sexta-feira, 29 de maio de 2009

POLITEÍSMO



Costumam rir dos meus Deuses


Antes que o Céu
se encumbisse do sumiço das estrelas,
o menino desenhou um Sol para cada País.

domingo, 24 de maio de 2009

ITALO CALVINO - parte II


Seis propostas para o milênio



Por Bruno Tolentino

As prefigurações de Italo Calvino para a arte que virá podem ser chaves de uma nova humanidade

Em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio – mais exatamente, nas cinco que conseguiu redigir antes de sua morte súbita -, Italo Calvino faz melhor que profetizar: assume e, assim fazendo, define magistralmente o que seja o componente profético de toda grande arte. Recorde-se que os vocábulos vate e vaticínio têm a mesma raiz; observe-se que, conto, romance ou ensaio, o grande prosador italiano manejava as artes da linguagem com absoluta mestria; e constate-se que, nesses textos, zênites de toda uma vida dedicada à reflexão, Calvino é mais que nunca o autor das Cidades Invisíveis. Vale dizer: o que sua argúcia de ensaísta e erudito nos permite entrever de um futuro hipotético, ele o vai tecendo com os fios eminentemente artesanais de um artífice embebido de um passado tão instrutivo quanto promissor.
Aqui é o artista que nos conduz de espanto em maravilhamento, de Ovídio a Lucrécio, das sagas nórdicas ao folclore centro-europeu e, pelas vias mais inesperadas, de Dante e Cavalcanti a Petrarca e Leopardi, e deles até Montale, Wallace Stevens, Emily Dickinson, Jorge Luis Borges... A impressão é a de que nada se perde de uma Via-Láctea tornada a moldura de uma Via Dolorosa em que se movem, como na roca de um tear inefável e incessante, todos os possíveis do espírito humano. Desse movimento de espiral contínua, ascendente, descendente, recorrente, mas sempre fiel a seu roteiro como um pêndulo a seu ritmo, Calvino interroga não as Parcas, mas o destino exemplar da humanidade tal como até hoje o determinou tudo o que a criatura fez de melhor. Isto posto, aponta a destinação, senão provável com toda certeza perfeitamente possível, desse moto-contínuo, desse périplo cuja coerência e unidade seu admirável gênio analítico torna vívido, perceptível e onipresente.
O espírito enquanto experiência acumulada que seu esboço de painel temporal projeta sobre o devir é, de fato, tão nítido e palpável que, em momento algum, ameaça caber no estreito funil das especulações lucubratórias. Longe disso: sua leitura do exercício da inteligência como fio condutor da condição humana toma o ato de criação artística como a tarefa por excelência da espécie; e, aspirando a bem mais que um mero roteiro das peripécias do intelecto, seu painel da aventura cognitiva tece ante o leitor arguto uma teia de significações de tal modo emocionante, que a única reação possível é o júbilo.
Se tanto se fez, e tão bem, que é possível torná-lo evidente e revê-lo à mais casual ou à mais assistemática das leituras, então é certo e seguro que nada se perde ou pode vir a se perder do ímpeto inquiridor e criativo do ser humano, esse enigma em busca de mais e mais veracidade, consciência e claridade. Isso posto, torna-se um prazer conjeturar como uma tão esplêndida bagagem expedida rumo ao futuro vai atravessar-lhe e clarear-lhe as brumas, cumprir sua viagem e, uma vez lá chegando, dar testemunho do que fomos e havemos de ser.
Dos cinco itens assim inventariados e expedidos à alfândega do amanhã – Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade; a sexta proposta, Consistência, não chegou a ser desenvolvida -, três parecem-me ter assegurados bom trajeto e bom porto. E digo já por que distingo e separo dos outros dois os quesitos de Leveza, Exatidão e Visibilidade, por que razões deixo às Parcas o destino, para mim incerto, da Rapidez e da Multiplicidade, tais como Calvino as lê e propõe.
É que, como as vejo eu, estas últimas são passíveis de confusão; a primeira, essa “rapidez” que ele entende como economia de meios em favor da comunicabilidade do essencial, pode, cá entre nós, facilmente ser tomada por uma receita de atalhos mais ou menos acrobáticos, dado o espírito apressado de uma era que se anuncia enamorada das vertigens súbitas. Não é o que lhes envia, mas temo que possa vir a ser o que efetivamente queiram receber os “amanhãs que cantam” nos Brasis vindouros... Em que pese a nitidez de sua exposição, a virtude da rapidez necessitaria ainda mais talento e mais cuidado na “chegada” do que no ato de embalá-la e enviá-la a um futuro que temo por demais ávido de mediatismo, de “resultados imediatos”. Bem pode ser que a alguns cá do Terceiro Mundo em seu terceiro milênio não fique assim tão absolutamente claro que Calvino não era calvinista...
O mesmo, ou quase, vale por sua apologia da Multiplicidade. Aqui, a bem dizer, o risco de desvio de carga parece menor, pois que Calvino advoga a idéia de romance como uma espécie de mosaico móvel, em lugar da flaubertiana forma precisa (e fechada) de captar e narrar um determinado aspecto, ou instante, do real. Seu modelo da multiplicidade de planos e perspectivas é sobretudo a Recherche de Proust, e até aí vou eu.
