terça-feira, 29 de maio de 2012

O poeta W.J.SOLHA comenta o livro Rascunhos do absurdo


Jorge Elias,

 seu Rascunhos do Absurdo não é livro que se leia como quem chega em lugar estranho sem mapa. Creio que seus amigos poetas - que me parecem muitos- receberam seus poemas inéditos com outra luz, conhecendo-o pessoalmente, pois ou muito me engano ou há um tom confessional em sua obra, e  isso por certo ajudou-os a - automaticamente - decodificá-la, eliminando o que a nós - estranhos - chega como absurdo.

Não consegui ler seus poemas sem, a todo momento, me lembrar de Lorca:


Como aqui:


Despiertaque los montes todavía no respiran
Ylas hierbas de mi corazón están en otro sitio.


Ou aqui:

Con la sombra en la cintura
ella sueña en su baranda,


Ou neste exemplo:

Su voz deja cristales en la herida
y un gráfico de hueso en la ventana.


O absurdo se torna surreal.
Alguns exemplos seus:


Só sei transformar sapato em borboleta.

 Ou este:
 

Sobre minha cabeça
chocam-se as nuvens.

 Ou este:

No fim de semana
estendo o pano xadrez
no céu de pólvora.

 Que me remete a este:

voltado para esse lindo céu,
reluzente de bombas


Como é fácil de constatar, você também é um grande poeta. Como diz em Sonho no absurdo: "O poeta sabe a textura exata do sonho." Daí que - se numa primeira leitura muitos de seus poemas não me chegaram "prontos" - dois, pelo menos, me pareceram de imediata beleza: Percurso infindo: "No primeiro segundo\não achei a chave, não achei a porta". e

Cristo de pão. E um terceiro:

Emprenhar-se de miudezas;
deixando as mãos rendidas aos gestos costumeiros.
E, quando a luz se aperceber, desmembrada
pelo estalo da palavra,
jogar-se nos trilhos
pra salvar a flor.


Seu "Cristo de pão" - com o pai (fictício ou não) fazendo um crucifixo da massa de trigo - me lembra meu muito católico pai que insistia, nas refeições, que representávamos ali, mais uma vez, a Ceia. E que recolhêssemos qualquer migalha caida no chão com respeito, porque se tratava do corpo divino. Quando perdi a fé, fiz - ao contrário de você - um esforço imenso para me livrar do sentimento do absurdo, escrevendo um romance e uma peça de teatro (que montei em 88) - A Verdadeira Estória de Jesus (Ática, 1979), e voltei ao tema em outro romance, Relato de Prócula (A Girafa, 2010). Foi-lhe igualmente difícil - é o que me parece à primeira vista - perder a fé - que mais complica que explica - e isso você deixa explícito, quando diz

"Foi duro para mim \ ver Deus quebrar-se em minhas mãos"
 

Seu pai:

Meu pai vestia uma pele
de sonhos amarrotados.

Desdizendo o que eu disse acima:do mesmo modo que vi mãos humanas na elaboração da "Revelação Divina", você - lindamente - escreve:

Depois que reparei
digitais nos dedos de Deus

 ... e chega ao extremo do inococlasta, na  parte V de Só sei que vou te amar:

Bebi a cachaça das encruzilhadas;
Roubei hóstias nas sacristias;
o tridente do diabo
enfiei no rabo da mãe de santo.

 Freud não foi o primeiro a tentar a decifração da arte. Decifração para os outros, porque ela age - como nos sonhos - em mensagens que, para o artista, são o que você chama - à maneira de Drummond - de Claro enigma:    "Cada manhã traz consigo uma nova geografia. \  Deve-se, então, ver as nuvens \ para entender os dias."

 Bilac já disse: "ra, direis, ouvir estrelas. (...) É preciso amar para entendê-las"

 O mais, fica para outras leituras.

W.J.Solha

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Murilo Mendes



Cantiga de Malazarte


Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor, 
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.


Canto a García Lorca 


Não basta o sopro do vento
Nas oliveiras desertas,
O lamento de água oculta
Nos pátios da Andaluzia.

Trago-te o canto poroso,
O lamento consciente
Da palavra à outra palavra
Que fundaste com rigor.


