quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Lêdo Ivo


Uma busca incessante

Ainda não desisti de encontrar Deus.
Desconfio que o gavião o esconde em suas asas
e os sonhos o abrigam nas dobras de sua oculta sabedoria.
Às vezes, um grito dilacera o espaço estival
da várzea que divide as minhas florestas.
Então sou inclinado a acreditar que ouvi
o grito de Deus, após o longo silêncio.
Deixo de pisar a formiga negra que avança
numa saliência da estrada em declive
e me envolve a percepção que consegui evitar
a morte de Deus, em um de seus disfarces.
Dedico o dia inteiro à procura incansável
e de repente a noite cai: a noite negra como uma formiga.
Deus passeia incólume entre as constelações.


As palavras banidas

Os poetas são coveiros que enterram palavras
e se contentam com algumas migalhas do dicionário.
Criaturas frugais, não admitem que as palavras brilhem como
                                                                           [luzes de navios

vistas da praia branca da página, da praia banal da vida.
Exigem que elas tenham a submissão dos bichos domados de
                                                                                   [ um circo
ou andem trajadas com o burel dos franciscanos.
Mas na noite frígida varrida pelas constelações
as palavras banidas se levantam de suas tumbas
e, no espaço reservado às fulgurações perpétuas,
compõem o grande poema do universo.

  
A manhã ensangüentada


Míssil, estrela dos homens!
Cada lado do mundo tem muitos lados
e fronteiras que se dilatam na treva.
Dobro uma esquina e vejo uma nuvem
guardar um relâmpago.
Um tambor belicoso está sempre rufando
e a guerra é interminável.
Assediado por vozes estrepidosas e gestos homicidas
atravesso a manhã ensangüentada.
Uma mão pousa em meu ombro. É um anjo.
é simplesmente um anjo
no mundo que se desfaz em medo e horror.


Lêdo IvoPlenilúnio: TOPBOOKS EDITORA, Rio de Janeiro, 2004     

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Oscar Gama Filho - poema inédito


Para Curar um amor Doente
Oscar Gama Filho
A ideia era te alimentar
com o amor quântico.
A cura estaria no meu verso
e, ao mesmo tempo, nos confins do universo.

Desintegrado, você se repartiria,
Repartindo-se, esqueceria de si.
E, ao voltar a si, se seria.

Sendo-se, se redimiria ao bem estar,
Tábula rasa, se refaria no ar risonho
e apenas dele se alimentaria o sonho.

Itaparica, 27/10/2012



Oscar Gama Filho nasceu em Alegre, E.S., em 31 de março de 1958. Publicou seus poemas em De Amor à Política, 1979;  em Congregação do Desencontro, 1980, em O Despedaçado ao Espelho, 1988 e em O Relógio Marítimo, pela Imago, em 2001. Procurou o tempo perdido em obras como História do Teatro Capixaba: 395 Anos, 1981, Teatro Romântico Capixaba, publicado pelo Instituto Nacional de Artes Cênicas, em 1987, e Razão do Brasil, lançado pela José Olympio Editora em 1991. Traduziu-se para Rimbaud no conto-poema-ensaio-tradução-crítica Eu Conheci Rimbaud, de 1989. Realizou a exposição de arte ambiental poético-plástica Varais de Edifícios, em 1978, e gravou o disco Samblues, em 1992 — incluído no selo histórico Série Fonográfica do Espírito Santo. Em 2005, lançou o CD Antes do Fim-Depois do Começo, contendo músicas em parceria com Mario Ruy. Dirigiu suas peças teatrais A Mãe Provisória, em 1978, e Estação Treblinka Garden, em 1979. Pertence à Academia Espírito-santense de Letras e ao Instituto Histórico e Geográfico. Profissionalmente, é psicólogo clínico. 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Indagações



Em que pés
se sustenta o homem
cujo deus
interior
– atordoado –
não mais justifica
a fome do prato
sem hóstia,
do temor
sem abrigo
de uma morte
sem sentido?

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   A primeira gota
carrega sua identidade
nesse caudal?
Ou se dispersa
como os homens
no sufrágio das almas
nessa penúria dos eleitos
que rogam delirantes
a diluição de sua irrelevância
aos pés da cruz?


Jorge  Elias Neto




quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Gelo estável



O enredo da bala cruzando
os olhos do pátio
‒ fingindo inocência

O milésimo seguinte
            ‒ oculto ‒
no deblun do tempo

O bolso vazio
do corpo
embalado em papelão
num beco
de saudosas paisagens

A verdade
do paquiquerme
cobrindo os olhos
com enormes orelhas

O rústico desfiando
o pelo do urso
sob os pés
enlameados

As lantejoulas
vestindo  perdulários
na simetria dos quatro
cantos da casamata

A textura vulgar
do remendo
da insensatez

A pústula
que não rompe
não vasa
                    pois já não importa.

Jorge ELias Neto