sábado, 30 de abril de 2011

Oscar Gama Filho


O AMOR NO FUTURO DO PRESENTE


                     Pois eu, vidente do amor que virá,
                      Sei que não tenho presente
                       de onde possa alcançar o futuro do presente,
                        Sei que não posso alterar o meu fado,
                         E sei também que posso alcançar
                          apenas o futuro do passado.



Estou partindo sem coche.
Há muito, desde ontem, que estou a pé
partindo até hoje.


Com um pé no passado em que fico,
Parto para o presente que renego
e para o caminho hemorrágico
de uma brisa feita de pregos.


Estou partindo à força, sem que haja passagem.
Amanhã, se você me procurar, amada do futuro rico,
Terá de gastar três dias de viagem
para chegar ao passado em que fico,
Para chegar ao passado em que fico sem nós dois.
Mas creia que, em três dias de viagem projetados para depois,
Não se acha aquele que está preso ao passado.


E eu, que um dia amarei seus lados,
Estou cercado pelos meus pés no passado e no presente,
Um rei preso que se ressente,
Estou cercado pelo meu próprio corpo,
Prisão privada que os limites do rei torto demarca e retém,
Um próprio corpo só, em que não existe mais ninguém.


E eu, que um dia a amaria,


que meu corpo estende
no tempo que meu corpo fia.




TEMPO DE MORTOS


Escute, Oscar, com calma me ouça.
Não se emocione sempre e tanto assim.
Este não é um tempo de poetas,
Este não é um tempo de rimas,
Este é um tempo de mortos:
Todos estão empenhados em matar os outros
e em matar a si mesmos,
O amor se tornou um tipo especial de bolsa de valores
a que apenas os ingênuos se dedicam,
Teóricos se empenham em provar que a arte está morta
e que todas as relações, possibilidades e esperanças morreram.


A você, que um dia se mata
mas em outro ressurge,
Cabe a tarefa necessária mas impossível
de ressuscitar os mortos.


Não se assuste com a responsabilidade.
Principalmente, não a leve tão a sério,
Ou correrá o risco de matar e de ser morto.


Arme-se todo de doçura, de ingenuidade, de pureza
e de crença no homem.


Olhe-os nos olhos, como você faz, e eles tremerão.
Verdade, aquilo que você oferece de melhor
e do modo mais amoroso
será alvo de deboche.
Seu nome será arrastado pelas bocas
e seu corpo será esticado nas masmorras
em tom de escárnio.


Palavras duras como pedras serão atiradas.
O alvo, você bem sabe, será sua cabeça
e, principalmente, sua alma
e este seu estranho sentimento do mundo.


Ofereça sua alma e sua emoção aos homens de pedra.
Não tente se desviar dos projéteis.
São mísseis infalíveis teleguiados
atraídos pelo calor da vida que destroem.
Messiânicos e dogmáticos, eles têm uma missão a cumprir.
A única coisa que poderá detê-los é seu sangue.
Com amor, ofereça-lhes o peito, dê-lhes de beber.
É justo: têm sede e são insaciáveis.
E você, Oscaro, é inesgotável.
Pelo menos até um dia se esgotar.
A música em verso do seu sangue
acalmará até mesmo os animais
e lhes restituirá a vitalidade perdida.


Sim, são mortos-vivos, mas o sangue dos poetas
é libertador, delicioso e ressuscita.


Sei, bem sei que seu sonho é não mais escrever,
É abandonar a pena dos outros
e, como os outros, morrer
para o que realmente se vive.


Por que você escreve tanto, então?


Calma, amigo insone, recupera a paz
e não deixa de fazer o que te faz.
Só assim, tranqüilo e sempre-vivo,
Um dia — profundamente — dormirás.


Oscar Gama Filho nasceu em Alegre, E.S., em 31 de março de 1958. Publicou seus poemas em De Amor à Política, 1979; em Congregação do Desencontro, 1980, em O Despedaçado ao Espelho, 1988 e em O Relógio Marítimo, pela Imago, em 2001. Procurou o tempo perdido em obras como História do Teatro Capixaba: 395 Anos, 1981, Teatro Romântico Capixaba, publicado pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas, em 1987, e Razão do Brasil, lançado pela José Olympio Editora em 1991. Traduziu-se para Rimbaud no conto-poema-ensaio-tradução-crítica Eu Conheci Rimbaud, de 1989. Realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, e gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, contendo músicas em parceria com Mario Ruy. Dirigiu suas peças teatrais A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico. Profissionalmente, é psicólogo clínico.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Uma carteira e seus sentidos

                        para as crianças - Realengo


Observe essa carteira vazia
– ociosa –
desocupada.
Entre na dimensão do absurdo
– no que se contorce –
e resvala,
e desperta,
e nos cala.


Observe essa carteira vazia
–ruidosa–
maculada.
Ventre da omissão confusa
– que nos paralisa –
e enoja,
e perpassa ,
e retalha.


Observe essa carteira vazia
– poderosa –
enfeitada.
Lembre da profusão do sangue
– que se dispersa –
e tinge,
e respinga,
e nos entala.


Observe essa carteira vazia
– fervorosa –
devotada.
Sente a celebração da loucura
– que consente –
e trucida,
e cega,
e nos abala.


Observe essa carteira vazia
– tenebrosa –
mal fadada.
Sente a emanação do ódio
– que se alastra –
e devora,
e abraça,
e nos transpassa.


Observe essa carteira vazia
– silenciosa –
abandonada.
Crente na devassidão do mundo
– que surpreende –
e ignora,
e reproduz,
e nos arrasa.