O lamento substantivo
Sem ponto de exclamação:
Diverso do rito antigo,
Une a aridez ao fervor,

Recordando que soubeste
Defrontar a morte seca
Vinda no gume certeiro
Da espada silenciosa
Fazendo irromper o jacto

De vermelho: cor do mito
Criado com a força humana
Em que sonho e realidade
Ajustam seu contraponto.

Consolo-me da tua morte.
Que ela nos elucidou
Tua linguagem corporal
Onde el duende é alimentado
Pelo sal da inteligência,
Onde Espanha é calculada
Em número, peso e medida.

In: MENDES, Murilo. Antologia poética. Sel. João Cabral de Melo Neto. Introd. José Guilherme Merquior. Rio de Janeiro: Fontana; Brasília: INL, 1976

segunda-feira, 7 de maio de 2012

AS MUITAS MORTES DE UM HOMEM

AS MUITAS MORTES DE UM HOMEM


                                                        Affonso Romano de Sant’Anna

Estou tendo certa dificuldade
Com minha morte final.
À primeira
(cotidiana)
me acostumei:
olhava minha pele
o rosto dos amigos, e me dizia:
– eis que sibilina e estabanada
Ela vem vindo.
Cedo nos entendemos
quanto à dissolução.
e por ser progressiva e familiar
a ela me dediquei
desentranhando-a do espelho.
Ela não era apenas o cão
que eu levava a passear
era o amigo com quem
no entardecer, íntimo,
eu me aplicava a jogar.

2
A segunda morte (mais sutil)
aprendi:
            não vem durante, vem depois.
É como a traça, a ratazana, a ferrugem
que corroem o osso e a fama.
Após a devastação da carne
vem a extinção do nome.

3
Talvez houvesse uma terceira morte
da qual até agora escapamos
escapei:
             – sob nuvens de urânio
e cogumelos incubados
sombreando o horizonte
seguimos amando.
Quem sabe, outra morte – a quarta –
cada vez mais previsível
já se intrometeu entre tantas
como uma profecia maldita
igualmente fatal
                         – e eficaz.
Ela
     já manda seus recados
pela boca dos vulcões
fendas, terremotos, tsunamis
e se anuncia
na progressiva morte dos corais.

4
Há, no entanto, uma outra morte
a última, mais completa
mais brutal
que excederá a todas
em seu furor abissal.
Virá quando nesta galáxia
explodir o Sol
                     e a Terra e
                                     os planetas
derivarem frios para o caos.
Não importa que seja daqui a 4
ou 5 bilhões de anos
será, mais que injusta, total.
Bibliotecas e museus
arquiteturas fabulosas, todas as ruínas
a memória das tribos e rituais
os romances, as vitrinas, os pássaros
peixes e os diários
teus álbuns, tua mobília
tudo o que a mente humana perpetrou
Aristóteles, Platão e Nietzche
as pirâmides e os navios
os gatos, as mais lindas manequins e atrizes
os filmes, Shakespeares, Sófocles e Beckett
a máscara de ouro de Micenas
a tumba do faraó ...
Nenhuma invenção e prece
nos salvará.
Não adianta clamar: me poupem!
salvem Florença e minha família
e minha coleção de porcelanas
e estampilhas.
Nosso fim (como o começo)
não dependerá
de nenhum de nós.
Pode um piedoso ponderar:
– não nos alarmemos
o resto do universo
vai continuar.
Sim. Deus (ou que nome se lhe dê)
emergirá uma vez mais
dessa poeira cósmica
                                         para se reorganizar
e soberano
                         em outras galáxias
triunfará uma vez mais
sem precisar de nós.

Sant’Anna, Affonso Romano de, 1937 – Sísifo desce a montanha. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A arte do desvio - Alberto Pucheu

Em uma de suas “cartas de viagem”, escritas ficcionalmente a si mesmo quando foi a Londres, Lisboa e Paris, Campos de Carvalho escreveu: “Sonho o livro inatingível (todos nós sonhamos) que eu mesmo venha a compreender na sua totalidade só muitos anos depois, e que me escape justamente porque ainda não estou preparado para entendê-lo mas apenas para escrevê-lo”. O que aqui está em questão é o escritor. O escritor e seu sonho de escrita. Seu sonho de escrita mostra que, para o escritor, a compreensão é sempre secundária em relação à escrita. À revelia do entendimento e de um nome para definir o indefinível, a escrita se realiza no renascimento de cada palavra que, no corpo da sintaxe criada, faz parecer estar sendo usada pela primeira vez, instaurando um sentido inesperado para o leitor, mesmo que este seja o escritor enquanto leitor de seu próprio texto. Com olhar estrangeiro, olhar uma terra, inexistente em qualquer mapa, a que, de repente, se chega sem saber como. O escritor nunca sabe aonde seu livro vai, a próxima linha que será traçada; muitas vezes disfarçado, entre uma linha e outra, entre uma frase e outra, entre uma palavra e outra, há um abismo.

