sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Saudável



Humores, farrapos,
cachaça.
Rumores, gargalos,
cabaços.
Batuques, bagulhos,
               Carcaça.
E eu debruçado
                no ocaso.


Jorge Elias Neto

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Lêdo Ivo


Uma busca incessante

Ainda não desisti de encontrar Deus.
Desconfio que o gavião o esconde em suas asas
e os sonhos o abrigam nas dobras de sua oculta sabedoria.
Às vezes, um grito dilacera o espaço estival
da várzea que divide as minhas florestas.
Então sou inclinado a acreditar que ouvi
o grito de Deus, após o longo silêncio.
Deixo de pisar a formiga negra que avança
numa saliência da estrada em declive
e me envolve a percepção que consegui evitar
a morte de Deus, em um de seus disfarces.
Dedico o dia inteiro à procura incansável
e de repente a noite cai: a noite negra como uma formiga.
Deus passeia incólume entre as constelações.


As palavras banidas

Os poetas são coveiros que enterram palavras
e se contentam com algumas migalhas do dicionário.
Criaturas frugais, não admitem que as palavras brilhem como
                                                                           [luzes de navios

vistas da praia branca da página, da praia banal da vida.
Exigem que elas tenham a submissão dos bichos domados de
                                                                                   [ um circo
ou andem trajadas com o burel dos franciscanos.
Mas na noite frígida varrida pelas constelações
as palavras banidas se levantam de suas tumbas
e, no espaço reservado às fulgurações perpétuas,
compõem o grande poema do universo.

  
A manhã ensangüentada


Míssil, estrela dos homens!
Cada lado do mundo tem muitos lados
e fronteiras que se dilatam na treva.
Dobro uma esquina e vejo uma nuvem
guardar um relâmpago.
Um tambor belicoso está sempre rufando
e a guerra é interminável.
Assediado por vozes estrepidosas e gestos homicidas
atravesso a manhã ensangüentada.
Uma mão pousa em meu ombro. É um anjo.
é simplesmente um anjo
no mundo que se desfaz em medo e horror.


Lêdo IvoPlenilúnio: TOPBOOKS EDITORA, Rio de Janeiro, 2004     

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Oscar Gama Filho - poema inédito


Para Curar um amor Doente
Oscar Gama Filho
A ideia era te alimentar
com o amor quântico.
A cura estaria no meu verso
e, ao mesmo tempo, nos confins do universo.

Desintegrado, você se repartiria,
Repartindo-se, esqueceria de si.
E, ao voltar a si, se seria.

Sendo-se, se redimiria ao bem estar,
Tábula rasa, se refaria no ar risonho
e apenas dele se alimentaria o sonho.

Itaparica, 27/10/2012



Oscar Gama Filho nasceu em Alegre, E.S., em 31 de março de 1958. Publicou seus poemas em De Amor à Política, 1979;  em Congregação do Desencontro, 1980, em O Despedaçado ao Espelho, 1988 e em O Relógio Marítimo, pela Imago, em 2001. Procurou o tempo perdido em obras como História do Teatro Capixaba: 395 Anos, 1981, Teatro Romântico Capixaba, publicado pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas, em 1987, e Razão do Brasil, lançado pela José Olympio Editora em 1991. Traduziu-se para Rimbaud no conto-poema-ensaio-tradução-crítica Eu Conheci Rimbaud, de 1989. Realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, e gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, contendo músicas em parceria com Mario Ruy. Dirigiu suas peças teatrais A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico. Profissionalmente, é psicólogo clínico. 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Indagações



Em que pés
se sustenta o homem
cujo deus
interior
– atordoado –
não mais justifica
a fome do prato
sem hóstia,
do temor
sem abrigo
de uma morte
sem sentido?

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   A primeira gota
carrega sua identidade
nesse caudal?
Ou se dispersa
como os homens
no sufrágio das almas
nessa penúria dos eleitos
que rogam delirantes
a diluição de sua irrelevância
aos pés da cruz?


Jorge  Elias Neto




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Gelo estável



O enredo da bala cruzando
os olhos do pátio
‒ fingindo inocência

O milésimo seguinte
            ‒ oculto ‒
no deblun do tempo

O bolso vazio
do corpo
embalado em papelão
num beco
de saudosas paisagens

A verdade
do paquiquerme
cobrindo os olhos
com enormes orelhas

O rústico desfiando
o pelo do urso
sob os pés
enlameados

As lantejoulas
vestindo  perdulários
na simetria dos quatro
cantos da casamata

A textura vulgar
do remendo
da insensatez

A pústula
que não rompe
não vasa
                    pois já não importa.

Jorge ELias Neto

domingo, 28 de outubro de 2012

José Inácio Vieira de Melo


MOISÉS

Há sempre uma azia louca,
há, desde sempre,
uma árvore em chamas,
o homem é assim:
um tição perdido,
uma estrela sem guia.

E o mar é cabelo aberto ao meio
– a ruiva cabeleira azul –,
o mar é mijo encarnado
que se fende com espada,
cajado sagrado de encontro
às verticais ilusões.

E conduzir sem saber para onde,
e dar voltas sem nunca chegar,
e, percebendo a morte,
inventar a terra prometida:
lugar do qual suas sandálias
nunca darão notícias.


