça a indignação em teu rosto
nas telas indiferentes do Mundo.

Sobretudo crê, pai,
crê no triunfo do olhar de tua filha,
fosco de morte,
voltado para esse lindo céu,
reluzente de bombas,
nessa noite de um domingo de fúria.


A praça

Estaria reservado no escaninho dos deuses
tão impensada tormenta?

Movimento primevo:
revoada dos pombos.

Quebrado o instante,
brancas penas restaram na praça.

Crianças absortas,
festejando o dia,
imaginaram dragões e fadas.

Anciões se entreolharam
e cismaram com o céu...

Ato contínuo:
zunido, estrondo,
perplexidade.

Malfadado encontro:
pó e silêncio.

Os primeiros gritos,
embotados pela poeira do subentendido.

O som antecipou
a imagem suspeitada.

Fez-se a desolação
nos rostos que se ergueram.

Os primeiros gestos, lentos,
não acompanharam o frenesi do pensamento.

Desespero.

– Como é possível
minar tanta água
desses rostos de areia?


Coube ao acaso
a seleção dos fortes
(que recolheram os corpos).

Ao poema cabe
despejar sobre o chão,
e na cara dos facínoras,
uma resma de dúvidas.

De algum ponto,
cabe o recomeço.

Sonhos no absurdo

                                                                            Não tirem do poeta a visão;
podem condená-lo à loucura
do mergulho no poema sem fim.
I

O poeta sabe a textura exata do sonho.

E por perceber que os números são símbolos
que poderiam arrastar seu povo,
foi o primeiro a se equilibrar nos destroços.

Não azulava as dúvidas com preces
e entendia a sujeira como um vício da realidade.

Caminhando em silêncio,
observou que a ausência de espaço
não havia poupado nem mesmo as sombras.

Homens desencontrados
cruzaram o limite da incerteza
e bradavam:

– Não pedi esse conflito.
Mas, na dúvida,
deixo a arma engatilhada!

Nunca foi do poeta o primeiro momento...
II

Aos primeiros que o ouviram disse:
– Se abuso daqui à esquina de minha casa,
perco o controle do dia.

– A vida é ritual de pontes.
Vejo triste que, entre o dito e o pensado,
ficou uma ponte tombada.

– Hoje massacraram nossas verdades,
e enxergamos o abismo.

Choraram juntos a mais temida das mortes.


III


O poeta sente o absurdo do tempo humano.

            O homem aquietará.
            E juntos, todos os ponteiros
            deixarão  de ter sentido.

É do homem buscar refúgio nos dias.



IV

Nos escombros,
na esquina antes sem luz,
sentaram  as crianças.

Diante delas
o poeta circundou com o dedo
seu corpo na areia.

Com um salto
surpreendeu-as com a facilidade
que superou o limite de sua prisão.

O poeta percebe o momento exato do nascimento do sonho.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Um dia após o dilúvio - Brasil e Alemanha