Por ser a arte misteriosa, por ser um acesso ao mistério que vence sua resistência integrando-se a ele, para Campos de Carvalho, só faz sentido o sem sentido de que a linguagem é capaz no desancoramento de suas maneiras estabelecidas e do dado do real, tornados risíveis pela experiência da linguagem criadora. Sendo a palavra escrita a verdadeira palavra, o que importa é a primazia do escrever; a escrita provoca a leitura, seu tempo se impõe sobre o dela, obriga-a a novos caminhos e a sua feitura como criação, não o inverso: “Quem não tem tempo para escrever um livro não deve lê-lo – este é um dos provérbios que faltam ao meu livro de Provérbios – e com razão”. Leitor e escritor se confundem naquele que tem a criação por potência. Resguardando uma zona inapreensível, o livro supera a possibilidade de uma leitura necessariamente parcial; em uma entrevista, acerca de um livro que não terminou de ser escrito, com sua linguagem cheia de paradoxos, afirmou: “Assim como a 4ª Sinfonia de Charles Ivens exige a presença de três maestros para ser bem interpretada, assim também penso que esse meu novo livro, para ser bem compreendido, deva ser lido simultaneamente por três leitores”. Da escrita, que não acata mestres nem discípulos, mas o solitário autocolocar-se, advém a força de criação que a leitura, sofrendo seu impacto, terá de acolher, para, só então, com anos de convívio, tentar compreendê-la, ou, ainda melhor, imitá-la, recriá-la mais do que entendê-la – isto significa fazer da leitura uma obra que lance as palavras no não sentido de onde elas vieram para estar sempre a caminho de novos sentidos, de sentidos primeiros.

Escapando ao fotográfico ou realístico, seja do mundo ou do livro, escritor e leitor enxergam o real já permeável à fantasia, que, dele, libera novas potências. Deste modo, jogar com as palavras não é apenas jogar com as palavras, mas, sobretudo, jogar com o mundo, com a sorte, com o destino de escritor que se apoia no sonho de um livro inatingível que se encarna em todos os livros atingíveis, propiciando-os. Lidar com a forma pelo informe, com o sentido pelo não sentido, com o acabamento pelo inacabamento, misturando-os – injetar aí uma passagem. O dedicar-se a este livro já traz uma ética de crescimento da vitalidade, de uma vivificação, de certo exagero, de uma iluminação excessiva e um enriquecimento muito maior do que os habitualmente alcançados no cotidiano: “Você, que também busca esse livro, sabe que não jogo com as palavras e sim apenas com a sorte (un coup de dés...) e que já o simples fato de buscá-lo representa um enriquecimento interior, quase ia dizendo um deslumbramento, a exemplo do que ocorre com o alquimista diante da Grande Obra, ao mesmo tempo dentro e tão longe dela”.

Quando se tem em vista a Grande Obra, escrever é a luta do deslumbramento contra o desespero, a luta da vida contra a morte, a luta da gênese contra o apocalipse, a luta do enriquecimento interior contra o empobrecimento interior, a luta da empatia contra a antipatia, a luta da vocação contra a repugnância, a luta da admiração contra o tédio, a luta de uma promessa de felicidade contra a tristeza e o desinteresse. Escrever é aceitar uma dualidade que nos possui, tomando partido de um compromisso com o polo da alegria. A partir desta dualidade original, deste hiato que nos fende impondo-nos um vácuo no qual mergulhamos ou uma falta que nos constitui, a partir desta ranhura por onde passa o pensamento, a escrita consolida uma seletividade. Se trazemos em nós a corda da forca, a escrita é o privilégio de outra corda, que também trazemos em nós, lançada ao mar ao afogado para que ele não se afogue, para que ele saia vivo. A escrita é a corda ou o fio do pensamento que ousa passar pela frincha sem desprezar o polo reativo que a envolve, mas corroborando, ou mesmo inventando, com muito mais força, o polo afirmativo que a circunda.