Decifração de abismos: 1998 a 2001 / José Inácio Vieira de Melo. – Salvador: J.I.V. de Melo, 2002.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A boca do inefável


Cobre-te melhor
a seda rasgada,
contornando teu corpo,
nas fendas de meu desejo.
E esse cheiro
das madrugadas
em que me masturbo
de tanta insônia.
Os momentos
perdidos, em um sonho
mau, tornam justo esse
pesar por amanhecer,
e ter que partir
nessa rotina
que me afasta de ti,
obscena mulher,
de língua áspera,
imensa,
onde derramo
minhas noites de macho
                  perdido.

Jorge Elias Neto

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Tempo espanhol - Murilo Mendes


São João da Cruz

Viver organizando o diamante
(Intuindo sua face) e o escondendo.
Tratá-lo com ternura castigada.
Nem mesmo no deserto suspendê-lo.

Mas
Viver consumido da sua graça.
Obedecer a esse fogo frio
Que resolve em ponto rarefeito.
Viver: do seu silêncio se aprendendo
Não temer sua perda em noite obscura.

                        *

E, do próprio diamante já esquecido,
Morrer, do seu esqueleto esvaziado:
Para vir a ser tudo, é preciso ser nada.


O PADRE CEGO

Não abençoes a espada.
A morte lúcida não virá da espada do homem,
Antes virá da estocada de Deus.

Tu que consagras o pão e o vinho,
 Por que abençoas a espada?

Queres o regresso do rei Felipe:
É um esqueleto de mármore.

Não distingues próximo à tua casa
 O rio subterrâneo que marcha
Desde a Galícia à Andaluzia.
Não distingues o timbre áspero da greve.

És pai vigilante, ou assasino?
Não abençoes a espada.


Tempo espanhol – Murilo Mendes – Rio de Janeiro: Record, 2001.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Subversivo


Régua lisa e desdentada,
regra viva e libertina.
Mera pausa? Mesa farta?
Rega a seca vespertina.
Mal calçada, descoberta,
virulenta e cabotina,
contamina o poeta,
a emaranhada rima.
Guerra justa, proveitosa,
terra fraca, saturada,
passa faca, beija a amada,
desconserta a rotina.
Pois caminho de poeta
passa pela velha rima.



Obs: mais um sonolento

Jorge Elias Neto 

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Gabriel Menotti Gonring


Idolatria

Um pensamento atrevido e blasfemo em minha mente se refugia:
Que delicioso sacramento teu corpo não daria.

Conto de fadas

Entre utopia de fábula e realidade:
mero câmbio de passividade

Enquanto naquela
as dores de amor vingam
Nessa,
são vingadas.

Arquiteto de Elefantes

A poesia não salva vidas,
nem minha música te fará sorrir
ou dançar.

Mas, se não posso ser teu novo messias,
deixa-me pelo menos um papel de anticristo...


II. Profética Extática

Vogais são divindades: se exprimem
mas não se explicam

Ressoam em si mesmas, inteiras
Incompreensíveis
Presunçoso silogismo do ego

Consoantes são sofistas aleijados
que inúteis, se monásticos ateus

Mas entretanto,
se com iluminação ludibriados,
Multievangelizam deus


Retincênsias

Noite augusta
Noite

Eu cresço
De dentro pra fora

Bem-vinda aos quintos


1°livro – publicado aos 16 anos de idade

Gonring Gabriel Menotti - Ensaios para Taxidermia – edição do autor (Brasil/1999)

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Meu corpo


                                                                         Cumuruxatiba - Foto: Jorge ELias Neto



                                       Para Berredo de Menezes
Meu corpo
é essa areia
rarefeita
que parte
do deserto
e impregna
as pétalas.

Meu corpo
é um grifo nas dunas
que se desfazem
em Mundo.

Meu corpo
é a velhice de um tempo
desabençoado
pelo silêncio.

Meu corpo
é a textura vulgar
de um remendo
da insensatez.

Meu corpo
é pressentimento
de moeda
que dissolve o pecado.

Meu corpo
é bojo de névoa
ruminada no pasto.

Meu corpo
é a universalidade
de um nada carente
de sentido.

Meu corpo
exilado na descrença
                                jaz
no giral de ofertas
de um supermercado.


Jorge Elias Neto

domingo, 2 de setembro de 2012

O ritmo dos pássaros e dos fantasmas



 Uma ilha dentro da ilha. Poderia definir assim o local onde conversávamos, tranquilamente, sobre literatura. A constante discussão, entre os raros interessados, sobre a evolução – aí já se encontra embutida uma fonte de discordância excitante – que ocorreu na poesia brasileira nos últimos cem anos ... Bravos companheiros e fantasmas, nós, na ante-sala do auditório da Biblioteca Pública Estadual. Uma ilha dentro da ilha ...
Uma ilha, cujo centro – outrora presépio –, hoje, nos implora um resgate do abandono; cujos bairros sofrem um processo de verticalização que de tão absurdo já ouvi alguém dizer que é ecologicamente o mais correto.
 Fazer o quê, aqui ilhado, discutindo o poema enquanto lá fora se desfazem os tons poéticos e se constroem vitrines de automóveis.
E foi justamente um automóvel que interrompeu nosso entusiasmo e nos levou à varanda.
Deparamos com algo comum: um carro cujo motor enfurecido urrava para funcionar. No mais, tudo transcorria “tranquilo”: os pedestres passavam, as crianças jogavam futebol na quadra. Realmente nada de anormal acontecia.
 Mas um bando de anus brancos foi buscar repouso (era fim de tarde) nos galhos da aroeira, justo onde estacionara o carro.
Logo que os entusiasmados anus começaram a lançar seus piados costumeiros, os meninos interromperam a pelada, e o que estava mais perto da grade de proteção passou pelo buraco utilizado como acesso,  aproximou-se do pé da árvore e foi logo lançando um: − Cala boca p... (e o som se propagou como uma pedrada que calou imediatamente os anus e os poetas).
Um amigo me cutucou e mostrou uma pixação no muro da quadra: “ O ritmo mudou”.
Saímos da varanda rindo do que consideramos, naquele momento, um chiste.
Restou o ruído do carro para o bem dos ouvidos sensíveis de crianças que não aprenderam a apreciar a poesia.

