domingo, 27 de fevereiro de 2011

Vinicius de Moraes - Sobre poesia


Sobre poesia

Não têm sido poucas as tentativas de definir o que é poesia. Desde Platão e Aristóteles até os semânticos e concretistas modernos, insistem filósofos, críticos e mesmo os próprios poetas em dar uma definição da arte de se exprimir em versos, velha como a humanidade. Eu mesmo, em artigos e críticas que já vão longe, não me pude furtar à vaidade de fazer os meus mots de finesse em causa própria - coisa que hoje me parece senão irresponsável, pelo menos bastante literária.

Um operário parte de um monte de tijolos sem significação especial senão serem tijolos para - sob a orientação de um construtor que por sua vez segue os cálculos de um engenheiro obediente ao projeto de um arquiteto - levantar uma casa. Um monte de tijolos é um monte de tijolos. Não existe nele beleza específica. Mas uma casa pode ser bela, se o projeto de um bom arquiteto tiver a estruturá-lo os cálculos de um bom engenheiro e a vigilância de um bom construtor no sentido do bom acabamento, por um bom operário, do trabalho em execução.

Troquem-se tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de arquiteto, engenheiro, construtor e operário, e aí tendes o que é poesia. A comparação pode parecer orgulhosa, do ponto de vista do poeta, mas, muito pelo contrário, ela me parece colocar a poesia em sua real posição diante das outras artes: a de verdadeira humildade. O material do poeta é a vida, e só a vida, com tudo o que ela tem de sórdido e sublime. Seu instrumento é a palavra. Sua função é a de ser expressão verbal rítmica ao mundo informe de sensações, sentimentos e pressentimentos dos outros com relação a tudo o que existe ou é passível de existência no mundo mágico da imaginação. Seu único dever é fazê-lo da maneira mais bela, simples e comunicativa possível, do contrário ele não será nunca um bom poeta, mas um mero lucubrador de versos.

O material do poeta é a vida, dissemos. Por isso me parece que a poesia é a mais humilde das artes. E, como tal, a mais heróica, pois essa circunstância determina que o poeta constitua a lenha preferida para a lareira do alheio, embora o que se mostre de saída às visitas seja o quadro em cima dela, ou a escultura no saguão, ou o último long-playing em alta- fidelidade, ou a própria casa se ela for obra de um arquiteto de nome. E eu vos direi o porquê dessa atitude, de vez que não há nisso nenhum mistério, nem qualquer demérito para a poesia. É que a vida é para todos um fato cotidiano. Ela o é pela dinâmica mesma de suas contradições, pelo equilíbrio mesmo de seus pólos contrários. O homem não poderia viver sob o sentimento permanente dessas contradições e desses contrários, que procura constantemente esquecer para poder mover a máquina do mundo, da qual é o único criador e obreiro, e para não perder a sua razão de ser dentro de uma natureza em que constitui ao mesmo tempo a nota mais bela e mais desarmônica. Ou melhor: para não perder a razão tout court.

Mas para o poeta a vida é eterna. Ele vive no vórtice dessas contradições, no eixo desses contrários. Não viva ele assim, e transformar-se á certamente, dentro de um mundo em carne viva, num jardinista, num floricultor de espécimes que, por mais belos sejam, pertencem antes a estufas que ao homem que vive nas ruas e nas casas. Isto é: pelo menos para mim. E não é outra a razão pela qual a poesia tem dado à história, dentro do quadro das artes, o maior, de longe o maior número de santos e de mártires. Pois, individualmente, o poeta é, ai dele, um ser em constante busca de absoluto e, socialmente, um permanente revoltado. Daí não haver por que estranhar o fato de ser a poesia, para efeitos domésticos, a filha pobre na família das artes, e um elemento de perturbação da ordem dentro da sociedade tal como está constituída.

Diz-se que o poeta é um criador, ou melhor, um estruturador de línguas e, sendo assim, de civilizações. Homero, Virgílio, Dante, Chaucer, Shakespeare, Camões, os poetas anônimos do Cantar de Mío Cid vivem à base dessas afirmações. Pode ser. Mas para o burguês comum a poesia não é coisa que se possa trocar usualmente por dinheiro, pendurar na parede como um quadro, colocar num jardim como uma escultura, pôr num toca-discos como uma sinfonia, transportar para a tela como um conto, uma novela ou um romance, nem encenar, como um roteiro cinematográfico, um balé ou uma peça de teatro. Modigliani - que se fosse vivo seria multimilionário como Picasso - podia, na época em que morria de fome, trocar uma tela por um prato de comida: muitos artistas plásticos o fizeram antes e depois dele. Mas eu acho difícil que um poeta possa jamais conseguir o seu filé em troca de um soneto ou uma balada. Por isso me parece que a maior beleza dessa arte modesta e heróica seja a sua aparente inutilidade. Isso dá ao verdadeiro poeta forças para jamais se comprometer com os donos da vida. Seu único patrão é a própria vida: a vida dos homens em sua longa luta contra a natureza e contra si mesmos para se realizarem em amor e tranqüilidade.


Vinicius de Moraes

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Das sombras

Foto: Luis Henrique Borges


A sombra subsiste no oco
do tronco posto
à beira do medo.
Risonha e sínica,
desafia as mãos
a penetrar-lhe a boca,
intestinos – segredos.

(Uma voz rouca chama do silêncio.)

