domingo, 30 de janeiro de 2011

Manhã de mais um dia




Um papel amassado
jogado na calçada da vida
os transeuntes passam...
Ele os observa.
O que traz escrito
foi mantido em segredo
pelas mãos que o desprezaram
era branco há poucas horas....
Já não o é mais.
Nele se misturam as marcas
de tantas angústias deixadas incógnitas
nesta manhã de mais um dia.
O vento o lança entre asfaltos e esquinas
o homem o pisa e chuta
sempre novas marcas....
O melhor que pode esperar
é que a reciclagem lhe devolva a dignidade
mas o que traz escrito não importa?
E as lições das ruas não interessam ao homem?
Talvez considerem que suas verdades devam ser mesmo esquecidas
o que se deixa nas ruas são os dejetos do inconsciente.
Com o passar das horas,
com o passar das ruas,
com o passar das vidas
já é o papel uma massa compacta, enegrecida e densa
perdeu sua pureza,
deixou de ser leve.
Foi-se o branco ariano da hipocrisia.
Ficou a verdade negra
crua, incontestável, verdadeiramente humana.
Deixou de ser papel,
passou a ser lixo
rico em sabedoria,
esquecido na sarjeta
de mais um dia.

Jorge Elias Neto
(Verdes versos - 2007)

domingo, 23 de janeiro de 2011

Gilles Deleuze



“É preciso falar da criação como trançando seu caminho entre impossibilidades...
A criação se faz em gargalos de estrangulamento. Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempor cria um possível. É preciso lixar a parede, pois sem um conjunto de impossibilidades não se terá essa linha de fuga, essa saída que constitui a criação, essa potência do falso que constitui a verdade. É preciso escrever líquido ou gasoso, justamente porque a percepção e a opinião ordinária são sólidas, geométricas. Nada de abandonar a terra. Mas tornar-se tanto mais terrestre quanto se inventa leis do líquido e do gasoso de que a terra depende. O estilo, então, tem necessidade de muito silêncio e trabalho para produzir um turbilhão no mesmo lugar, depois, lança-se como um fósforo que as crianças vão seguindo na água da sarjeta. Pois certamente não é compondo palavras, combinando frases, utilizando ideias que se faz um estilo. É preciso abrir as palavras, rachar as coisas, para que se liberem vetores que são os da terra. Todo escritor, todo criador é uma sombra. Como fazer a biografia de Proust ou Kafka? A partir do momento em que se escreve, a sombra é primeira em relação ao corpo. A verdade é da ordem da produção de existência. Não está dentro da cabeça, é algo que existe. O escritor emite corpos reais. No caso de Pessoa são personagens imaginários, não tão imaginários, porque ele lhes dá uma escrita, uma função. Mas ele sobretudo não faz, ele mesmo, o que os personagens fazem. Não se pode ir longe na literatura com o sistema "Viajamos e vimos muito", onde o autor primeiro faz as coisas e em seguida relata. O narcisismo dos autores é odioso porque não pode haver narcisismo de uma sombra. Então a entrevista acabou. O que é grave, não é atravessar o deserto, tendo a idade e a paciência para isto; grave é para os jovens escritores que nascem no deserto, porque correm o risco de verem sua empreitada anulada antes mesmo que aconteça. E no entanto, é impossível que não nasça a nova raça de escritores que estão aí para os trabalhos e estilos.”


Fragmento de entrevista de Gilles Deleuze

(L´Autre Journal, outubro de 1985)
in: Conversações -Gilles Deleuze - editora 34

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Dante Milano



Salmo perdido



                                        Dante Milano


Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.


Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.


O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.


Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Papo de passarinho



Papo de passarinho



Acabo de ler Silêncios de Gustavo Felicíssimo. Vejo encerrar-se um ciclo e me ponho a escrever.
Digo previamente ao leitor de minha total parcialidade. Sabemos da prevenção que nos circunda quando lemos as resenhas habitualmente veiculadas em blogs, publicadas em outras mídias. Texto em cima de texto, sobre o texto, incentivo à leitura do texto ... Não é este meu propósito.
Iniciei meu blog por sugestão do poeta Miguel Marvilla – uma forma de divulgar meus poemas e interagir com leitores e outros autores. Um de meus primeiros contatos foi com Gustavo, desde então centenas de emails trocados; minha primeira entrevista como poeta; o aprendizado diário sobre a poesia baiana no belo blog Sopa de poesia http://www.sopadepoesia.blogspot.com/, organizado por Gustavo; um livro publicado (meu livro Rascunhos do absurdo foi organizado – de forma exemplar - por Gustavo); sugestões; discussões sobre livros e autores; uma bela tarde em Ilhéus, na varanda do amigo Pedro, apreciando a beleza dos manguezais com algumas cervejas geladas e boas gargalhadas; o nascimento de Flora (primeira filha de Gustavo) e agora o primeiro livro autoral do poeta. Dito isso, reafirmo o viés do não distanciamento. Prefiro assim, fica mais fácil e honesto quando se conhece um pouco do homem.
Gustavo é papagaio em pé no arame: inquieto, autêntico, honesto (e por isso polêmico) – apaixonado pela literatura. Um paulista em perfeita simbiose com a terra que adotou – com Ilhéus e com o Rio Cachoeira que banha Itabuna (homenageado em Silêncios com uma bela sequência de haicais ...).
O que dizer de um paulista que migrou de Marília, passou por Salvador e pousou em Itabuna e Ilhéus: um nômade.
Mas pode-se esperar consistência, continuidade em tal andarilho?
Quem lê Silêncios sente que o poeta fincou estacas profundas em solo baiano: deixou de ser nômade?
Diz Deleuze citando Toynbee:
Não só existem estranhas viagens numa cidade, também existem viagens no mesmo lugar; não estamos pensando nos drogados, cuja experiência é por demais ambígua, mas antes nos verdadeiros nômades. É o propósito destes nômades: eles não se movem. São nômades por mais que não se movam, não migrem , são nômades por manterem um espaço liso que se recusam a abandonar, e que só abandonam para conquistar ou morrer. Viagem no mesmo lugar, esse é o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se desenvolvam também em extensão.
Silêncios é o primeiro resultado do mergulho profundo (já característicos da personalidade de Gustavo Felicíssimo) no universo do haikai, Seryu, Tanka e Haibun. Desde a capa - a imagem de um pássaro estilizado com feições orientais (conheci o autor da pintura durante minha visita a Ilhéus) Silêncios mostra-se irretocável.
Para cada parte (o livro é agrupado em 5 partes conforte os formas poéticas acima enumerados, somados de um breve ensaio sobre o haikai no Brasil) encontramos uma definição didática que permite ao leitor não familiarizado tomar entendimento dessas formas de poesia oriental.
E é então que o pássaro falante, alegre, de riso solto: silencia... E se põe a catar as imagens simples do cotidiano vivido com paixão pelo seu em torno.
Foi Manuel Bandeira quem primeiro me ensinou a beleza da simplicidade ... A dificuldade da simplicidade...
E eis alguns exemplos do que é simples e belo:

        o vento do outono
como um pássaro que passa
        partiu sem adeus


outono ou inverno?
caem as folhas confusas
no seio materno

       algo mais perfeito?
as folhas mortas no campo
       fecundam a terra


Ou ainda no Senryu, uma variação mais irônica do haikai clássico:

da fruta que eu gosto
a namoradinha dela
chupa até o caroço

Como últimos exemplos, esses belos haikais escritos em homenagem à agonia do Rio Cachoeira ( alertado por Gustavo, pude sentir o sofrimento do Rio quando de minha breve passagem por Itabuna)

I

madruguei chorando –

silenciou-se o grande rio

ao me ver nascer


VIII

no dorso de pedra
correm águas maculadas –
tristemente o vejo


XIII

nada singra mais
as correntes deste rio –
só a lama humana

Comecei dizendo de minha parcialidade... Reafirmo aqui que sou parcial quando me deparo com uma escrita simples que trás o belo, e nos dá o que nos preenche a alma – a emoção.
Muito podemos esperar e cobrar de Gustavo Felicíssimo.
                       Ele promete ... E cumpre.


                                                                                Jorge Elias Neto




segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

1°de janeiro

Um poema já conhecido de muitos que acompanham este blog.
Mas não tenho nada mais significativo para postar neste momento ...



1°de janeiro







Após o pão e circo,
sigo em busca da ciência de desinventar.


No vazio do salão amanhecido
ainda ressoam os ecos dos champanhes,
os alaridos esperançosos,
os sussurros de cumplicidade.

De sólido,
ficaram os confetes e serpentinas,
que nada entendem da solidão.



(do livro Rascunhos do absurdo)