Ilha de Vitória

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Sonolento para apaziguar borboletas

                                                                            Pintura: W J Solha




                                                                            Para W J Solha
A sombra é neutra, e desandado o escuro,
e, se não há certezas, há o adeus,
da emoção que dura ao saber-se nulo
o testemunho erguido de um deus.
E se silente a cama – à procura
da insignificância hirta e desperta –
oferecer leito e cocho à loucura,
dizer-se talvez louco, mas alerta.
O chão é leito tosco, mas correto
a todo ser avesso a esperança,
àquele que titubeia e tropeça,
na pedra desolada e, sim, temida
que rola o descaminho, sem inércia.
Salvam-lhe a vida as asas de poeta.

Jorge ELias Neto

Esclarecimento: defino como sonolento meus primeiros poemas-estudo em busca do entendimento da métrica e formas fixas.

sábado, 25 de agosto de 2012

Ungaretti - poemas escritos durante a I guerra mundial



Na galeria

Um olho de estrelas
nos espia daquele açude
e filtra sua bênção gelada
sobre este aquário
de sonâmbulo tédio.

Lindoro de deserto

Um bruxuleio de asas fúmidas
rompe o silêncio dos olhos

Com o vento se debulha o coral
de uma sede de beijos

Perturba-me a aurora

A vida se me trasvasa
num enredo de nostalgias

Agora em mim se espelham os pontos do mundo
que tive por companheiros
e farejo um rumo

Até a morte ao sabor da viagem

Temos as tréguas do sono

O sol enxuga o pranto

Cubro-me com o manto morno
de lind’oro

Deste terraço de desolações
me entrego ao abraço
do bom tempo


Vigília

                                        Cima Quattro, 23 de dezembro de 1915

Uma noite inteira
jogado ao lado
de um companheiro
massacrado
com a boca
arreganhada
voltada para a lua cheia
com a convulsão
De suas mãos
entranhada
no meu silêncio
escrevi
cartas cheias de amor

Nunca estive
tão
aferrado à vida


Manhã

                           Santa Maria La Longa, 26 de janeiro de 1917


Ilumino-me
de imenso


 Vaidade


                              Vallone, 19 de agosto de 1917

De repente
se eleva
sobre os escombros
a límpida
maravilha
da imensidão

E o homem
curvado
sobre a água
surpreendida
pelo sol
se descobre
uma sombra

Embalada
e pouco a pouco
desfeita



Regresso

AS coisas guarnecem de rendas uma extensa

                                   [ monotonia de ausências

O agora é um pálido invólucro

Rompeu-se o escuro azul das profundezas

O agora é um árido manto



Ungaretti, Giuseppe, 1888-1970. A alegria: edição bilíngüe; tradução e notas Geraldo Holanda Cavalcanti. – Rio de Janeiro: Record, 2003.

terça-feira, 21 de agosto de 2012

Os canários do hortomercado


Acostumei-me a tomar o café da manhã na janela da cozinha, ouvindo os bem-te-vis. Um retorno à infância, no parque Moscoso, entre árvores e lagos tortuosos, ainda sem muros e assaltos.
Lembro-me das idiossincrasias... Das tartarugas marinhas, esbaforidas, enormes, não entendendo a falta de sal naquelas águas paradas, cheias de marrecos e gansos.
Mas o que mais me intrigava, criança ainda, desconhecedor do saudosismo dos primeiros imigrantes europeus, foi ter que substituir em meu imaginário, os canários-da-terra, e sua plumagem amarelo-canarinho – isso em plena copa de 70 –, que me acostumei a admirar na fazenda do meu pai, pelos tons pastel dos pardais. Aquela variação de cinza e marrom podia ser uma camuflagem adequada à falta de biodiversidade dos bosques e cidades europeias, mas dava um tom meio insosso às minhas manhãs. Se bem que eles eram engraçadinhos com seus saltos e ousadias...
Passaram-se longos anos e com eles sumiram os canários. Pássaro perseguido por seu canto e plumagem, preso em gaiolas (que muitas vezes eram mantidas abertas para entrada e saída dos casais que sempre retornavam para alimentar seus filhotes).
Recentemente, com um certo “adestramento” de meus iguais, os canários repovoaram as cidades do interior. Isso me deu até a ideia de conversar com os órgãos responsáveis sobre se seria possível trazer alguns casais para a ilha de Vitória ...
Hoje, vim mais cedo para o trabalho, parei em frente ao hortomercado e fiquei surpreso quando vi dois filhotes de canário brincando em meio à ansiedade dos carros no sinal vermelho. Fiquei preocupado: vai que alguém atropela aqueles jovens indefesos ...
Então observei o macho adulto, com a sua plumagem amarelo-vivo e cabeça vermelha, sair de um fio elétrico e arrebanhar suas crias. Surpreso, vi esverdear o sinal, e tive que cruzar a avenida.
Andei, talvez uns 50 metros, pensando, que mesmo com o passar o tempo, a cor amarela do canário permaneceu entranhada em mim.
 Mas lá estava ele, interrompendo meus devaneios, com um tom pardacento sem vida, fugindo aos saltos, da marquise do prédio que começava a ser lavada. Só que desta feita já não era um pardal e sim um homem que recolhia, torporoso, um colchão aos farrapos. Lá estava ele, o usuário de crack, para me lembrar o quão fragmentada é a esperança e que a realidade vestiu de cinza nossa cidade.

