domingo, 28 de fevereiro de 2010

Fernando Pessoa


Cristo é uma forma da emoção.
No panteão há lugar para os deuses que se excluem uns aos outros, e todos têm assento e regência. Cada um pode ser tudo, porque aqui não há limites, nem até lógicos, e gozamos, no convívio de vários eternos, da coexistência de diferentes infinitos e de diversas eternidades.

(Fernando Pessoa in Livro do desassossego - COmpanhia das letras
Pág - 265)

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Paulo Sodré


Foto:Fernando Maués


De
Poemas de pó, poalha e poeira
(2009)


O que se adivinha tanto pelas mãos

1.

Poema não medra
em terrenos propícios.

Daninho, alastra-se
palavra afora,
ilegal, ilícito, liberto.

Poema não pede
licença, permissão:
dá-se, inunda, invade.

Silencioso, espalha-se,
versos às tontas, à toa,
gentil, receoso ou maltês.


2.

Não que o poema
seja tolo e tosco
a romper portas,
arrogante como o tempo.

Não.

Cheiro fresco de murta,
aragem, imiscui-se ele nas frestas
que o encantamento
franqueia, abre, permite.

(Sim)

Um poema adentra,
onde o encanto, fluido,
autoriza janelas e fendas.


3.

Onde suas mãos:
a esguia clareza.

Quando suas mãos:
as claras linhas.

Como suas mãos:
o alinho de seda.

Porque suas mãos:
o sedoso terreno.

Dado o encanto,
faz-se dele janela,
por onde, aos poucos,
medra o destemor
de dez poemas.


4.

Das mãos
(as minhas)
longe
e quietas
as suas.

Da vontade
(a minha)
distante
e calada
a sua.

Olho-as
(as suas,
as minhas),
e a hora
ancora
em porto
sem nome,
sem dono.

O mar
(ou a piscina)
sem viagem.

Uma passagem?


5.

Suas mãos,
sim, desenho
de lúcidas linhas.

Suas mãos,
tanto som
de seda, sim.

Suas mãos,
sim, augúrio
de tépidas manhãs.

Seu corpo,
sim...


6.

Não retiro
de suas mãos
os óculos.

Receio olhar
a clara linha
da nuca;

o rijo contorno
dos ombros,

a mata macia
do peito,

a ágil musculatura
das pernas,

o fino esculpir
dos pés.

Receio adivinhar
cheiro de líbanos
em sua terra tão alva.

Suas mãos:
continuo.


7.

O que fazer com os dedos
na sombra do improvável?

O que dizer às palavras
na contramão da prudência?

O que riscar nos encontros,
o que morder nos frutos,
o que deitar nos lençóis
guardados para suas mãos?

Dedos, palavras, figos:
o arrepio rodopia
pela ciranda de lembrar
as mãos,
lindas,
as suas.


8.

No oitavo poema,
sobre suas mãos,
os anéis.

De nuvem, de água,
de acácia, de novembro.

Um instante de anel:

peixe mínimo
em tanta água
tão aguardada.

Por um instante,
um anel.


9.

Penúltimo poema:

Já mil sílabas
para dez dedos
de suas mãos.

Botticelli lhe daria
formas nítidas,
em desenho de Líbano,
máscula planície.

Plebeu dou-lhe
as sílabas tontas,
adivinhando, em neblina,
o vinho de seus dedos.


10.


Tocar cada canto
de suas mãos,
buscando nêspera
ou dia de festa.

Cada canto
das linhas;

cada sumo
de nêspera;

cada hora
de festa

e contentar
de digitais e gestos,
ao menos,
o poema.


Paulo Roberto Sodré (Vitória/ES, 1962), é poeta: Interiores (1984), Lhecídio: gravuras de sherazade na penúltima noite (1989), Dos olhos, das mãos, dos dentes (1992), De Ulisses a Telêmacos (1998), Senhor Branco ou o indesejado das gentes (2006), Poemas de pó, poalha e poeira (2009), e ensaísta: Um trovador na berlinda: as cantigas de amigo de Nuno Fernandes Torneol (1998) e Cantigas de madre galego-portuguesas: estudo de xéneros das cantigas líricas (2008). Atua como professor de Literatura Portuguesa no Departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo desde 1989. Vive em Vitória.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Ao poema


Foto:Jorge Elias



Parte-se do esquecimento.
Caminha-se para o esquecimento.
Disso dou testemunho.

Tamanha consciência da morte vindoura
nomeia encantamentos
em cada trecho de aurora.

E, se, em algum momento,
falta ao punho o sustento,
recolho-me ao verso que apoia.

