terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Ode à bandeira



Ode à bandeira


                                    Para Jorge Tufic


                                             
                           Verde, amarelo, azul
                                                                             e branco


Nosso foco míope,
nesse dezembro escarlate
   ‒ com suas horas retintas ‒ ,
ignora a aurora,
despreza a lona do circo austral
de estrelas
impregnando o azul da Nação
com                     a face
perdida na orgia.

E, essa,
desfigurada,
revisita seus mortos,
homens,
pássaros,
plumagens,
                  poesia desgastada.
E estendida a flâmula
sobre o bastião da América
ensaia o remendo
do pavilhão desfeito.

Há de combinar auroras,
madrigais
sob parcas velas,
Sol à pino
de soberbas musas,
o azul do estio
agreste,
pinceladas anis
de Portinari,
festivas bandeirolas de Volpi,
flores de Bracher
e o olhar fulminante
dos santos de Solha.
Há de buscar o irrealizado,
e cobrir a poalha
estendida sobre a consciência.

Há de desfazer
o irremediável
suspiro das águas
baças de espuma,
cravejadas de plásticos
que refringem o sol
e sufocam os peixes.
Há de refazer a sinuosidade
secular dos rios,
que ardem sufocados
pelas mantas de concretos.
Fazer brotar as piracemas,
de escamas furtacor,
a gargalhar inocência.
Há de curar a mágoa
de Iracema –
distribuir oferendas
de contas nos remansos
a se transmutar
em coachar noturno.

Há de dourar
as negras coxas
com grilhões
de justiça,
desnortear o rumo dos
igarapés
no descaminho
das borboletas amarelas.
Há de escorrer
ouro das falésias
no Atlântico            sem fim.

Há de distribuir
o santo daime
na celebração das ocas,
polvilhar o verde
nas loucas esquinas
da miséria.
Preencher a atmosfera
com paragens bucólicas
onde o carvão
se regenere em matas
e os germes
pereçam sob a guarda
das harpias.

Há de perder-se
na remora 
das paisagens
e sentir-se
             terra.

Jorge Elias Neto

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Ode à tarde - Jorge Tufic


A tarde é isso.
Um estado-maior de silêncios,
coisas sustadas,
luares diluídos e soltos,
franjas tecidas de chuva.

Tardes antigas
compartilham também destes ermos
feitos de ouro e melancolia.
A espada de Alexandre,
o orgulho de Cleópatra
e as estrofes de Omar Kayyan,
quantas vezes não se tocaram
por esse breve intervalo da luz
que distrai os topázios?

Silentes abrigos e sustos,
migrações repetidas,
relinchos paralelos ao vento
machucado e doce,
parecem somar com a desventura
e o trabalho anônimo das sombras.
Sutilezas do nada que se confia
a outro nada menor,
eclosão angular de sol rente,
seiva rubra,
labaredas do anoitecer.

Mas quase ninguém se encara
ou se reflete
nestes milhares de espelhos
que se entramam
na dor da paisagem.
Em nenhum deles, porém,
não é a mesma figura
que se vê repetida.
Perfis exumados da terra,
gorjeios feridos
e pássaros riscados do mapa,
voltam, por um momento,
e nos olham com piedade.

Todas as feras temidas pelo homem,
voltam também, de repente,
e rugem dentro de nós.
A noite, então, nos penetra
osso após osso.

Imponderável, enigmática tarde.
Tua flama compacta nos hospeda
e dá-nos o sossego desejado.
És também o arquipélago
de muitos confinamentos
e sulcados remorsos.
Tuas patas são leves,
teu ar é solene,
teus números são claros,
teu rosto é velado,
tua voz é distante.

Pausas e quedas súbitas
guardam tuas lendas
em cada pedaço de chão.
Entre a manhã das fanfarras
e a penumbra dos arcos,
alteia-se, enfim, o abutre espacial
deste azul tão azul,
que pronto nos inscreve e nos devora.
Afinal, somos tinta, tempo, imagem.
E ele – abutre –
o pergaminho insaciável.


Do livro A insônia dos grilos.   

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Sexo sem anjos



Retirei do teu berço
o camafeu com um anjo,
desarrumei tua cama,
desarranjei tua vida,
       te despi
                   de deus.

Enveredei na noite.

As sombras inocentes
dos teus pequenos
dedos teciam
figuras bizarras
nesse ideal
de infância.

Desatinei na lida
ao julgar-te segura;
foi a escolha errada.

A cinderela
atenta, te disse boa noite
nas núpcias do álcool
com o sangue
de tua carne.

E a multidão aflita,
dos jovens sem sossego,
se embrenhou entre nós,
mostrando os peitos hirtos,
as coxas,
os dedos,
a urgência dos sexos,
pra te impor um rótulo,
pra te fazer escrava.

Desconhecida,
percorria o nada,
                  um nada
além do vazio
dos teus olhos miúdos.

 Já não mais
sustinha
o ser uno
transtornado
essa pasta quântica
dos cravos
de Jesus.
Já se ignorava
a verdade das açucenas
pensas no abismo.

Pestanejei,
desdisse minhas crenças,
interpretei o oráculo
desse Mundo          seco
que cruzou faminto
com tua beleza.

Jorge Elias Neto