 Vitória, 10 de agosto de 2012

Jorge Elias Neto

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Paranóia


O minuto dividido
em sessenta pressentimentos.

Jorge Elias Neto

domingo, 5 de agosto de 2012

Entrelinhas da perdição

 
Farfalha o sargaço
no remanso
desse mar extinto,
despido de surpresas.

Perde-se o sal
nos lábios
ingênuos
que recolhem o sabor
da morte
triturada
― pacientemente ―
como uma esperança.

Jorge Elias Neto

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

EUGENIO MONTALE - III

APENAS UM VÍCIO

Bufões transvestidos de poetas
burocráticos arrogantes,
pedantes pregoeiros
vós sois os porta-flâmulas
brandindo insígnias desbotadas.
Ser poeta não é um título de glória.
Apenas um vício natural.
Um fardo que por medo
amarramos mal.

  
      ***
A noite que se insinua entre os refolhos
mais escuros, compreendeu o segredo
do tempo, do espaço que divide.
A verdade está talvez nessa fímbria
que se adelgaça, no toco de cigarro,
ressurge naquele fundo de garrafa
abandonado à margem da ressaca.
O resto não passa mesmo de um pretexto
para sentir-se vivo e menos só.

    ***
Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
Terra que não quer perecer.

    ***
Falarás de mim com o mesmo
fervor que te anima quando
recordas o avô já morto.
A morte não é o sono,
é um país do qual não se retorna;
lenta ressoa e depois chega,
é a hora, e de improviso é tua vez
de desaparecer entre seixos e terra.


Montale, Eugenio, 1896-1981. Diário póstumo/ Eugenio Montale; tradução, introdução e notas de Ivo Barroso; prefácio de Marco Lucchesi. – Rio de Janeiro: Record, 2000.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O tempo passa


  
Quis o momento homenagear o imperfeito
Deu de costas ao brilho dos epitáfios
Saudou os vivos de olhar fugidio
Louvando cada qual por seu defeito

Jorge Elias Neto
(Verdes versos - 2004)

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Eugenio Montale - II




Traz-me o girassol que eu o transplante
no meu terreno queimado de maresia,
e a ansiedade de sua face amarela mostre
aos azuis brilhantes do céu todo o dia.

Tendem à claridade as coisas obscuras,
exaurem-se os  corpos num decorrer
de tintes: esses em música. Esvaecer
é portanto a ventura das venturas.

Traz-me tu a planta que conduz
aonde surgem louras transparências
e evapora-se a vida como essência;
traz-me o girassol enlouquecido de luz.

                    *

Chia a roldana dentro da cisterna,
a água sobe à luz e nela se funde.
Uma lembrança freme em balde cheio,
no puro círculo ri-se uma imagem.
Encosto o rosto a evanescentes lábios:
deforma-se o passado, faz-se velho,
pertence a um outro...
                                   Ah que já range
a roda, devolve-te ao negro fundo,
visão, uma distância nos separa.

                    *

Antigo, sou inebriado pela voz
que sai de tuas bocas ao se abrirem
como verdes campanas e se jogam
para trás e dissolvem.
A casa dos verões meus, distantes,
estava ao pé de ti, bem sabes disso,
lá na terra onde o sol é escaldante
e o ar se anuvia com os mosquitos.
Como estão petrifico em tua frente,
mar, porém não mais digno
me creio hoje da solene advertência
do teu alento. Logo me disseste
que o diminuto fermento
do meu coração era só um momento
do teu; que em mim estava no fundo
tua arriscada lei ser vasto e diverso
e fixo ao mesmo tempo:
e esvaziar-me assim de todo dejeto
como fazes tu que atiras nas bordas
com cortiças algas astérias
os destroços inúteis de teu abismo.


                           *

Quisera ter-me sentido tosco e essencial
Assim como esses seixos que revolves,
Comidos por salsugem;
Lasca fora do tempo, testemunho
De uma vontade fria que não passa.
Outro fui: homem fito que repara


Em si, nos outros,a efervescência
da vida fugaz ― homem demorado
nos atos que ninguém, depois, destrói.
Quis procurar o mal
que corrói o mundo, a pequena torção
de alavanca que para
o engenho universal; e vi a todos
os eventos do minuto
prestes a desjuntar-se num abalo.
Na trilha dum caminho eu quis o rumo
inverso, convidativo; e talvez
precisasse do gesto incisivo,
da mente que decide e se determina.
Eram-me necessários outros livros
não tua página estrondosa.
mas nada posso lamentar: teu canto
desata ainda os nós interiores.
O teu delírio então sobe aos astros.


