sexta-feira, 15 de maio de 2009

ITALO CALVINO - parte I


Italo Calvino: Descobridor do fantástico no real

Por Pedro Maciel

Autor de histórias originais reflete sobre as coisas que acontecem no tempo múltiplo, templo plural, tempo de uma ação que acontece no presente, mas que se bifurca entre o passado e o futuro




“Não é verdade que já não me lembro de nada, as lembranças ainda estão lá, escondidas no novelo cinzento do cérebro, no úmido leito de areia que se deposita no fundo da torrente dos pensamentos...” Os pensamentos de Italo Calvino, mergulhados na vivência e saber, nos assombram e demarcam caminhos que iluminam a sabedoria. Calvino traçou muitos caminhos pela vida afora. Um deles é “O Caminho de San Giovanni” (Ed. Cia. das Letras), composto por narrativas escritas entre 1962 e 1977. Calvino narra histórias originais através de fragmentos, lampejos que transitam entre a memória e a reflexão.
“O Caminho de San Giovanni”, que abre o livro, evoca a adolescência passada em San Remo, as divergências entre pai e filho, a natureza bucólica e a paixão pela cidade. “Autobiografia de um espectador” é o escritor descobrindo o cinema, sua adoração pelo imaginário de Hollywood. Calvino ainda revela a confluência do seu mundo com o mundo do circo de Fellini, mundo desenhado a partir do humor poético, crepuscular e angélico.
“Lembranças de uma batalha” narra os tempos de guerrilheiro antifascista na Ligúria. Calvino volta-se no tempo, “perscrutando o fundo do vale da memória”, para recuperar os sons, imagens e palavras que o infernizaram na época da Segunda Guerra. Em “La poubelle agrée” descobrimos o humor de Calvino a partir dos gestos banais, como pôr o lixo fora de casa. Para encerrar, “Do opaco”, um texto poético que tenta desvendar “o lugar geométrico do eu” no mundo, “o eu que só serve para que o mundo receba continuamente notícias da existência do mundo, um engenho de que o mundo dispõe para saber se existe”.
Os exercícios de memória de Calvino não apresentam a verve do ficcionista, do fabulista que se encontra em “Palomar” ou nas “Cidades Invisíveis”, quando o autor dedica-se a renovar a arte literária. Em “O castelo dos destinos cruzados” ou em “Se um viajante numa noite de inverno”, o ficcionista reflete sobre o ato de escrever num mundo já conquistado, “colonizado por palavras”.
Italo Calvino é discípulo espiritual de Jorge Luis Borges. Calvino, ao decifrar Borges, decifra-se como uma esfinge: “Em cada texto, por todos os meios, Borges fala do infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou da dimensão cíclica dos tempos”. Calvino também reflete sobre as coisas que acontecem no tempo múltiplo, templo plural, tempo de uma ação que acontece no presente, mas que se bifurca entre o passado e o futuro.
As narrativas do autor de “Os amores difíceis” são reinvenções de um aventureiro da literatura. Calvino é autor de idéias, cerebral e livresco. Reinventor de lendas medievais. Toda a sua literatura é uma reescritura (paródia). Adepto da ficção absurdamente elaborada. De estilo imprevisível, alterna humor, erudição, deslumbramento e ironia. É um descobridor do fantástico no real. A ficção de Calvino mapeia a história de humor e amor. Nada que não esteja fora dos interstícios da realidade. Apesar de que toda literatura aspira ao fictício.
Poderíamos dizer, mesmo pensando em Borges, que Calvino é o inventor das narrativas cíclicas, das histórias do espírito. A literatura se resume a algumas histórias recontadas por um mesmo espírito e essas histórias, ao serem relidas, desvendam-se em outras leituras ou em novas histórias.



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Trecho de “O caminho de San Giovanni”, de Italo Calvino

E assim, mesmo agora, se me perguntam que forma tem o mundo, se perguntam a mim mesmo que mora no interior de mim e guarda a primeira impressão das coisas, tenho de responder que o mundo está disposto sobre uma porção de sacadas que irregularmente se debruçam sobre uma única grande sacada que se abre no vazio do ar, no parapeito que é a breve tira do mar contra o imenso céu, e naquele peitoril ainda se debruça o verdadeiro de mim mesmo no interior de mim, no interior do suposto morador de formas do mundo mais complexas ou mais simples, mas derivadas, todas elas, dessa forma, bem mais complexas e ao mesmo tempo muito mais simples, na medida em que todas estão contidas naqueles desaprumos e declives iniciais ou deles podem ser deduzidas, daquele mundo de linhas quebradas e oblíquas entre as quais o horizonte é a única reta contínua.



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Trecho final de “As cidades Invisíveis”, de Italo Calvino

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.



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Trecho de “Seis propostas para o próximo milênio”, de Italo Calvino

A última grande invenção de um gênero literário a que assistimos foi levada a efeito por um mestre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos quarenta anos, passar da prosa ensaística à prosa narrativa. A idéia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido escrito por um outro, um hipotético autor desconhecido, que escrevia em outra língua e pertencia à outra cultura _ e assim comentar, resumir, resenhar esse livro hipotético. Faz parte do folclore borgiano a história de que seu primeiro e extraordinário conto escrito com essa fórmula, “El acercamiento a Almotásim”, quando apareceu em 1940 na Revista Sur foi realmente tomado como a recensão de um livro de autor indiano. Assim como faz parte dos lugares obrigatórios da fortuna crítica de Borges a observação de que todo texto seu redobra ou multiplica o próprio espaço por meio de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real ou de leituras clássicas ou eruditas ou simplesmente inventadas. O que mais interessa ressaltar é maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, em seus adjetivos sempre inesperados e surpreendentes. Nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar a terminologia que Será mais tarde aplicada na França, mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa que poderia ter sido a obra de um hipotético autor chamado Herbert Quain.


Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, a 15 de julho de 2000 e recentemente publicado no CRONÓPIOS.


Pedro Maciel é autor do romance A Hora dos Náufragos, Ed. Bertrand Brasil.
E-mail: pedro_maciel@uol.com.br

3 comentários:

Dauri Batisti disse...

De Italo Calvino o que de vez em quando retomo são as Seis propostas para o novo milênio: Leveza", "Rapidez", "Exatidão",etc.

Um forte abraço.

Paula Barros disse...

Oi, voltarei para ler com calma. Devolvi o livro de Calvino hoje para minha mãe. Preciso sempre está relendo.

abraços

Oliver Pickwick disse...

O Italo Calvino é dos grandes. Já li quase todos os seus livros. Os meus preferidos são As Cidades Invisíveis e o Cavaleiro Invisível.
Um abraço!