Mas começo a hesitar onde sua reflexão passa de uma justíssima avaliação do projeto (necessariamente) inconcluso de Robert Musil, ao elogio do especimen (inevitavelmente) confuso de Carlo Emilio Gadda. Entendo-o, simpatizo mesmo com essa ambição, esse voto de confiança para com o “seu” ofício, mas não me disponho a endossar suas recomendações, e isso em nome de um certo irredutível espírito meu de desconfiada resistência às amplidões “abertas” em matéria de arte.
Nem todos os sertões são tão grandes que acolham veredas seguras, as mais das vezes o diabo da anarquia dança sozinho nos mais arbitrários redemoinhos à beira da estrada... Ou seja: a menos que se proponham os contos de Borges e as parábolas de Kafka como paradigmas de uma “nova ficção”, e até que lá se chegue sem bookprizes, fico com A Montanha Mágica, com Leviathan, com Mrs. Dalloway, com Nostromo, no temor do que possam vir a ser nossos futuros “homens sem qualidades”...
No mais, Calvino ganha de barbada a aposta com o desconhecido. Partindo do que se fez de mais notável no Ocidente, sua lucidez mapeia os vinte e tantos séculos do ilustre passado-presente, e sua paixão conduz o leitor rumo a um amanhã que contenha toda a fertilidade de um acervo excepcional que, além de incomum, ele demonstra ser mais do que suficiente. Quaisquer que possam ser os novos parâmetros, não será possível honestamente ignorar o que Calvino mostra-nos ter sido e seguir sendo o grande, o incontornável inventário do arquiprovado gênio ocidental.
Sob a rubrica Visibilidade, sua ensaística dá-nos talvez a mais sensível e sucinta explicação demonstrativa do que seja – no caso, em Dante – a “alta fantasia”, essa faculdade eminentemente superior do intelecto, a que antes de tudo o define e sem a qual não há como haver plena representação do mundo nem das coisas que o animam e ultrapassam. É a arte da poesia tornada clara equação e jubiloso entendimento. Haveria mais, bem mais a dizer desse quarto capítulo, mas temo que deixar-me alongar nele seria tentar dar a muitos o que é inevitavelmente o alimento de poucos. É ao poeta, e ao poeta especialmente lúcido, que Calvino se dirige nessa incomparável lição de modelagem, de plasticidade, de forma – a forma e sua música sem par e sem paráfrase. Seu louvor da paranomásia, por exemplo, na Enguia de Montale, por si só mereceria um estudo todo seu. Mas, se passo assim batido por onde a mim mais me importaria deter-me, é que urge, em benefício de todos, aqui e agora, refletir na análise propositiva que seu minucioso intelecto coloca sob as égides complementares da Leveza e da Exatidão.
O que ali vai dito vale especialmente para uma cultura em risco de mutação regressiva, como há meio século vem sendo a nossa, esse nosso Brasil em crise de adolescência tardia, o mesmo que Manuel Bandeira, em 1957, já dizia ser “da América infeliz a porção mais doente”. Àquele país, então apenas esboçado, hoje maduro o bastante para extrair seu enxame de vermes da própria polpa apodrecida, vai endereçada a mensagem central da Leveza segundo Calvino, qual seja: “O mito da modernidade é o exato oposto da eternidade do mito. (...) Se eu tivesse que escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, seria o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que se eleva acima do peso do mundo, demonstrando que detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados”.
E, para encerrar sem meias medidas, last but not least, aqui vai o mais grave: numa língua cada dia mais invertebrada, preguiçosa, distorcida, contaminada de populismos que, mais ou menos ideologicamente herdados dos ingênuos desvarios “independentistas” de 22, se iriam espertamente institucionalizar em benefício de uma claque de viúvas alegres, tão ciosas quão ambiciosas, nesse quadro acabrunhante e perigoso, a lição, a noção calviniana de Exatidão soa e ressoa com um inadiável sentido de urgência. Por exemplo, na incisividade de passagens como a que segue: “Por que a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? A linguagem usada de modo aproximativo, casual, descuidado, me causa intolerável repúdio”. Que não lhe haveria de causar a leitura do cá canonizado Macunaíma, por exemplo? Ou, praticamente ao mesmo nível, a leitura de certos jornais, lamentáveis folhas que acabaram devendo tanto àquela “mariologia” libertária que a USP se encarregou de vender a todo um país que jamais a necessitou, sonhou ou quis... Porque a mentira de cátedra continua a reinar e a irradiar seu terrorismo “novologista”, a leitura das propostas de Calvino talvez ensine o caminho da Arca aos raros que não queiram virar rinoceronte pós-moderno, capivara petista, anta versejante, chimpanzé roqueiro, ou o que mais prometa a fervilhante fauna.
Para esses, vestibulandos em risco de se verem envelhecer como animais no “atual” presépio conceitual beletrista, Calvino pode ser um Noé.