                        *


Tramontana 

E agora cessam os círculos de ânsia
que discorriam no lago do coração
e aquele amplo fremir da matéria
que descora e morre.
Hoje uma férrea vontade varre o ar,
arranca arbustos, açoita as palmeiras,
e no mar comprimido cava
grandes sulcos de arestas espumosas.
Cada forma se agita no tumulto
dos elementos; é um uivo, um mugido
de vidas extirpadas: só há destroços
na hora que passa: viajam a cúpula do céu
mal se sabe asas ou folhas ― e somem-se.
E tu que inteira vergas nas pancadas
de ventos irrefreados
e em ti cinges os braços inflados
dDe flores ainda por nascer;
como sentes hostis
os espíritos que a convulsa terra
sobrevoam em bandos,
minha vida sutil, e como amas
hoje tuas raízes.



Montale, Eugenio, 1896-1981. Ossos de sépia 1920-1927. Tradução e notas Renato Xavier. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Eugenio Montale - I


Desci um milhão de escadas


Desci, dando-te o braço, ao menos um milhão de escadas
e agora que aqui não estás é o vazio a cada degrau.
Mesmo assim foi breve nossa longa viagem.
A minha dura ainda, mas já não me ocorre pensar
nas conexões, nas reservas,
nas ciladas, nos vexames dos que crêem
que a realidade é aquilo que se vê.
Desci milhões de escadas dando-te o braço
e não porque com quatro olhos talvez se veja melhor.
Contigo as desci porque sabia que de nós dois
as únicas verdadeiras pupilas, ainda que tão ofuscadas,
eram as tuas.

(tradução Equipa "O Ponto de Encontro")

terça-feira, 10 de julho de 2012

Poemas da antologia grega ou palatina; séculos VII a. C. à V d. C


      Sobre uma privada pública num subúrbio de Esmirna

Os manjares dos mortais, seus pratos caros e seletos,
     perdem todos, aqui, o atrativo que tinham.
Os peixes e faisões, os condimentos moídos em gral,
     tantos quitutes numerosos e variados,
Aqui se tornam excremento; o ventre expulsa
     tudo quanto engoliu a goela faminta.
Por fim reconhece o homem que, em seu alvitre insensato,
     comprou, a peso de ouro, um punhado de pó.


Poemas da antologia grega ou palatina; séculos VII a. C. à  V d. C / seleção, notas e posfácio José Paulo Paes – São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A ética sombria dos gênios