  Se um dos personagens narradores de Campos de Carvalho se diz possuído por um pessimismo doentio, “tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido”, escrever é, na gravidade da hora presente, o despertar do duplo que, submetendo o outro a sua potência afirmativa, desviará a bala da cabeça. Apesar de todos os riscos e temores, uma ética, portanto, interessada, a favor da vida, para conseguir estar mais à altura (ou à baixeza) dela, para conseguir chegar ao dia seguinte – o que já se constitui como uma promessa de alegria, como uma felicidade possível: “De volta ao quarto do hotel, ainda mais desesperado, punha-me a escrever cartas e mais cartas, a maior parte delas dirigidas a mim mesmo e sem nenhuma relação com meu desespero, como se apontasse um revólver contra o teto ou a lâmpada em vez de apontá-lo contra a minha cabeça. Bem ou mal, sobrevivi e continuo sobrevivendo – e só a você resolvi contar agora esse inferno íntimo em que me debati todo esse tempo, porque a conheço e sei igualmente possuída pelo demônio da eterna dúvida, que infelizmente para nós se confunde com a eterna certeza. Comecei esta carta à maneira de outras que escrevi sem destino nenhum, apenas para não morrer até o dia seguinte, e de novo até o dia seguinte”.

Não se trata de uma escrita confessional que escreveria o desespero vivido ou qualquer outro afeto previamente experimentado. O puro desespero não escreve; quem escreve é a espera – a esperança – que ainda reside no escritor mesmo durante o desespero, o não se assujeitar completamente a ele. Quem escreve é a saúde que resiste, a primazia da desintoxicação, o riso de um humor que se impõe sobre qualquer pessimismo. Quem escreve é o que não quer se entregar, que aposta, se não em algo mais, no vigor da escrita que alavanca o da vida e, mesmo, na soberania do escrever – libertário, anarquista – sobre o ser lido. Escrever é o alimento do escritor, que, com ele, ainda que temporariamente, deixa suas debilidades de lado apostando nas robustezas que o atravessam. A escrita: uma conquista de forças para remover o revólver da própria cabeça, direcionando-o a qualquer outro lugar; trata-se de uma arte do desvio, de, pela escrita, trocar o “inferno íntimo” por uma salvação possível fora de si (na escrita, onde o escritor se vê mais do que em si), por mais um dia, e mais um, e, renovadamente, mais um. Chegar ao dia seguinte pela escrita, a partir da qual a salvação não se dá pela certeza – finalmente – de um encontro apaziguador consigo ou da descoberta de uma verdade própria e pessoal, mas pela força conquistada para mergulhar um pouco mais tranquilamente na perdição que, constantemente, “cria verdades a torto e a direito, cada dia é uma verdade diferente, sem querer até que disse uma coisa que preste: cada dia uma verdade diferente”. A escrita: uma saída de emergência.

Se o vazio se faz presente por todos os lados, por cima, por baixo, por dentro, se a cratera e o buraco fundam a condição humana, mais do que nos incomodando, se “Posso ser um antecadáver, o abismo debaixo dos pés, mas recuso-me a ser enterrado em vida”, vale dizer que, diante do mais inquietante e terrífico, afirmando-o tragicamente, a arte é uma potência anticadavérica, de recusa ou adiamento da morte em vida, em nome de mais vida. Inventando verdades diferentes a cada instante, os momentos líricos são venenos para os vermes que nos querem devorar. Em uma entrevista, Campos de Carvalho afirma: “A arte é a única coisa em que se pode confiar nessa vida”. Confiar na arte, para confiar na vida. Em seu elogio nietzschiano, é o que diz Agamben, com a mesma intensidade de uma arte interessada, ou seja, vitalista: “A arte – para quem a cria – transforma-se em uma experiência cada vez mais inquietante, diante da qual falar de interesse é pelo menos um eufemismo, porque o que está em jogo não parece ser de maneira nenhuma a produção de uma bela obra, mas a vida ou a morte do autor ou, pelo menos, sua salvação espiritual”.

                                               
 Texto originalmente publicado no livro O amante da literatura e reproduzido no Portal Cronópios de Literatura


Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária da UFRJ. Entre vários livros, acaba de publicar O amante da literatura (Ed. Oficina Raquel), que contém o texto aqui publicado. E-mail: apucheu@gmail.com