Bruno Tolentino

Grande poeta brasileiro

(12.11.1940 - 27.06.2007)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poema à morte da ingazeira


Morre de pé o verde,
até que a inexorável gravidade
trace seu rumo definitivo:
partir para o esquecimento.


(Verdes versos - 2007)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

ITALO CALVINO - parte I


Italo Calvino: Descobridor do fantástico no real

Por Pedro Maciel

Autor de histórias originais reflete sobre as coisas que acontecem no tempo múltiplo, templo plural, tempo de uma ação que acontece no presente, mas que se bifurca entre o passado e o futuro




“Não é verdade que já não me lembro de nada, as lembranças ainda estão lá, escondidas no novelo cinzento do cérebro, no úmido leito de areia que se deposita no fundo da torrente dos pensamentos...” Os pensamentos de Italo Calvino, mergulhados na vivência e saber, nos assombram e demarcam caminhos que iluminam a sabedoria. Calvino traçou muitos caminhos pela vida afora. Um deles é “O Caminho de San Giovanni” (Ed. Cia. das Letras), composto por narrativas escritas entre 1962 e 1977. Calvino narra histórias originais através de fragmentos, lampejos que transitam entre a memória e a reflexão.
“O Caminho de San Giovanni”, que abre o livro, evoca a adolescência passada em San Remo, as divergências entre pai e filho, a natureza bucólica e a paixão pela cidade. “Autobiografia de um espectador” é o escritor descobrindo o cinema, sua adoração pelo imaginário de Hollywood. Calvino ainda revela a confluência do seu mundo com o mundo do circo de Fellini, mundo desenhado a partir do humor poético, crepuscular e angélico.
“Lembranças de uma batalha” narra os tempos de guerrilheiro antifascista na Ligúria. Calvino volta-se no tempo, “perscrutando o fundo do vale da memória”, para recuperar os sons, imagens e palavras que o infernizaram na época da Segunda Guerra. Em “La poubelle agrée” descobrimos o humor de Calvino a partir dos gestos banais, como pôr o lixo fora de casa. Para encerrar, “Do opaco”, um texto poético que tenta desvendar “o lugar geométrico do eu” no mundo, “o eu que só serve para que o mundo receba continuamente notícias da existência do mundo, um engenho de que o mundo dispõe para saber se existe”.
Os exercícios de memória de Calvino não apresentam a verve do ficcionista, do fabulista que se encontra em “Palomar” ou nas “Cidades Invisíveis”, quando o autor dedica-se a renovar a arte literária. Em “O castelo dos destinos cruzados” ou em “Se um viajante numa noite de inverno”, o ficcionista reflete sobre o ato de escrever num mundo já conquistado, “colonizado por palavras”.
Italo Calvino é discípulo espiritual de Jorge Luis Borges. Calvino, ao decifrar Borges, decifra-se como uma esfinge: “Em cada texto, por todos os meios, Borges fala do infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou da dimensão cíclica dos tempos”. Calvino também reflete sobre as coisas que acontecem no tempo múltiplo, templo plural, tempo de uma ação que acontece no presente, mas que se bifurca entre o passado e o futuro.