 Chico Lopes
Em 20/05/2012 - Portal Musa rara de literatura


Duas biografias que estão no mercado podem colocar seriamente em xeque a imagem que temos de dois gênios, um da Literatura e outro do Cinema: Patricia Highsmith e Alfred Hitchcock. Ter lido as duas me fez refletir bastante sobre essa distância entre o artista e a pessoa privada, que é grandemente complicada pela permanente chegada, junto ao público, da obra antes do homem.
Embora estudos acadêmicos e levas e levas de livros sobre a distância entre o criador que se consagra e a criatura humana que ele é tenham já feito muito pela desmitificação dos processos de idolatria entre pessoas mais cultas e informadas, duvido que a massa do grande público não tenha ainda, quanto aos artistas que admira, uma certeza ingênua de que, tendo eles lhe dado alguma coisa preciosa em termos de sensibilidade, profundeza, beleza original, só possam ser, como pessoas, seres especiais, adoráveis, dos quais só possamos nos aproximar com reverência e uma expectativa descabelada de grandeza humana. É um erro comum, mas, que fazer? a indústria cultural, com suas mitificações interesseiras, ergue esses monumentos dúbios que são os ídolos, e o público só se dá conta de que é preciso ter cautela, astúcia e uma boa dose de ceticismo quanto ao que é obrigado a engolir depois que se desilude bastante com o processo descarado de que ela faz uso.
Isso não se passa apenas no reino de “Caras”, das revistas populares, com seus Neymares e Luans nas capas. O público culto tem também suas fraquezas idólatras e, por vezes, é até menos honesto em reconhecê-las, visto que não quer se dar por achado e acredita que, no seu caso, as idolatrias se justificam. Mas cultuar é, de certo modo, sempre obscurecer deliberadamente o conhecimento através de uma paixão que se quer paixão e se recusa a um distanciamento que por vezes é uma medida sadia e muito mais justa com a memória daqueles que são cultuados. A distância entre os que visitam túmulos de Proust e Wilde na França e os que se debulham em lágrimas tocando estrelas na Calçada da Fama de Hollywood ou se pondo na fila para esperar, histérico, por um autógrafo de Paul McCartney ou, cruzes, Michel Teló, não é tão grande assim. É só por uma pretensão esnobe que ela se acentua.
Os livros que li foram “A talentosa Highsmith” e “Fascinado pela beleza”. Os seus autores são Joan Schenkar e Donald Spoto. O primeiro é um volumaço, de quase 800 páginas, da editora Globo, lançado recentemente; o segundo é mais recuado, em termos de publicação, da editora Larousse, e mais compacto (317 páginas). Os dois são absorventes, respeitáveis e tanto Schenkar quanto Spoto sustentam um ar de honestidade quanto aos seus documentos e pesquisas que não nos deixam duvidar da autenticidade de seus frutos. Mas colocam muitas questões (pertinentes a escrúpulos e ilusões) que é preciso também examinar.
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 VIAS ENTRE HIGHSMITH E HITCHCOCK
Uma curiosidade é que há vias de encontro entre Highsmith e Hitchcock além do H de seus sobrenomes. Highsmith escreveu um livro, “Strangers on a train” que se transformou no filme “Pacto sinistro”, um dos clássicos perversos de Hitchcock, muito elogiado pelos diálogos e pela atmosfera por ninguém menos que Pauline Kael. Isso a deixou bastante famosa. Como vi primeiro o filme e depois li o livro, diria que o livro sugere coisas que Hitchcock não aproveitou, mas que o filme está à altura, em atmosfera e perversão, do livro, principalmente pelo psicopata Bruno, vivido com talento e intensidade raros pelo ator Robert Walker, homem infeliz que perdeu a mulher, a estrela Jennifer Jones, para o todo-poderoso produtor hollywoodiano David O. Selznick e parece nunca ter se recuperado disso, morrendo por alcoolismo.
Mas o que as duas biografias trazem é muito, muito mais que isso. Comecemos pela de Highsmith, que, volumosa como é, documentada como é (ficamos sabendo de todas as mulheres com as quais ela teve caso e até com as que só flertou, como a atriz Judy Holiday), pode ser tremendamente destrutiva, para quem nutria ilusões ingênuas quanto à vida pessoal da escritora. Nascida no Texas, mas figura pouco aceita pela América puritana (a partir da própria mãe, Mary, com quem teve uma relação infernal, para dizer o mínimo, em termos de ódio e amor), Highsmith virou figura de culto na Europa, principalmente pelos seus livros da série Ripley, nunca suficientemente elogiados. Ela é uma espécie de Kafka do romance policial e de suspense, um caso dificilmente enquadrável nestas categorias, aliás, já que seus livros se movem num universo bem mais sofisticado e imprevisível que o dos livros policiais comuns. E quem só a conhece pela série Ripley está perdendo romances seus maravilhosamente bem escritos como “Essa doce obsessão”, “O grito da coruja” e outros tantos.
Já se sabia, pelo “gossip” que cerca a vida de todo autor e também pelos livros sintomáticos, que Highsmith só podia ser lésbica. Mas a biografia nos dá isso em doses cavalares: ela era desmedidamente lésbica, a ponto de ser conduzida automaticamente para o banheiro masculino nos restaurantes franceses, embora procurasse usar um batom para atenuar sua aparência. E seus amores foram marcados pela turbulência, visto que ela amou a mãe com ódio proporcional e procurou sempre, nas mulheres com as quais teve caso, a figura materna. É caso freudiano típico talvez, embora Highsmith tivesse uma perversidade peculiar, digna de estudos psiquiátricos mais detalhados – seu sadismo não era brinquedo. Ela, aliás, circulando sempre nos meios gays europeus e norte-americanos, acreditava que não há amor sem crueldade e dominação de um dos parceiros, naquele credo gélido e assustador de que Fassbinder, também homossexual, parecia ser adepto. Não se podia esperar que Highsmith fosse militante em defesa dos gays, talvez por isso – ela acharia muito piegas o processo de “normalização” que a militância em parte requer, preferindo a anarquia, a liberdade, a perversão a qualquer aceitação de casais gays delicados e “bonzinhos” pela classe média hipócrita. Nisso ela é incômoda, ou apenas realista, mostrando que essas figuras que rondam banheiros obsessivamente, desesperadamente, eram mais de sua preferência do que homos bem-comportados, satisfatórios para os admiradores de filmes como “Filadélfia”. Highsmith associava o amor ao crime automática e irresistivelmente. E culpava a mãe, de modo muito egoísta, pela sua anormalidade sexual. Daria bananas vastíssimas para o “politicamente correto”. Sua criação traz uma visão sem clemência da crueldade e da violência dos seres. E não é possível simpatizar com ela. Porque, se nos ativermos estritamente a essa biografia, ela não estava dando a mínima para ser simpática nem para leitores nem para jornalistas – era uma egoísta empedernida e sempre agiu como tal. Quando agradava a certas pessoas, tinha cálculos e conveniências bem comerciais em mente, e era muito sovina. Precisava, até por formação sulista, de certos admiradores como serviçais pouco mais que escravos. E não deixava de ter certa atração pelo nazismo. Sua maior criação literária, Ripley, sem dúvida é um monstro, ainda que charmoso e desmistificador.
