domingo, 29 de novembro de 2009

Sombras e brisa


Foto: parede de trapos



Desabou a parede de retratos. Nada mais restava de pé.
Há anos repassava as mesmas imagens com o olhar de máquina de escrever manual. Até que as teclas emperraram...
A letra A do nome dela que agarrou-se ao S de separação.
Não pôde mais sair, ficou diante da parede a indagar respostas.
O mundo desconstruindo-se ao seu redor e ele não medindo esforços para manter-se
erguido sobre os escombros, que o espremiam cada vez mais de encontro a parede.
Tão exíguo tornou-se o espaço que seus óculos se arranhavam na moldura de vidro.
Os pelos da barba crescida entravam pelo vidro estilhaçado e roçava as belas coxas por debaixo do vestido branco.
A ausência de espaço não poupara nem mesmo as sombras.
Mas agora, todo passado era escombro.
E uma brisa irritante feriu-lhe os olhos através da lente quebrada dos óculos.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Ao sal


Cumuruxatiba - Bahia
Foto: Jorge Elias



O último passo – o de ida.
E assim devia ser para todo o sempre.

As amarras permaneceram tensas,
como se desconhecessem sua inutilidade.

O último espaço ficou suspenso.
Num retalho de tempo,

a dúvida da volta.
E então passou o prazo,

e tombou o píer, de joelhos,
sobre o velho mar.



(Rascunhos do absurdo – 2009)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

NEUZA PINHEIRO


(auto-retrato)





quando o tempo
não me der a mínima
nem musas
hei de chover ausência
às semifusas


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SOLO PARA SONAR

Morcegos são quase amor
são quase cegos
Morcegos são quase Morse
vates do nosso reverso
Morcegos surrupiam extratos da noite
e vertem réquiens sibilinos
sinos, farfalhar de estrias
trilhas do nosso flagelo
Morcegos são quase trevos
na lapela dos becos
conhecem o rito dos gatos
a alma dos cães em solitude
Morcegos sabem quando as ruas divagam
sabem do ponto exato em que a morte acelera
e do éter que entorpece os ciprestes
Morcegos são freqüências
decibéis do que não chega
Morcegos choram pelo Homem-estalactite
o homem submerso nas ondas cavernosas
do seu próprio desespero
corpo fechado
em oitavas incontáveis
de miséria
Morcegos não guardam segredo
escancaram cicatrizes ainda quentes.

M o r c e g o s a t r a v e s s a m a l u a...



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MONSTRUÁRIO PARA GEMIDO E RANGER DE DENTES
(os cachorros nunca mais serão azuis...)

I
ÁRI(D)A


Olhos secos ralando cebolas.
Não reconheço a salvação
ela não me reconhece
A salvação jaz em algum templo soterrado no deserto.
A alma
quem sabe já tenha se encaixado
um dia
nas ranhuras da carne
quem sabe tenha descansado no Peito Imenso da estrela-Mater
(estrelas são dádivas, sinais de vida
mas luminosos são paranóicos
luminosos
são armas letais)

II
NUVENS NEGRAS


Olhos vagos
olhos sem medida
estendendo lençóis
Não reconheço as nuvens
elas não me reconhecem
As nuvens
nunca mais serão carneiro
nunca mais serão dragão
nunca mais serão castelo
O filhote de pássaro agoniza na calçada
Não resistiu ao temporal...




Neuza Pinheiro foi a primeira intérprete de Arrigo Barnabé. Cantou Diversões Eletrônicas, vencedora do festival TV Cultura-MPB (1979) e classificou Infortúnio em quinto lugar.
Ganhou o prêmio nacional de melhor intérprete cantando Sabor de Veneno, de Arrigo no Festival MPB TV Tupi (1979). Trabalhou com Itamar Assumpção na banda Isca de polícia (1985/88). Lançou o CD autoral OLODANGO em 2005. Através do projeto PROFISSÃO DE FEBRE, Neuza vem musicando os poemas de Paulo Leminski. O projeto se estendeu em 2008 a poetas como Odete Semedo (Guiné Bissau), Marcelo Sandmann e Bárbara Lia (Curitiba). É paranaense, socióloga e educadora da Prefeitura Municipal de São Paulo. Vive em S. André-SP.
Email: pinheironeuza@hotmail.com
Blog: www.spiritualsdoorvalho.blogspot.com
Myspace: www.myspace.com/neuzapinheiro

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

PÉTALAS


A menina de beijo eriçado,
lia rascunhos de coito;
sonhando pétalas.

A mocinha de peito afiado,
fendia azulejos de quatro;
sonhando pétalas.

A mulher ao jeito do Diabo,
sorvia desprezo no prato;
sonhando pétalas.

A anciã no leito, exilada,
morria sozinha no quarto.


(Verdes versos - 2007)


Obs: este meu poema traz o corte, o fim inesperado, tão característico da obra de Miguel Marvilla. Quando Miguel organizou meu livro, fez alguns comentários que me foram muito úteis na elaboração dos poemas que se seguiram. Após isso, na releitura que fiz de sua obra, observei tratar-se de um traço utilizado em alguns dos seus melhores poemas.