E mais tarde, então,
ouvindo o eco do nada,
a matéria frouxa,
caberá perfeita
em suas entranhas rombas.
Deixará para sempre,
o vazio das formas,
enveredando nas sombras, sem pavor, sem volta.
Sem amor,
sem pressa –
                       sem desejo.

                                   
Jorge Elias Neto 

domingo, 13 de fevereiro de 2011

A SANTÍSSIMA TRINDADE


A SANTÍSSIMA TRINDADE


                                                    José Augusto Carvalho

O cristianismo, em seu início, era bem diferente do catolicismo de hoje, em matéria de fé. Não se cogitava, nos primórdios da era cristã, da Santíssima Trindade, “mistério” que só mais de três séculos depois da morte de Cristo passou a fazer parte da religião católica.
Qual é a origem dessa crença?
Flavius Valerius Aurelius Claudius Constantinus, ou simplesmente, Constantino, o Grande, (nascido entre 280 e 288 e falecido em 337), às vésperas da batalha da ponte Mílvia, ocorrida em 28-X-312, teria visto no céu, de acordo com seu biógrafo Eusébio Pânfilo, uma cruz com dizeres em grego que a tradição manteve em latim: "In hoc signo vinces", isto é, "com este sinal vencerás". Constantino mandou pôr nos escudos de seus soldados essa frase, antes da batalha da Ponte Mílvia. De fato, Constantino venceu seu inimigo Maxêncio nessa batalha, mas foi só em 324, ao vencer Licínio, que Constantino se tornou senhor absoluto de todo o império romano, depois de ter garantido, pelo Edito de Milão (313), o cristianismo como religião oficial do Império. Vendo que Roma não era mais um bom lugar para sede do império romano, ele construiu no lugar em que se encontrava Bizâncio (hoje Istambul, na Turquia), a nova sede do governo, Constantinopla, a capital do império romano do Oriente, conhecido como "império bizantino". Foi durante o seu reinado que se construíram os primeiros monumentos cristãos, como a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém, a igreja de Santa Sofia, em Constantinopla, a basílica do Vaticano e a igreja dos Santos Apóstolos, em Roma, entre outros.
Em 325, no primeiro Concílio de Niceia, sob o papado de Silvestre I, Constantino condenou as ideias e os seguidores do egípcio Arius, sacerdote de Alexandria, fundador do arianismo, que negava a igualdade de natureza entre o Pai e o Filho e não reconhecia divindade em Jesus Cristo. Foi durante esse Concílio, em que se estabeleceram os dogmas principais do catolicismo, que houve uma discussão: Jesus seria apenas mais um profeta, como entendiam os Judeus, além de Arius, ou seria um Deus? Fausta, filha de Maximiano,
era casada com Constantino desde 307. Ela queria que Jesus fosse considerado Deus, apesar da relutância de Constantino. Mas ela lembrou-lhe o sinal que ele havia recebido e a vitória que ele acreditava ter sido o resultado de uma intervenção sobrenatural. Constantino concordou. Por votação, Cristo foi considerado Deus nesse primeiro Concílio de Niceia.
O Espírito Santo que era sugerido não como Deus, mas como manifestação de
Deus para justificar a virgindade de Maria, tornou-se dogma de fé e o terceiro Deus católico, no Concílio de Constantinopla, em 381 (sob o papado de Damaso I). Esse concílio voltou a condenar as ideias de Arius.
Acredito que Jesus Cristo tenha recusado, implicitamente, ser considerado Deus. Em Mt. 24:34-36, lê-se: “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam.O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não hão de passar.
Porém daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, mas unicamente meu Pai.” A onisciência é um atributo de Deus e, portanto, tem valor absoluto.
Ora, a onisciência é o saber absoluto sobre todas as coisas. Se o Filho não sabe algo que apenas o Pai sabe, então o Filho não é onisciente e, portanto, não é Deus.
Pensemos nisso.




( Texto publicado originalmente no Jornal A GAZETA em 06-08-10)

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Felipe Stefani

Círculo Místico



Todo homem tem uma beleza terrível
na órbita de seu abismo.
Ela alcança sua própria distância
e diz adeus.
Aqueles que a procurarem
nas horas que dançam
ouvirão anjos.


Ela dança num círculo místico,
nas correntezas que abrigam o mundo.
Aqueles que a alcançarem
ouvirão anjos.


Nunca mais amou os presságios,
os perigos do mar,
o medo.
Para além das margens ele morreria.
Esqueceu em si mesmo seus cantos profundos.


Todo homem tem uma dinastia
cravada em seu silêncio.
Aqueles que a alcançarem
ouvirão anjos.



Felipe Stefani é poeta, artista plástico e fotógrafo. Nasceu em São Paulo em 1975. Já fez de tudo, até biologia, maz foi na arte que encontrou meios de se relacionar com o mundo, como que dentro de um silêncio lírico... Tem ilustrado livro de outros escritores e já publicou seus poemas em diversos sites literários. Em 2009 publicou o livro “O Corpo Possível”, editado pelo coletivo Dulcinéia Catadora. Ilustrou “Rascunhos do absurdo” de Jorge Elias Neto. Em 2010 publicou “Verso Para Outro Sentido”, pela Escritura Editora. Tem seus desenhos publicados no site: WWW.pbase.com/sodesenho/felipe_stefani


Escreve também em seu blog: http://cultuar.blogspot.com/E-mail: felipe.stefani@uol.com.br