Eis a dura lida que ao poeta condena.
Mas apesar do tormento da finitude certa,
tem o poema – pulsão de vida –, rumo ao esquecimento.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Chico Lopes



Camus cai, e nós aprendemos


“Caminho sozinho noites inteiras e sonho, ou falo sozinho interminavelmente”, diz um certo Jean-Baptiste Clamance, advogado decaído, bebum de um boteco desclassificado de Amsterdam chamado México-City, a um interlocutor que o leitor nunca saberá quem é.


Primeiro grande achado de um romance curto, melhor dizendo, uma novela, que é, na verdade, a meu ver, o melhor de todos os (poucos) livros que Albert Camus escreveu. Estamos diante de um daqueles tipos da noite, dos bares que tardam em fechar e acolhem insones e estropiados, no anonimato de cidades para as quais calor humano é luxo ou frescura.


São tipos que o leitor deve conhecer – sujeitos que falam demais, que querem ser ouvidos, que se agarram ao colarinho do primeiro ouvinte em potencial que lhes apareça e não desgrudam mais, porque o desespero (que lhes aumenta a profundidade e a chatice) é completo, e nem importa que sua vítima (ou ouvinte) concorde, discorde, ouça. A técnica utilizada por Camus é esse diálogo com um desconhecido que torna o livro um longo monólogo, um fluxo ininterrupto de confissões tão viscerais quanto cínicas, colocando o leitor no epicentro do interesse: ao abrir o livro, sem divisões de capítulos por números ou títulos, os intervalos dados por espaços em branco, o leitor já entrou no universo de Clamance, que se intitula “juiz-penitente”, já foi agarrado no colarinho por ele, e será obrigado a ouvir, ou melhor, a ler.


A solidariedade impossível

É o livro mais enigmático de Camus, na verdade. Faz tempo que ele saiu da moda, embora relembrado aqui e ali por algum admirador. Os que irão conhecê-lo agora, certamente serão levados aos inevitáveis “O estrangeiro” e “A peste” ou aos volumes filosóficos de “O mito de Sísifo” e “O homem revoltado”.

Tudo bem, Camus estará lá. São bons livros, embora alguns tenham envelhecido bastante, por seus temas tópicos, e haja um certo tom presunçoso e retórico no argelino, o que torna seus personagens pouco críveis.

Camus tinha, sem dúvida, essa auto-consciência do escritor que não desgruda de seu mito, que deve muito à sua persona. Susan Sontag dizia que ele carregava consigo um “pedestal portátil”. O que quer ele fizesse, parecia merecer registro, teria que ter algo de solene, pomposo e filosoficamente relevante, como se ele não fosse caso comum, nunca. Sempre a consciência elevada, nunca a sordidez, a pequenez sem desculpa e sem remédio, esta de que somos realmente feitos.
“A queda”, pelo cinismo, pela radicalidade, porque não se esforça por agradar, é muito superior aos outros livros.


E não é um livro agradável. Cai-se nele como num mundo que já está cristalizado, do qual participamos como “voyeurs” impotentes, fascinados, indignados, querendo não aceitar o que Clamance diz.


O “juiz-penitente” pode ser definido como um guru às avessas: chama a nossa atenção para o irremediável, diverte-se lugubremente com a sua decadência e lança, com prazer sádico e “penitente”, suspeitas as mais odientas sobre a condição humana – com as quais, repugnados, acabamos concordando. Ele é um pouco como “o homem do subterrâneo” de Dostoievski, mas agravado por um século que viu o humanismo desaparecer sob o brado heideggeriano de “o Pior já aconteceu”.
Clamance é simplesmente o hedonista comum, o egoísta, o prepotente, o corrupto e cínico que há em todos nós (ou não haveria tanta corrupção e cinismo no mundo). Todos nós com facilidade nos erguemos em juízes da moral, somos peritos em detectar a podridão do mundo, fácil de ver porque é afinal tão exterior; todos nós nos sentimos sublimes, vivemos e morremos como cúmplices, mas nos queremos omissos, nos desculpamos com facilidade, não tínhamos nada com isso, as intenções eram as melhores etc. Em suma, jamais compreendemos o quanto colaboramos para que o mundo seja sórdido.


Prestar atenção a esse partido tão querido por nós, de esquerda, que desabou há um bom tempo e em geral nunca quis admitir e seguirá não admitindo sua corrupção. Uma corrupção especial, daquelas de pessoas que se acham automaticamente santificadas por estarem ao lado dos oprimidos, das boas causas, da superioridade moral, e exatamente por essa auto-complacência condescendem com o mal, achando que, ao praticá-lo, um santo está desculpado a priori; são sempre os mesmos santos automáticos que acham que purificam, com sua presença, o ar e a índole de um bordel. Nunca agem errado e se espantam quando alguém lhes diz que estão cercados da pior incredulidade, por tudo que fazem. Há uma candura fantástica na sua inconseqüência, na sua cegueira. A crença de sua superioridade moral os tornou esses monstrengos acomodados numa providencial ignorância de tudo que se autorizam a fazer.