Bem, o livro sobre Hitchcock, ao que me consta, é o único de Donald Spoto sobre Hitchcock a ter saído no Brasil. Ele tem outro sobre Hitchcock, muito mais famoso e mais volumoso, chamado “The dark side of genius”, que deu o que falar, fazendo até muitos fãs de Hitchcock protestarem por sua contundência na revelação da psicologia distorcida do Mestre do Suspense, de seu egocentrismo e sadismo. Mas o Brasil só pôde conhecer até agora este “Fascinado pela beleza”, mais compacto, em que Spoto se detém especificamente na relação doentia (não dá para encontrar outra palavra) com suas estrelas, às quais, sempre que possível (quando os maridos ou amantes não estavam por perto) tratou com crueldade e gozações infames. A pintura que emerge dessas relações é terrível, porque Hitchcock nos parece um caso infeliz de homem complexado pela obesidade que se vingava do fato de não ser atraente para suas estrelas com um tratamento sádico e uma dominação arbitrária que chegava às raias do mau-caratismo declarado. A coisa vinha de seus tempos do cinema mudo na Inglaterra, evoluiu na América e terminou com um caso horrendo, o de sua relação com a modelo Tippi Hedren, verdadeiramente torturada por ele em filmes como “Os pássaros” e “Marnie”. Ela nada podia fazer, estando sob contrato, e sendo começos dos anos 60, quando os problemas legais causados pelo “assédio sexual” inexistiam. Hitchcock tolheu sua carreira, quando ela se mostrou obstinadamente independente, já que a tinha sob contrato, impedindo-a de filmar com outros cineastas. É um episódio realmente escabroso, que faz a gente olhar para Hitchcock com olhos decididamente não condescendentes, depois de conhecê-lo. Suas aparições nos filmes nos fazem pensar, a partir dele, em prepotência e em infelicidade e complexo de inferioridade, mais que em algo simplesmente leve e cômico.
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CRIAÇÃO COMO ESPELHO E PURGAÇÃO
Mas, entremos agora em outro terreno, o da objeção a esse gênero desmistificador de biografia. Em que exatamente os artistas que admiramos saem diminuídos para nós depois de devassas desse tipo? Highsmith e Hitchcock sempre tiveram admiradores inteligentes e lúcidos, que não esperavam, a partir de sua obra, que eles fossem “santinhos” ou magos de sua arte sem mácula humana alguma. Hitchcock, se bem que vaidoso, era um homem auto-irônico, em sua publicidade e nos comentários sobre seus filmes (tanto que, no livro famoso de entrevistas que Truffaut fez com ele, fica claro que tem um humor debochado que o Truffaut não percebe lá muito bem). Nunca se quis artista superior, ria dos críticos que ficavam revirando sua “metafísica” e, sempre que possível, falava da ânsia comercial de sua arte – o insucesso comercial abençoado pelo sucesso artístico não o agradava nem um pouco. Só se enganou com ele quem quis. Como gênio de entretenimento, foi impecável, e isso é mais que sabido. Mas se manteve discreto quanto à vida privada tudo que pôde. Para bom apreciador de seus filmes, não parecia senão neurótico e elegantemente sádico mesmo. Não, porém, na medida em que esse livro de Spoto o revela. Se há nisso oportunismo comercial de Spoto, digamos que é um oportunismo bastante útil: passamos a conhecer melhor o homem que Hitchcock foi. E sabemos, compreendemos que sua criação foi espelho e purgação, e sua grandeza de cineasta foi assegurada por ela. Quanto ao ser humano, que mais poderíamos esperar? Acaba-se ficando até mesmo com pena de sua neurose exacerbada, com pena de sua infelicidade, de sua solidão, de sua megalomania que, no fim da vida, ficou ainda mais patética, com todos os amigos se afastando dele.
Cita-se sempre, nesses casos de abismo entre vida e obra, a história de Wagner, anti-semita, oportunista, mau-caráter, utilitarista e descarado na manipulação de amigos e admiradores, e, ainda por cima, trilha sonora do Holocausto, com a predileção que os nazistas tinham por ele. No entanto, ouça-se o prelúdio de amor de “Tristão e Isolda” um pouco e, pronto, as objeções morais ficam estraçalhadas pelas ondas avassaladoras de beleza. Esse problema da grandeza estética, por trás da qual reina abjeção humana, nunca foi resolvido nem esclarecido a contento.
Um problema parece residir na ideia kitsch, cultivada por admiradores medianos ou ignorantes, de que a arte sempre é produzida por pessoas que, no processo, se “angelificam”. Basta ler algumas páginas do “Morte em Veneza” para perceber, na análise de Mann, o quanto isso é furado: há um momento em que o clássico, reverenciado, erudito e contido Von Aschenbach pensa lá consigo mesmo que é excelente que os leitores não saibam de onde pode provir uma belíssima reflexão sobre a Beleza e a sua relação com os assuntos humanos: no seu caso, estava vindo a partir do tesão controlado, penoso e desesperado que lhe vinha sendo causado por Tadzio, o garoto que persegue pelas vielas da cidade.
O mesmo com Highsmith. Quem quer que a admire e passou por todos aqueles livros não poderia esperar que sua vida pessoal fosse impecável, de uma boa mulher americana só um pouquinho “doentia” na hora de sentar-se à máquina de escrever e criar Ripleys e outros monstros manipuladores cheios de charme literário. O livro de Schenkar é um esforço admirável no sentido de capturar todos os detalhes de sua vida conturbada.
A grande verdade é que a arte sempre será melhor ou maior que o artista. E nós podemos até, a uma certa altura, permanecer deliberadamente ignorantes do que foram os artistas cujos trabalhos admiramos, por ter amadurecido humanamente o bastante para saber que primores, belezas e fulgurações podem brotar de solos nada luminosos, de pântanos e dejetos. O sombrio é apenas um ingrediente humano inevitável, que a indústria cultural hipocritamente joga para escanteio ou explora mais tarde, em caráter póstumo ou não, para sua conveniência. O melhor mesmo é desconfiar dela, e de seus livros caça-níqueis e inescrupulosos a partir da vida das celebridades.
Não é isso que essas duas biografias são. Elas nos fazem compreender melhor esses artistas, se as procurarmos ler por um ângulo mais amadurecido. Como não compreender neuróticos descabelados? Afinal, é a humanidade neles que os levou a serem os artistas que foram. E, se nos arvoramos juízes impolutos e indignados do que ficamos sabendo, não seria melhor olharmos para nossos próprios rabos, como macacos experientes?