Observe essa carteira vazia
– deliciosa –
delicada.
Prenhe de ilusão confusa
– que consente –
e insinua,
e seduz,
e nos agarra.


Observe essa carteira vazia
– espaçosa –
desejada.
Crente na criação do sonho
– que compreende –
e ama,
e perdoa,
e nos concede a graça.

Jorge Elias Neto

domingo, 10 de abril de 2011

Maria

E foi seguindo a viela
que te encontrei Maria...
Não fosse tão arredia,
não fosse assim – quieta –
até compreenderia
a sua boca aberta,
a sua timidez úmida.

E foi seguindo o dia
que te apreendi Maria ...
Em minhas calças abertas,
Suas mãos buliam, vadias.
Por que tu rias, Maria...
Por que tu rias, Maria ...

E foi seguindo a arrelia.
Ninguém nos interrompia.
Na boca eu te mordia
Na boca você cuspia.
Não te entendo Maria ...
Não te entendo Maria ...

E foi seguindo a folia.
Na rua, o cordel seguia.
Só eu me surpreendia.
O gozo que escorria
de sua boca imensa,
de sua boca macia.
Case comigo Maria....
Case comigo Maria ...

E foi seguindo a orgia...
A noite já se esvaia.
De pé, já não me agüentava.
No corpo, uma brisa fria
e o suor se derramava.
E este sangue Maria?
E este sangue Maria?

E foi seguindo a alegria.
A imagem se dissipava.
No chão, já me estendia,
e Maria se derramava.
Então és virgem, Maria?
Será possível Maria?

E foi seguindo agonia.
Uma multidão imensa
de mim se aproximava.
Eu só queria Maria,
que de mim se apartava.
Vida vazia Maria...
Fica comigo Maria!
Fica comigo Maria!

Enfim entendi – a vadia
vida que se encerrava.
Maria não era donzela;
Maria sequer podia
dizer-se minha amada.
Maria não existia,
foi-se na madrugada.

Jorge Elias Neto

quinta-feira, 7 de abril de 2011

MANUAL DE PONTUAÇÃO - JOSÉ AUGUSTO CARVALHO

É impossível deixar de repetir: Habemus Cronopios!


Tamanho é o dinamismo deste Portal que tornou-se uma necessidade para os que pretendem manter-se atualizados à respeito do que de mais novo e fundamental vem sendo publicado nos Países de língua portuguesa. E eis mais uma novidade que só faz confirmar essa afirmativa, tantas vezes repetidas no Café Cronópios: A publicação, em 12 capítulos semanais, do Pequeno Manual de Pontuação em Português escrito pelo linguista José Augusto Carvalho.

Não vou me estender dizendo de minha amizade e admiração por este excepcional conhecedor de nossa língua. Deixo aqui o convite para que os leitores acessem o manual.
Boa leitura para todos!

Apresentação: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=4970
Manual - parte 1: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=4971

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Elton Pinheiro

                                              Foto: Janayna Araujo
Canto

Um
rosto descarnado percorre
a rua dos loucos
... rua dos barulhos moucos;

escuta o não falado, anda nu
e abandona os doutos, de copo e cana
na academia ensinando angu.
Mestres no Boulevard com Dulcce & Garbana,

seus rostos alvos, grandes Alexandres
altivos, depois parecem vários Dantes,..
sentem o gosto de Chivas nos odres,
babam as pernas boas das estudantes.

Sem desejo o abissal os deprava
na estória de suas vidas sem dolo.
Para a moral que a castidade lava
roubam das ninfas o seu colo,

para o sonho das raparigas em flor algo dava
aos seus carrosséis corcéis alados...
Para a outra carne de sua lava
o punho escroto dos soldados.

Ele espera o muting e canta ex...
o descontrole futuro do prazer de santo.
A donzela que grita em muitas tvs
É a vítima intensa de seu único canto

e bordava uma noite com duas luas
nas mãos de marfim.
Ele espera uma noite de todas as ruas
no louvor alado de um querubim.

Pela aldeia, no meio das casas
sua voz ecoa. Trazem-lhe a peste na flor
do campo que Freud as Moiras com asas
enquanto a histeria goza olor.

Por que a túnica de José o vestia?
Joio de seu próprio trigo; sacramento...
Quando o último sábio ele consumia
entregava-lhe seu entretenimento,

quando o sonho do barro brilhava
sonhava com asas de um monumento...
para todas as coisas ele inventava
as asas que Hermes roubou do vento,

e as cidades que sempre cantava
existiam numa constelação sem alento
até quando alta noite o mundo descansava
e as estrelas eram seu talento.

Acendei... crivai de luzes o teto
onde a caravana branca atravessa.
No espetáculo roto de tudo exceto
o outro tudo de outra estória nessa

e os heróis digam que suas glórias
estavam escritas nos autos
e que desde sempre se foram em memórias
de párocos, gênios, mendigos, arautos

e que desde sempre morrem de tarde
quando já nem existe por que morrer...
Enlouquecei... acendei o covarde
medo de viver.

Um
rosto descarnado percorre
a rua dos loucos
...rua dos barulhos moucos;




Elton Pinheiro é cantor, compositor, poeta e artista visual. Natural de Vitória, escreveu o livro de poemas Orações com vícios de linguagem, Secult – 2006, indicado pelo poeta Sergio Blank ao Prêmio Taru 2007. Gravou 12 de suas canções no CD Lavrador, produzido por Rodrigo Campello, a ser lançado em 2011. Alguns de seus trabalhos visuais ilustram blog, livro e CD, bem como site e CD do músico Alvaro Gribel e o último livro do escritor Herbert Farias.