quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

José Paulo Paes


ÁLIBI


Se os poetas não cantassem
O que teriam os filósofos a explicar?




PISA: A TORRE

Em vão te inclinas pedagogicamente

O mundo jamais compreenderá a obliqüidade dos bêbados
Ou o mergulho dos suicidas


SÍSIFO


Hoje agora me decido
Depois amanhã hesito
O dia detém meu passo
A noite cala meu grito

Deuses onde ? céu existe?
Céu existe? Deuses onde?
Um eco que faz perguntas
Um espelho que responde

E eu sísifo tardotriste
A tilintar as correntes
De dilemas renitentes

Lá me vou sem vez nem voz
Rolar a pedra dos mudos
Pela montanha dos sós


LIÇÃO DE COISAS


Uma nêspera branca!
Transtornou-se acaso a ordem do universo?

Mordo-lhe a polpa: o mesmo
Gosto das nêsperas amarelas.

Tudo é superfície.





José Paulo Paes nasceu em Taquaritinga, interior de São Paulo, em 1926, e morreu na capital do estado em 1998. Publicou mais de dez livros de poesia.
Destacou-se também com ensaísta e tradutor.
Um verdadeiro mestre do epigrama.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Ensino básico


Recostado à tempestade
o menino fiava o tempo.

Um estrondo
fez esquecer as vozes
que atravessavam os arbustos

e o duende com suas figuras repetidas
pronto para parir o anti-cristo.

(Não é perversão,
mas o arame tem um toque tão suave
que desperta).


Defronte de casa,
a enxurrada enchia a taça dos desencantados.

O Mastro seco da sibipiruna
escondia suas flores
que boiavam sobre as nuvens baixas...

E com a torrente
chegavam pensamentos...

Ensinaram-no:
– A pretensão
de dispensar o molde
esfacela a possibilidade de êxito.

(Pancada à pancada
se amaciam os músculos).


– Os rabiscos nas carteiras
ficarão guardados
até que apodreça a madeira.
Depois...
Esquecerás o lápis no apontador.

...

- Não me esconderei no limite da palavra.
(e um grito rouco foi o batedor).

- Prevaleça perante
os olhos malditos
o descabimento dos meus gestos.



Jorge Elias Neto

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Gustavo Felicíssimo


CANTO DE ORFEU

Teu corpo delgado
possui formas feitas
para as minhas mãos.
E por ser assim
o vento traz de longe o teu cheiro,
nas nuvens o teu rosto esculpido.
É sempre assim,
desde que não estamos juntos
meus sentidos saltam
pelas janelas,
antecipam-se à minha chegada.
É sempre assim
e isso não há de mudar,
pois entre um verso e outro,
afazeres e bancos de praça,
brilha no meu horizonte
a estrela da tua imagem.
Há esse brilho
e um campo de orquídeas
que te exaltam
e te observam quando passas,
porque passas tão linda,
tão bela quanto a lua.
Ai, minha amada,
olha bem nos olhos meus,
olha e verás rastros
e riscos de fogo.
Contra a fúria das águas me lancei,
ao inferno mil vezes voltei
sem luz, sem remo ou âncora
por ouvir a voz da fantasia
e a lira que se encantou por tua face.
Toma meu braço
e a majestade do verso,
eis tudo que te ofereço;
restituiremos à serpente o seu veneno
e a magia da poesia aos que não amam.



CANTO DE EURÍDICE

Senta e escuta o orvalho no vale
e o verde do campo
enquanto contemplo a tua carne vertiginosa
e te falo sobre a vida
onde apenas os mortos sobrevivem.
Os sonhos, meu amado,
me faziam companhia durante o crepúsculo
e neles te encontrava,
o teu canto escutava,
mas te alcançar já não podia.
Pedi aos deuses que viesses em hora mágica,
quando a luz se avizinhasse
e me prendesse nos teus abraços,
que me lembrasse dos teus passos
e o sabor dulcíssimo do beijo.
Ofereci-me em sacrifício,
despi-me das fontes, das nascentes
e passei a mendigar pelos caminhos;
coroada de espinhos
vi a existência caindo sobre os pântanos.
Atirei-me ao fogo
e além do fogo nada mais conheci;
resisti à dor e a tudo que há de vil,
desejei adormecer
e adormecer também não pude.
Aceitei os desígnios divinos
e feito um pégaso preso ao arado,
entre as cinzas ardendo,
luzi meu próprio sofrimento;
recolhi-me ao tormento, insignificante.
Silenciei-me na insana luta
e frágil feito a flor do jasmineiro,
sôfrega, esperei por tua chegada
como se espera um deus
junto à tarde imaculada das madressilvas.