Um dia após o dilúvio
                             Jorge Elias Neto


“Ninguém segura a juventude do Brasil”...
Assim terminava uma das canções tocadas nas rádios, em tempos de ditadura militar, para enaltecer o escrete de 70 e amainar os ânimos dos brasileiros. Águas passadas... Época do então falado “Milagre econômico”. Sérgio Buarque de Hollanda ainda não tinha dito da morte do homem cordial, nem Chico, o nosso Chico, havia pedido  que o Pai afastasse o cálice com vinho tinto de sangue.
O Brasil já não é mais jovem, a pirâmide demográfica de ápice pontiagudo já não existe. Estamos mais velhos, o homem cordial já morreu e esboçamos uma certa indignação; mas insistimos no improviso e não investimos em educação e saúde como devíamos.
Águas passadas... Ontem, durante o jogo do Brasil, e eu estava LÁ, ouvia-se uma paródia do grito da torcida alemã: “Mil gols, mil gols, só Pelé, só Pelé...” Mais uma tentativa de se buscar uma música tema para a seleção. Faltou tanta criatividade que a copa acabou para nós e não se conseguiu uma música que representasse a seleção de 2014. Enaltecer Pelé, maravilha... Ironizar com o Maradona... Impossível evitar...  Mas, de súbito, veio a tempestade – e passou o sonho levado pelas águas.
Um alemão sexagenário, sentado ao meu lado, após os seis minutos fatídicos - a enxurrada de gols da equipe alemã -, me perguntou, tampando os olhos – expressando espanto – o que estava acontecendo com o Brasil. Não soube responder, eu precisava pensar, e o torcedor de plantão só me permitia o estarrecimento.
E já que futebol é crença, a torcida ensaiou um “eu acredito, eu acredito”. Mas foi se apagando a voz dos brasileiros no estádio, pois não se podia mais esperar o milagre.
Seca em São Paulo, enchente no Sul, dilúvio no Mineirão. Palmas para os alemães.
Embora a imprensa tenha buscado imagens dramáticas de torcedores chorando, o que mais observei foram brasileiros ignorando o jogo para ler ou enviar inúmeras mensagens irônicas e satíricas nos Smartphones. Matéria para os sociólogos de plantão ...
Hoje, quando me dirigia da derrota para Vitória, passei pelo viaduto que desmoronou em BH, cruzei com um belíssimo projeto de Oscar Niemeyer e me sentei no saguão do aeroporto para aguardar o voo. Em minha frente, as obras interrompidas no aeroporto de Cumbicas estavam cobertas por uma imensa bandeira do Brasil e por tapumes que traziam a figura de uma criança dizendo da esperança em nosso país.
Eis a imagem símbolo da Nação  utilizada para encobrir a falta de compromisso das autoridades. Mas ela já se mostrava sem propósito após a derrota da seleção. Muitos apostam que o brasileiro transfira sua crença incondicional na seleção para fora dos gramados.  Muitos apostam nisso. Sempre apostaram e apostarão.
Quando propus a música do Cazuza como tema da Copa ninguém me ouviu. Lá vai agora, quem sabe cole: “Brasil! Mostra sua cara, quero ver quem paga ...”
Sim, de cara à mostra, diante do espelho, o brasileiro deve  olhar-se e pensar. Pensar e acreditar. E acreditar dessa forma já não é ter apenas esperança. Acreditar deixa de ser uma atitude passiva. É assumir, e não transferir a responsabilidade - é crer na possibilidade de transformação.
E já que lembrei o Cazuza : “Nossa piscina está cheia de ratos, nossas ideias não correspondem aos fatos, o tempo não para ...”. E o tempo não parou após os 90 minutos dessa terça feira, 08 de julho de 2014.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Minhas memórias das copas do mundo



                                                                  Jorge Elias Neto

Posso me dizer um veterano. São doze copas do mundo ... Posso me dizer, com tranqüilidade, médico, louco e técnico. Afinal, sou brasileiro, onde o pão e circo se equipara à Roma dos Césares.
Não me lembro da copa de 66, tinha então 2 anos ... Mas da copa de 70, apesar de não lembrar dos jogos – os quais acabei decorando, tantas vezes que assisti os vídeos ao longos dos anos (acabei guardando um selo histórico com a ilustração do soco no ar do divino Pelé ...) – lembro-me bem de sair com meu pai, jogo à jogo, na Avenida Jerônimo Monteiro e Avenida Beira-Mar ao som dos gritos e fogos. Alguém, por favor, me confirme se é delírio de criança, ou tiveram mesmo aquelas luzes no Penedo para receber o nosso Fontana ...
Fiquei abismado por saber dos “Noventa milhões em ação”. Já estava impressionado com os programas do Amaral Neto mostrando a Trans-Amazônica (e lembrar que meu irmão estava por lá com os irmãos Villas-Boas...). E dá-lhe “verde, amarelo, branco e azul anil. Eu te amo, meu Brasil, eu te amo...” E dá-lhe ditadura militar das aulas de Moral e Cívica no Colégio do Carmo ...
Veio 74 e o carrossel holandês... O Cruif e irmãos Vanderkerkhoff ... Mas o que me marcou foi a comemoração de um gol do Brasil. Dei um soco no ar e quebrei o lustre de cristal de minha mãe, corri e me joguei de joelho na sala (apenas me esqueci do tapete sintético que me causou queimaduras nas canelas) e, finalmente, peguei minha bandeira verde e amarela, corri para janela e desfraldei nossa flâmula para gritar um gol extasiado ... Olhei para baixo e só vi foi o vizinho do oitavo andar acender o pavio do fogo de artifício ... Tirei a cara, ouvi o estrondo e sentei arrepiado de medo na poltrona da sala. Passei a ser mais comedido em minhas comemorações.
E chega 78 dos irmanos ... Fiquei com aquele jogo do Peru entalado na garganta. Vai entender o que se passou com o orgulho dos herdeiros do império Inca ... Acabei de lembrar que ainda não conheço Matchu- Pichu... Uma lástima.
As copas de 82 e 86 me pegaram de calça curta. Encontrava-me no auge do fanatismo pelo futebol. Confiante com o excesso de craques ... Tínhamos uma grande seleção. Todo jogo nos reuníamos no Argentino com uma batucada de dar gosto – isso foi em 82. Já em 86, contavamos com a compreensão do Pirão que deixava aqueles jovens universitários beberem todas e batucar na frente do seu restaurante (e ele nem imaginava que, naquela época, nenhum de nós tinha grana para pagar por sua excepcional muqueca ...). Mas aquelas copas acabaram sendo duas grandes decepções...