As narrativas do autor de “Os amores difíceis” são reinvenções de um aventureiro da literatura. Calvino é autor de idéias, cerebral e livresco. Reinventor de lendas medievais. Toda a sua literatura é uma reescritura (paródia). Adepto da ficção absurdamente elaborada. De estilo imprevisível, alterna humor, erudição, deslumbramento e ironia. É um descobridor do fantástico no real. A ficção de Calvino mapeia a história de humor e amor. Nada que não esteja fora dos interstícios da realidade. Apesar de que toda literatura aspira ao fictício.
Poderíamos dizer, mesmo pensando em Borges, que Calvino é o inventor das narrativas cíclicas, das histórias do espírito. A literatura se resume a algumas histórias recontadas por um mesmo espírito e essas histórias, ao serem relidas, desvendam-se em outras leituras ou em novas histórias.



***


Trecho de “O caminho de San Giovanni”, de Italo Calvino

E assim, mesmo agora, se me perguntam que forma tem o mundo, se perguntam a mim mesmo que mora no interior de mim e guarda a primeira impressão das coisas, tenho de responder que o mundo está disposto sobre uma porção de sacadas que irregularmente se debruçam sobre uma única grande sacada que se abre no vazio do ar, no parapeito que é a breve tira do mar contra o imenso céu, e naquele peitoril ainda se debruça o verdadeiro de mim mesmo no interior de mim, no interior do suposto morador de formas do mundo mais complexas ou mais simples, mas derivadas, todas elas, dessa forma, bem mais complexas e ao mesmo tempo muito mais simples, na medida em que todas estão contidas naqueles desaprumos e declives iniciais ou deles podem ser deduzidas, daquele mundo de linhas quebradas e oblíquas entre as quais o horizonte é a única reta contínua.



***


Trecho final de “As cidades Invisíveis”, de Italo Calvino

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.



***


Trecho de “Seis propostas para o próximo milênio”, de Italo Calvino

A última grande invenção de um gênero literário a que assistimos foi levada a efeito por um mestre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos quarenta anos, passar da prosa ensaística à prosa narrativa. A idéia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido escrito por um outro, um hipotético autor desconhecido, que escrevia em outra língua e pertencia à outra cultura _ e assim comentar, resumir, resenhar esse livro hipotético. Faz parte do folclore borgiano a história de que seu primeiro e extraordinário conto escrito com essa fórmula, “El acercamiento a Almotásim”, quando apareceu em 1940 na Revista Sur foi realmente tomado como a recensão de um livro de autor indiano. Assim como faz parte dos lugares obrigatórios da fortuna crítica de Borges a observação de que todo texto seu redobra ou multiplica o próprio espaço por meio de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real ou de leituras clássicas ou eruditas ou simplesmente inventadas. O que mais interessa ressaltar é maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, em seus adjetivos sempre inesperados e surpreendentes. Nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar a terminologia que Será mais tarde aplicada na França, mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa que poderia ter sido a obra de um hipotético autor chamado Herbert Quain.


Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, a 15 de julho de 2000 e recentemente publicado no CRONÓPIOS.


Pedro Maciel é autor do romance A Hora dos Náufragos, Ed. Bertrand Brasil.
E-mail: pedro_maciel@uol.com.br

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Mãe


Pubis Matris

Concepção

Há algum tempo,
tu me excitaste o ventre,
me beijaste os seios,
mergulhaste em meus cheiros
com tua sanha de homem faminto.
Roçaste teu rosto e teus lábios
ensandecidos, em meu púbis

Deixei tatuadas em tua pele
as frases desconexas dos meus gritos.

E eu te recebi sobre mim
para te dar a essência de meu gozo.
E tu deixaste dentro de mim a casual
essência de nosso futuro.

A meio caminho,
no escuro de minha intimidade,
partes de nós fundiram-se.

Gestação

Há pouco tempo,
chegaste mais tranqüilo
e buscaste como um filho,
o calor de minhas coxas.
Tua mão, agora, sem desejo,
cruzou por meu púbis, só de passagem,
e quedou-se, mansamente, sobre meu ventre.

O parto

Há minuto,
éramos eu e ela que discutíamos o instante.
Eu a convidava, alternando gritos e sussuros,
Sua resposta me chegava como ondas de um frenesi crescente.
Nos momentos de silêncio,
que, pouco a pouco, me pareciam eternos,
eu quedava exausta entre teus braços.

Enquanto isso,
tu oscilavas entre altismo
e perplexidade.
Mas, enfim, tu te mostravas com a lucidez de meu amante.

Existia, sim, uma outra mão, um outro olhar,
a observar este nosso momento.
mas ele soube do sentido de tua presença
e manteve-se a uma distância segura
para dar cabo do meu desespero.

No momento presente,
- Ah, momento eterno!!!
Sopro o suor que me chega da testa
dispo-me das máscaras venezianas
sou fêmea parideira.
-Venha, minha filha sentir a luz !
Sinta já que a verdade é dura,
que se luta pela vida,
sinta o nosso amor.

Ela me pressiona o púbis
como que a abrir uma porta
que há pouco, jamais se abrira.
Olho dentro de mim,
vejo aqueles pequenos olhos
que só entendem da simplicidade da escuridão;
eles estão fechados, voltados para as suas poucas certezas.
Mas o instinto rompe a tênue membrana
e derrama, através de mim, o seu mar de segurança.
Seu corpo se expande como que por milagre, e ocupa
espaços que até há pouco eram só meus...
Pela primeira vez me vejo a empurrá-la para o futuro.
Entendo, então, o sagrado.
Mas esse momento fugaz de consciência
esvai-se com a dor.
Eis-me a sentir a dor do parto,
dor sem volta.
Não seria esse o preço da consciência da dor?
por que esta autocomiseração humana?
falta-me a resignação animal.
Mas esta dor não dá tréguas para reflexões filosóficas.
Concluo que, felizmente, sou um animal com acesso à ciência.
Essa dor chega a ser “ desumana¨.
Vamos, filha, que eu te ajudo.
Parteiro, por favor me ajude!!!

O corpo daquela mão
se aproxima e ela manobra
o ser contorcido em que me transformei.
Relembra-me os fins
com sua voz
pontuada de serenidade.

Agora já não falo,
já não penso,
somente a dor
com algo mais... que se dissolve no ar,
que me esvazia a memória
ao mesmo tempo que vejo
ser esvaziado meu corpo.
Talvez um registro iconográfico possa dizer por mim...

E ela surge tímida,
como uma atriz que olha a vida
por detrás de cortinas semi-abertas.
Teme a estréia.
Mas parte para decifrar a luz...

(Neste momento, o poeta se despe do manto lírico e se cala. Já não pode mais se aventurar
com palavras onde o mistério da vida só se faz claro para uma mulher)


(Verdes Versos )

domingo, 3 de maio de 2009

Consciência


Ser a perdição –
lisa – despudorada.

Ter a utilidade da farpa
da aroeira – curar o esquecimento.

O retorcido cipó da ansiedade –
com tua cabeça hasteada a meio-pau.