EPIFANIA NO INFERNO
Sentença, marcha e aflição de Orfeu

(A palavra de Hades)

Comoveu-me o seu gesto,
fragilíssimo Orfeu.

O amor, enfim, pelo amor
enfrentou a fúria dos demônios.

Atravessou o Lete
e chegou à morada dos mortos.

Por isso nenhum sacrifício peço,
apenas que se vá sem vacilar.

Seus olhos os olhos da amada
não deverão encontrar.

O caminho é longo
e a voz em silêncio permanecerá.


(A saída do Tártaro)

Orfeu empunha a Lira,
não possui arma, espada ou escudo.

O coração vacila, oprime o peito,
empreende ao fim a inevitável marcha.

Eurídice o segue em fluentes passos,
não hesita.

Olhos em aflição, pálpebras em brasa,
os amantes rasgam a escuridão.

Demônios instigam de parte a parte
e a inquietação se torna mais intensa.

Fatigados seguem pela estreita via
que aos corações consola ou pune.


(Consciência de Orfeu)

Ah, quanto desgosto Orfeu,
quanta culpa carrega!

Entregue agora à vida sem pejo,
demonstra afeição pelo Calais!

Agora grita exaltado, Orfeu,
pois é tua toda a culpa, toda expiação!

Bem vindo ao templo dos homens,
o templo da carne, do sangue, da agonia!

Pois quem perde a quem ama por descuido
suspira e chora e resigna. Grita!

Não mais a Lira, não mais a poesia.
Grita, Orfeu, findou a fantasia!






Gustavo Felicíssimo, 1971, é natural de Marília, interior de São Paulo, radicando-se na Bahia a partir de 1993. Vive desde janeiro de 2007 entre Itabuna e Ilhéus.
Poeta e ensaísta, tem extensa participação na imprensa baiana e sites brasileiros especializados em literatura. Publicou “Diálogos – Panorama da nova poesia grapiúna, 2009, Editus/Via Litterarum.
Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Atua como preparador de textos para editoras e poetas, tendo colaborado para a publicação dos livros: “Firmino Rocha: poemas escolhidos e inéditos”, Via Litterarum, 2008; “Plínio de Almeida, obra reunida”, Editus, 2009, e “Rascunhos do absurdo”, de Jorge Elias Neto, no prelo.

Edita o blog Sopa de Poesia, onde publica poemas e ensaios, cujo endereço virtual é: www.sopadepoesia.blogspot.com

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Em tons de verde: os versos do poeta

Recebí esta resenha de meu livro "Verdes versos" da professora Shirlene Rohr de Souza•. Deixo aquí registrado para compartilhar com meus amigos.
Shirlene me informou que acaba de finalizar um ensaio sobre "Verdes versos" que será publicado em uma coletânea. Segue abaixo o texto.

Em tons de verde: os versos do poeta


Shirlene Rohr de Souza•



O homem vive eternos dilemas que oscilam entre suas vontades e necessidades particulares e as questões sociais que urgem à sua volta e exigem respostas rápidas, convincentes e politicamente corretas. No limiar de suas angústias, muita coisa pode soar estranha aos desejos mais íntimos da alma humana. Estas contradições que habitam o espírito do homem encontram expressão nos versos dos poetas que ora erguem o olhar para as questões mundanas e mais gerais, ora se inclinam para suas lembranças e desejos.
Em tempos cinzentos, em que a questão ambiental tornou-se premente, enquanto as celebridades discutem o destino do Planeta, fecham acordos (improváveis) unilaterais e estabelecem metas que visam limitar as agressões à natureza, as vozes inquietas dos poetas se lançam, mesmo sem convite, neste grande debate que inclui o destino do homem. O debate na esfera da poesia é menos prático, certamente, mas não menos intenso, não menos pulsante.
Em 1939, Paul Valéry, afirmava em uma conferência que “se encontrarmos profundidade em um poeta, essa profundidade parece ter uma natureza completamente diferente da de um filósofo ou de um sábio” . A crer no poeta e ensaísta, as questões que insistem nas temáticas dos poetas são paradoxais, é certo, mas também, e estranhamente, são uma só. Elas vertem de uma forma de pensar que não precisa levar em consideração as teses científicas e nem a lógica do pensamento filosófico. A poesia se manifesta pelas palavras dispostas em ordens singulares que atravessam o espírito do leitor, exigindo reflexão, não compreensão; os versos são a porta de entrada para um ambiente secreto, difuso, um lugar cujo conteúdo constitui-se de formas estranhas e inexatas do pensamento, isto que é tão humano.