Chico Lopes nasceu em Novo Horizonte, SP, em 1952, está radicado em Poços de Caldas desde 1992. Em Poços, é programador e apresentador de filmes do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles desde 1994. Tem vários livros inéditos de ensaios sobre filmes e literatura, além de ter publicado três livros de contos: “Nó de sombras” (2000), “Dobras da noite” (2004) e “Hóspedes do vento” (2010). Em 2011, deve estrear na publicação de novelas e romances. E-mail: franciscocarlosl@yahoo.com.br

domingo, 24 de junho de 2012

Alain Touraine

                                                 Eloisa Pellegrineti - Bordeaux - 2008


O sujeito não é um sinônimo do eu. O eu é o conjunto mutante e sempre fragmentado com o qual nos identificamos, embora conscientes de que ele não tem nenhuma unidade duradoura. Com o diz Pirandello em “Seis personagens á procura de um autor”, “ o drama, em minha opinião, está todo aí dentro, Senhor, na consciência que tenho, que cada um de nós tem, de ser “um” quando ele é “cem”, “mil”, de que ele é tantas vezes um quantas possibilidades nele existem”.

Tema que se difundiu na experiência contemporânea e que deve ser levado ao extremo, pois somente sobre as ruínas de um eu decomposto é que se pode impor a idéia de sujeito, que é o contrário de uma identificação consigo mesmo, de um amor a si mesmo que nos faria reivindicar cada um de nossos pensamentos e cada um de nossos atos como se pertencessem a nós mesmos enquanto sujeitos, quando não podemos nos perceber como sujeitos senão fazendo em nós um vazio que expulsa tudo quanto depende do eu.

Alain Touraine - Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje; tradução de Gentil Avelino Titton, terceira ed. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.

terça-feira, 29 de maio de 2012

O poeta W.J.SOLHA comenta o livro Rascunhos do absurdo


Jorge Elias,

 seu Rascunhos do Absurdo não é livro que se leia como quem chega em lugar estranho sem mapa. Creio que seus amigos poetas - que me parecem muitos- receberam seus poemas inéditos com outra luz, conhecendo-o pessoalmente, pois ou muito me engano ou há um tom confessional em sua obra, e  isso por certo ajudou-os a - automaticamente - decodificá-la, eliminando o que a nós - estranhos - chega como absurdo.

Não consegui ler seus poemas sem, a todo momento, me lembrar de Lorca:


Como aqui:


Despiertaque los montes todavía no respiran
Ylas hierbas de mi corazón están en otro sitio.


Ou aqui:

Con la sombra en la cintura
ella sueña en su baranda,


Ou neste exemplo:

Su voz deja cristales en la herida
y un gráfico de hueso en la ventana.


O absurdo se torna surreal.
Alguns exemplos seus:


Só sei transformar sapato em borboleta.

 Ou este:
 

Sobre minha cabeça
chocam-se as nuvens.

 Ou este:

No fim de semana
estendo o pano xadrez
no céu de pólvora.

 Que me remete a este:

voltado para esse lindo céu,
reluzente de bombas


Como é fácil de constatar, você também é um grande poeta. Como diz em Sonho no absurdo: "O poeta sabe a textura exata do sonho." Daí que - se numa primeira leitura muitos de seus poemas não me chegaram "prontos" - dois, pelo menos, me pareceram de imediata beleza: Percurso infindo: "No primeiro segundo\não achei a chave, não achei a porta". e

Cristo de pão. E um terceiro:

Emprenhar-se de miudezas;
deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros.
E, quando a luz se aperceber, desmembrada
pelo estalo da palavra,
jogar-se nos trilhos
pra salvar a flor.


Seu "Cristo de pão" - com o pai (fictício ou não) fazendo um crucifixo da massa de trigo - me lembra meu muito católico pai que insistia, nas refeições, que representávamos ali, mais uma vez, a Ceia. E que recolhêssemos qualquer migalha caida no chão com respeito, porque se tratava do corpo divino. Quando perdi a fé, fiz - ao contrário de você - um esforço imenso para me livrar do sentimento do absurdo, escrevendo um romance e uma peça de teatro (que montei em 88) - A Verdadeira Estória de Jesus (Ática, 1979), e voltei ao tema em outro romance, Relato de Prócula (A Girafa, 2010). Foi-lhe igualmente difícil - é o que me parece à primeira vista - perder a fé - que mais complica que explica - e isso você deixa explícito, quando diz

"Foi duro para mim \ ver Deus quebrar-se em minhas mãos"
 

Seu pai:

Meu pai vestia uma pele
de sonhos amarrotados.

Desdizendo o que eu disse acima:do mesmo modo que vi mãos humanas na elaboração da "Revelação Divina", você - lindamente - escreve:

Depois que reparei
digitais nos dedos de Deus

 ... e chega ao extremo do inococlasta, na  parte V de Só sei que vou te amar:

Bebi a cachaça das encruzilhadas;
Roubei hóstias nas sacristias;
o tridente do diabo
enfiei no rabo da mãe de santo.

 Freud não foi o primeiro a tentar a decifração da arte. Decifração para os outros, porque ela age - como nos sonhos - em mensagens que, para o artista, são o que você chama - à maneira de Drummond - de Claro enigma:    "Cada manhã traz consigo uma nova geografia. \  Deve-se, então, ver as nuvens \ para entender os dias."

 Bilac já disse: "ra, direis, ouvir estrelas. (...) É preciso amar para entendê-las"

 O mais, fica para outras leituras.

W.J.Solha