quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Gustavo Felicíssimo


CANTO DE ORFEU

Teu corpo delgado
possui formas feitas
para as minhas mãos.
E por ser assim
o vento traz de longe o teu cheiro,
nas nuvens o teu rosto esculpido.
É sempre assim,
desde que não estamos juntos
meus sentidos saltam
pelas janelas,
antecipam-se à minha chegada.
É sempre assim
e isso não há de mudar,
pois entre um verso e outro,
afazeres e bancos de praça,
brilha no meu horizonte
a estrela da tua imagem.
Há esse brilho
e um campo de orquídeas
que te exaltam
e te observam quando passas,
porque passas tão linda,
tão bela quanto a lua.
Ai, minha amada,
olha bem nos olhos meus,
olha e verás rastros
e riscos de fogo.
Contra a fúria das águas me lancei,
ao inferno mil vezes voltei
sem luz, sem remo ou âncora
por ouvir a voz da fantasia
e a lira que se encantou por tua face.
Toma meu braço
e a majestade do verso,
eis tudo que te ofereço;
restituiremos à serpente o seu veneno
e a magia da poesia aos que não amam.



CANTO DE EURÍDICE

Senta e escuta o orvalho no vale
e o verde do campo
enquanto contemplo a tua carne vertiginosa
e te falo sobre a vida
onde apenas os mortos sobrevivem.
Os sonhos, meu amado,
me faziam companhia durante o crepúsculo
e neles te encontrava,
o teu canto escutava,
mas te alcançar já não podia.
Pedi aos deuses que viesses em hora mágica,
quando a luz se avizinhasse
e me prendesse nos teus abraços,
que me lembrasse dos teus passos
e o sabor dulcíssimo do beijo.
Ofereci-me em sacrifício,
despi-me das fontes, das nascentes
e passei a mendigar pelos caminhos;
coroada de espinhos
vi a existência caindo sobre os pântanos.
Atirei-me ao fogo
e além do fogo nada mais conheci;
resisti à dor e a tudo que há de vil,
desejei adormecer
e adormecer também não pude.
Aceitei os desígnios divinos
e feito um pégaso preso ao arado,
entre as cinzas ardendo,
luzi meu próprio sofrimento;
recolhi-me ao tormento, insignificante.
Silenciei-me na insana luta
e frágil feito a flor do jasmineiro,
sôfrega, esperei por tua chegada
como se espera um deus
junto à tarde imaculada das madressilvas.


EPIFANIA NO INFERNO
Sentença, marcha e aflição de Orfeu

(A palavra de Hades)

Comoveu-me o seu gesto,
fragilíssimo Orfeu.

O amor, enfim, pelo amor
enfrentou a fúria dos demônios.

Atravessou o Lete
e chegou à morada dos mortos.

Por isso nenhum sacrifício peço,
apenas que se vá sem vacilar.

Seus olhos os olhos da amada
não deverão encontrar.

O caminho é longo
e a voz em silêncio permanecerá.


(A saída do Tártaro)

Orfeu empunha a Lira,
não possui arma, espada ou escudo.

O coração vacila, oprime o peito,
empreende ao fim a inevitável marcha.

Eurídice o segue em fluentes passos,
não hesita.

Olhos em aflição, pálpebras em brasa,
os amantes rasgam a escuridão.

Demônios instigam de parte a parte
e a inquietação se torna mais intensa.

Fatigados seguem pela estreita via
que aos corações consola ou pune.


(Consciência de Orfeu)

Ah, quanto desgosto Orfeu,
quanta culpa carrega!

Entregue agora à vida sem pejo,
demonstra afeição pelo Calais!

Agora grita exaltado, Orfeu,
pois é tua toda a culpa, toda expiação!

Bem vindo ao templo dos homens,
o templo da carne, do sangue, da agonia!

Pois quem perde a quem ama por descuido
suspira e chora e resigna. Grita!

Não mais a Lira, não mais a poesia.
Grita, Orfeu, findou a fantasia!






Gustavo Felicíssimo, 1971, é natural de Marília, interior de São Paulo, radicando-se na Bahia a partir de 1993. Vive desde janeiro de 2007 entre Itabuna e Ilhéus.
Poeta e ensaísta, tem extensa participação na imprensa baiana e sites brasileiros especializados em literatura. Publicou “Diálogos – Panorama da nova poesia grapiúna, 2009, Editus/Via Litterarum.
Fundou, juntamente com outros escritores, o tablóide literário SOPA, em Salvador, do qual foi seu editor. Atua como preparador de textos para editoras e poetas, tendo colaborado para a publicação dos livros: “Firmino Rocha: poemas escolhidos e inéditos”, Via Litterarum, 2008; “Plínio de Almeida, obra reunida”, Editus, 2009, e “Rascunhos do absurdo”, de Jorge Elias Neto, no prelo.

Edita o blog Sopa de Poesia, onde publica poemas e ensaios, cujo endereço virtual é: www.sopadepoesia.blogspot.com

Um comentário:

Bernardo LInhares disse...

poeta formidável, de amplo domínio da estética e linguagem. muito bom mesmo. apostamos muito no Gustavo aqui na Bahia.