O ver do verso, em verdes tons

Verdes Versos, de Jorge Elias, é uma obra que surge em um contexto complexo e conturbado, tempo em que o verde ─ “nada menos humano, menos carnal que o verde” ─ é o tom mais aclamado, pois de seu destino depende o futuro da vida. A obra reflete a realidade confusa e repleta dos paradoxos humanos: preocupações, lembranças, cotidiano, humor, amarguras, intimidades, comunhão, vida e morte.
Para dizer dos poemas que compõem os Verdes Versos, é preciso fazer uma leitura mais atenta da obra, em busca das cores, dos sons, dos gestos, dos lugares, das personas que transitam e interagem nas páginas do livro. O próprio título já remete o leitor para uma série de possibilidades de interpretação que ora pesam sobre a palavra “verdes”, ora pesam sobre a palavra “versos”. As múltiplas possibilidades de leitura já demonstram que o terreno em que se pisa é o terreno movediço da polissemia, tão cara ao discurso literário.
O livro ─ organizado em secções intituladas Versos Verdes (2000-2004), Viajante Lunar (2005), Vegetariano (2006) e Querença (2007) ─ traz gradações de tons esverdeados, em nuanças que atestam um amadurecer das palavras, da profusão à concisão, da sintaxe articulada ao jogo substancial de certas palavras, de certos versos. A tensão entre viver e morrer, lembrar e esquecer, razão e paixão, olhar e participar é uma marca muito singular no discurso do poeta. É preciso, pois, buscar nos poemas estas questões que percorrem o livro, desde onde o tom verde é mais fechado até o ponto em que começa a ganhar um matiz que se aproxima de um tom amarelado, momento em que o pensar o verso ganha mais em substância, palavra concentrada. Seguindo o critério do próprio poeta, pode-se fazer arriscados comentários sobre cada uma das partes que comportam os poemas.
Versos Verdes reúne catorze poemas, escritos no período compreendido entre 2000 e 2004. Entre temáticas que enfatizam reminiscências, passagem do tempo e morte, destaca-se a palavra ‘existência’, que atravessa os versos e impõe-se como uma nota melancólica, centrada, consciente do ‘fim absoluto’. Dos poemas reunidos nesta fase, “Olhares” sugere a atividade de alguém que lida com o limiar entre a vida e a morte: “tive de narrar, tantas vezes / a morte e a insolitude humana”. Em “Bípede” há a constatação do poeta de que os elementos minerais e animais se equacionam como matérias mundanas. “Guananira” é uma doce homenagem ao refúgio do poeta no Planeta, em que o verde corre risco de se acinzentar.
Os poemas de 2005 estão reunidos em Viajante Lunar. Nesta parte, destacam-se as recordações, o passado, a memória. Mais uma vez, a morte se insinua na linguagem do poeta. Os versos se encadeiam em ritmo compassado, brando, mas pujante, e misturam-se com as noites, com os silêncios, com o passado. “Kioto” é a inquietação clara com o destino do Planeta; revela a preocupação do poeta com a teimosia dos homens. Contudo, é preciso pôr em evidência o poema “Verdade”, cujos versos vibram, vigorosos: “Destilo nos meus poemas meu veneno / Envelheço, e o que há de bruto/ é o que reconheço de bom”.
O mais carnal dos poemas, “Tela”, encontra-se em Vegetariano, que reúne os poemas de 2006. Os versos trazem temáticas muito diversas, das quais, ainda outra vez, o tempo, o fim absoluto, o verde-cinzento do mundo se revelam com força nnas palavras do poeta. Mas há uma curiosa reincidência na temática dos nomes, “Seu Jorge” e “Nomear poemas” ─ “o nome antecede o verso” ─, poemas nos quais a volta ao passado significa a volta do poeta para dentro do túnel de seus gens.
Em Querença, que reúne o maior número de poemas, escritos em 2007, há temas em volúpia, vida e morte: mendigo, velhice, epitáfios, cenas do cotidiano, chuva, funeral do amigo suicida. Nestes prados, há o “Ofertório” ─ “certas bocas / não vestem bem as palavras” ─, ou ainda um novo olhar para a imortalidade: “a minha imortalidade / se encerrará com a minha morte”. Mas entre verdes psicografados, reflexões sobre a velhice e a razão que se esvai nos anos, há “Decreto” um manifesto em nome do ócio, bem-viver, um convite à fruição do que é cotidiano e banal.
Verdes Versos é a obra inaugural de Jorge Elias Neto, poeta que, agora, deixa suas palavras e suas questões para leitor. Como diz o próprio poeta em “Olhares”, “não me fiz para ser entendido, / pois minha substância transformou-se em letras”. Do poeta, então, o que se espera? Ele se adianta e adverte: “Para quem muito espera do poeta-homem, / vale o conselho: / atenha-se apenas aos seus versos”. É verde para ler.