As outras copas ... Das outras copas tratarei depois ... Isso é óbvio, se alguém está interessado em saber das memórias de um cronista entre quase 200 milhões de fanáticos torcedores ...

quinta-feira, 22 de maio de 2014

CRÔNICA

Os cachos dourados das borboletas

                                       Jorge Elias Neto


Como é curto o tempo da inocência.
 E ficará cada vez mais difícil sermos surpreendidos por uma criança em um momento de lampejo poético, algo apenas possível aos que começam a descobrir a linguagem. São tantas informações e imagens da mídia, que cada vez mais precocemente o vocabulário da criança é enriquecido, e isso ocorre na mesma velocidade em que se embota a espontaneidade – a inocência.
Subitamente uma criança diz algo, um simples comentário, tão inusitado e simples. Mas são esses os pequenos cristais capazes de revestir nossos dias com um pouco da beleza do infinito.
E não adianta pedir que a criança repita, filme com o celular e coloque no Youtube ... Perde-se a espontaneidade, já não está mais ali a imagem que fulgurou naquele cérebro tão jovem. Não, não é possível capturar em um vídeo esses momentos, que só cabem no espaço destinado aos sentimentos que nos aproximam do divino – o espaço da poesia.
 Esse tipo de situação foi feita para ser passada como fizeram nossos avós:  de boca a boca mesmo.
 É como o que o filho de uma amiga lhe disse, após ela receber alta do CTI: “Mãe, que bom que você não morreu. Você é tão quentinha." Qual poeta, me arrisco a dizer talvez um Manuel Bandeira, poderia ser tão perfeito ao falar do amor de maneira tão singela?
Quando diz isso, a criança não está sendo espirituosa, não é um chiste. Ela está sendo autêntica e descreve uma experiência emocional. Isso é divinamente primitivo.
Foi o que aprendi com minha filha quando acordamos em uma manhã ensolarada de domingo. Ela acordou, coçou os olhinhos, olhou para a porta e disse: “A porta está amarela !” Uma porta, fenestras, claridade...Não foi isso o que viu aquela borboletinha de cachos dourados... Ela surpreendeu o dia com sua visão multifacetada.
 A criança sabe olhar com a imaginação; vislumbra o voo sob o Sol da manhã.
E, quando chegou a noite, ela recostou-se em mim e sussurrou manhosa: “ Pai, meus olhos estão encharcados de sono ...”.


sábado, 18 de janeiro de 2014

JOVINO MACHADO

a vida não presta
quando eu adoro
e você detesta

*************

a vida é uma bosta
quando eu amo
e você não gosta

*************

a vida é vazia
eu vício
você vadia

*************

a vida é neblina
eu enlouqueço
você sublima

*************

a vida é enfadonha
você fuma maconha
eu como pamonha

*************

a vida é careta
você pula do acaiaca
eu bebo no maletta

*************

a vida não presta
quando eu subo bahia
e você desce floresta

*************

a vida é inimiga
quando eu te odeio

e você nem liga


Jovino Machado (Belo Horizonte/MG). Formado em Letras (UFMG). Atua como restaurateur. Publicou 10 livros, entre eles Trint´anos Proustianos (Mazza Edições, 1995), Disco (Orobó Edições, 1998), Samba (Orobó Edições, 1999), Balacobaco (Orobó Edições, 2002) e Fratura Exposta (Anomelivros, 2005). Recentemente, 2009, também publicou a plaquete poética Meu Bar Meu Lar. Próximo lançamento: Cor de Cadáver (Anomelivros, 2009). Participações em Dimensão (Revista Internacional de Poesia, Uberaba, MG, 1998), A Poesia Mineira no Século XX (Imago, Rio de Janeiro, 1999), A Cigarra-Revista de Poesia (Santo André, SP, 2000), O Melhor da Poesia Brasileira – Minas Gerais (Joinville, SC, 2002), antologia poética O Achamento de Portugal (Fundação Camões, Lisboa, Portugal e Anomelivros, 2005), Suplemento Literário de Minas Gerais (2007) e Rascunho (2008). Menção honrosa na revista literária da UFMG (1991) e terceiro prêmio de Poesia Falada de Campos dos Goytacazes (RJ, 2002). E-mail: jovinomachado@yahoo.com.br  Blog: http://jojomachado.zip.net