terça-feira, 22 de setembro de 2009

Sobre algumas verdades


Tenho algumas verdades litorâneas.
Dessas que não molham os pés,
mas se empanturram de areia
e saem se enterrando ao mínimo sinal
de proximidade do desconhecido.

Não sei quantas vezes li
que as flores persistem.

Assim também são essas verdades.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CRONICA


A leveza da queda



Aos poucos estão trocando o piso das calçadas de Vitória; novas normas para tornar mais seguro o dia a dia dos pedestres.
Podem achar estranho, mas não me atraem calçadas regulares.
Os buracos, as irregularidades e os desníveis me servem como camuflagem do relógio do tempo, como um sinal de que mantenho momentos de distanciamento, de contemplação, de ausência.
Sei que surpreendo muita gente, mas alguém tinha que tirar proveito do descaso dos gestores de nossa cidade...
Para quem não acredita, basta olhar a quantidade de marcas que tenho nas canelas, motivo de chacota dos amigos e do pessoal lá de casa. Não, não é nada disso, não tem nada a ver com masoquismo. A razão é mais nobre...
O tropeço súbito tem dupla finalidade, mantém a possibilidade do poema e me permite dissimular a chegada da morte.
Ainda não entenderam?
Como vou saber, andando por esse piso de ladrilho hidráulico simetricamente disposto pelas ruas, se estou atento demais às praticidades da vida? E outra coisa: depois de treinado, condicionado à mesmice, se, por acaso, por um descuido da fiscalização pública, eu deparar com um buraco e tropeçar e tombar sem me proteger, e me machucar, e tiver dificuldades para me reerguer, e sentir uma sensação de vazio, de falta de propósito na queda, nesse momento eu saberei que me tornei velho e pior, que terei deixado para trás, perdida em alguma queda, irrecuperável, a inspiração do último poema.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Eucanaã Ferraz


Mais doce


Confesso: não pude desamar de ti.
Tornei-me, então, tua mãe.

Afinal, não serias o meu homem,
eu sabia. Não vacilei, e dedico-me

à condição mais intestina,
mais doce – a de quem cozinha,

cose, espera, cala, tece,
aconselha, espera, vela

(mesmo que não, é como se fosse),
à condição de quem vê passar

o tempo no cabelo, nos gestos,
nas histórias, nos amigos, nos dentes

do seu pequeno príncipe, do seu dolorido,
do seu príncipe feliz.

Porque não me querias como homem,
porque não poderia ser teu pai,

retou-me não ser menos que este amor
que segue ao teu lado

mesmo quando é tão distante teu caminho,
teu silêncio, teu passo rápido, teu sonho.

Choro,
que o destino das mães é sempre triste.

Porque é triste não poder ser
a mulher do seu menino.


Via


Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,

eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho,cansado engano,

sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes

do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.

Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.

Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.

E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pelo. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.



EUCANAÃ FERRAZ. Rua do mundo. Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2004.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Rosa dos ventos


foto: Prego ou não Prego
Autor: benjamim vieira



O segredo do meu casamento
é um prego cravado fora da porta de casa.
Penduro ali
meus sentimentos provisórios.





(PENSEI EM CONTINUAR ESSE POEMA COM AS ESTROFES SEGUINTES, MAS ACABEI SUPRIMINDO-AS)

De resto,
não direi mais nada.

O que te aparenta inútil
prescinde de explicação.