• Professora da Universidade do Estado de Mato Grosso.
VALÉRY, Paul. Poesia e pensamento abstrato. In: ______. Variedades. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. São Paulo: Iluminuras, 1991, p.201.
Poema Verdes Versos II, p.58.

domingo, 10 de janeiro de 2010

O intruso


Para que compartilhar a loucura? Tem-se que guardar em segredo a penúria dos instintos que nos avassalam a alma. A loucura transborda, atordoa, é inventiva demais.
Diriam que ela é suportável nas crianças e em alguns endemoniados perdidos nos acostamentos das autoestradas – sempre carregando nas costas suas sacolas cheias de coisas-nenhumas. Elas não aprenderam ainda a ser gente; eles desaprenderam a ser humanos ...
Mas, na manhã em que tive o espírito desperto, assim, obsequioso, fui entrando nas casas. E todos desviaram de mim o olhar.
Hoje, não mais embriagado pelas convicções que me moviam, pude ouvir dos poucos que me fitaram por um breve instante o seguinte relato:
Surgi lento diante dos portais das casas, quando os primeiros raios oblíquos da manhã não ousavam passar do peitoril das janelas. Essa ausência de luz no interior de suas moradias fez maior o impacto daquele que se anunciava.
Raios de sol escorriam-me pela face onde já adormecera o orvalho que trazia da madrugada fria. De súbito, toda a luz esfacelou-se em mil arco-íris.
Um olhar sem fio terra fez calar os poucos que ensaiaram dizer de sua objeção à minha presença, assim tão cedo e sem convite.
E, por ter deixado de acreditar na cautela do silêncio, fui derramando a língua sobre os móveis da sala onde todos os moradores, perplexos, se mantinham sentados. As palavras me enchiam a boca, e, se as tentasse calar, seria possível ver as protuberâncias que a fala contida criava ao serpentear em meu rosto. E, quando conseguiam vencer meu esforço – pois já começava a observar o quão inoportuno eu era àquela gente – , sentia-se o arrebatamento do grito arremessado.
Poderia continuar discorrendo sobre a imagem fantástica que aqueles indivíduos guardaram daquele dia, mas prefiro dizer que aquele não era eu.
Não nego aqui as intenções (inocentes intenções) que me impulsionaram porta adentro. Não, elas sempre foram autênticas. Refiro-me ao personagem descrito. Esse, sim, não era eu.
De tudo que falaram, talvez o que mais se aproximasse do real fosse meu rosto molhado com o suor que passou a escorrer profusamente, quando me ocorreu dividir com os homens minha parcela do descobrimento do mundo humano.
Custou-me entender que não se deve revirar as prateleiras domésticas, desmantelar os espaços, desarranjar a ordem estabelecida para a vida.
Mas também, que besteira!... Não se compartilha o fundilho rasgado para morder o rabo.
Nos últimos tempos, tenho ficado por aqui, zanzando onde posso ser ignorado. Como me restringiram o espaço para o olhar, mantenho meus olhos apontados para o chão.
Mas sou feliz, aprendi que para conquistar a liberdade, bastou chamar-me: “Ninguém”.

Jorge Elias Neto

domingo, 3 de janeiro de 2010

1° de janeiro


Após o pão e circo,
sigo em busca da ciência de desinventar.

No vazio do salão amanhecido
ainda ressoam os ecos dos champanhes,
os alaridos esperançosos,
os sussurros de cumplicidade.

De sólido,
ficaram os confetes e serpentinas,
que nada entendem da solidão.

(Rascunhos do absurdo)