Clamance é um hipócrita. Até uma certa altura, ele estava convencido de agir humanitariamente, de ser um sujeito até exemplar, bem-sucedido com as mulheres, com veia filantrópica, intelectualmente brilhante, profissionalmente admirado, fisicamente bem-dotado etc. – em suma, um homem de sucesso. Ele se vangloria desse humanitarismo, inclusive, de ajudar viúvas, de amparar cegos para atravessar a rua.


Um dia, um incidente curioso lhe deu a consciência exata de sua pequenez e do mal-estar desse mundo em que se sente à vontade: passando por uma ponte, viu uma mulher, cuja intenção era óbvia, mas ele a ignorou, até ouvir um grito – um pedido de socorro? – quando já ia bem longe. Não se voltou para salvá-la: a noite estava fria e ele não queria se molhar.


A partir daí, cai. Sua queda é a queda de uma consciência falsa numa contingência verdadeira: o absurdo, o horror do mundo, com os quais estamos muito mais mancomunados do que pensamos. O livro todo é compreensível como o longo desabafo de um omisso que de modo algum consegue escapar à consciência de sua culpa e da culpa do mundo todo, afundando-se numa auto-degradação lúcida, que só faz corroborar tudo que de horrível pensa de si mesmo e dos homens.


Mesmo os melhores homens que conhecemos podem, por insídias do narcisismo – que é nosso verdadeiro pecado mortal – não serem mais que pilares da opressão, da indiferença e da crueldade que nos cercam. “A queda” põe dedo em brasa na ferida que os ilustres, os admirados, os muito louvados – mesmo aqueles que parecem mais humildes e despojados – detestam admitir em si mesmos.


Revela em Camus uma coragem incomum. Num personagem como Rieux, o médico de “A peste”, cheio de ótimas intenções, de auto-complacências e atenuantes, apaixonado por seu papel de consciência única de uma comunidade afetada pela epidemia, enxerga-se essa vaidade e o pendor pela retórica, pelas grandes frases, e tínhamos ali um óbvio alter-ego do escritor argelino.


Digamos que “A queda” é superior porque nele Camus obriga Rieux a passar por essa ponte onde a mulher grita e não é ouvida. Pode ser triste, mas é muito mais verossímil. Há pouco heroísmo em nosso mundo, e santos, nenhum. O gesto que Clamance não fez é o gesto que nunca fazemos por ninguém. E não há desculpa para o que nunca fizemos. A única lucidez consiste em lamentar, em não mentir para nós mesmos – e para o mundo – que somos determinada efígie muito querida. Essa efígie pode se erguer muito alto, mas está impregnada de terra e excremento. É só não se iludir mais. E produzir livros à altura dessa desilusão, a única que pode atestar um resto de dignidade no homem do nosso tempo.


Livro obrigatório. Continuará interessando quando os outros Camus nem mais forem lembrados.

(texto originalmente publicado no site literário CRONÓPIOS em 4/12/2005 – Reproduzido com autorização do autor)



NOTA BIOGRÁFICA


Chico Lopes é escritor, pintor e crítico de cinema. É programador e apresentador do Cinevideoclube do Instituto Moreira Salles (Casa da Cultura) de Poços de Caldas, MG. Publicou dois livros de contos de sua autoria – “Nó de sombras” (2000) e “Dobras da noite” (2004), prefaciados por Ignácio de L. Brandão e Nelson de Oliveira. Teve contos publicados em revistas como a Cult de São Paulo e jornais como o Rascunho, de Curitiba. Um conto seu está na antologia “Cenas da favela”, organizada para a Ediouro/Geração Editorial por Nelson de Oliveira em 2007. Fez traduções de Henry James (“A volta do parafuso”) e outras para a Ediouro e Rocco (Gregory Maguire, Charlaine Harris, Max Allan Collins e Michael Scott). Escreve sobre livros e filmes, crônicas, resenhas e ensaios, nos sites Germina, Conexão Maringá, Meio Tom, Verbo 21 e Verdes Trigos. Tem inéditos livros de contos, novelas, ensaios, poesia e memória.

Textos do autor no CRONÓPIOS: http://www.cronopios.com.br/site/pesquisa.asp

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Balada da carne


Já que o dia é par: falemos de amor.

Já que à frente sempre restará o horizonte:
não me enterrarei além dos olhos.

Já que é no vazio insalubre da cura
que se percebe a alma evanescendo:
tragam-me uma taça.

Já que eu disse sim:
limitem os convidados
presentes à minha embriaguez.

Já que a palavra é uma puta:
rasguem o poema.

Já que a rima é farta e o poeta um estorvo:
que se recompense o primeiro idiota
a me cortar a carne.


(do livro Rascunhos do absurdo )