quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

EPIFANIA ( breves palavras sobre o tempo)


Esse amanhã,
com cheiro de saudade,
roubou a cena de hoje.


segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O vai-e-vem da esperança


Ilustração "Morro de Vitória": Lorena Elias


A cidade cresce, se descaracteriza, fica cinza.
Os faróis dos carros só são belos nas fotos noturnas com longa exposição do diafragma – se disfarçam em fachos luminosos.
Os indivíduos não se apercebem, é massa disforme à espera do sinal verde que chega e parte sem que eles saiam do lugar.
Sou mais um, mas insisto em olhar em volta, pro lado, ser chamado de desatento, esbarrar nas calçadas. Não me arrependo.
E foi por ser assim que olhei para cima.
No morro, um mundaréu de casas, tão juntas como uma corda de caranguejos postos à venda nas calçadas – cinzas e sufocadas.
Fui olhando cada vez mais alto, e na iminência do azul, em uma imprevista descontinuidade entre as casas, eu vi balangando uma criança alada.
Ela estava lá, com seu balanço, alheia aos casuísmos, estatísticas, caos, fatalidades... Indo e vindo sobre as malfadadas casas.
Pêndulo de minha vida! Chuta pro alto, com seus pés meu desassosego!
Um beijo criança... Mil beijos! Estremece o Morro; seja o centro gravitacional de seu Universo; desmente nesse segundo as verdades do Absoluto!
Abriu o sinal...
Despeço-me da criança, pois tardar não posso (podia ser um pouco pior o trânsito em minha cidade).
Ao menos agora sei que naquele sinal existe a árvore com seu balanço. Sei que ali encontrarei, quem sabe outra vez, alguma criança a pincelar de verde um sinal de esperança para os que tentarem vislumbrar o céu.

* Para quem quiser ver o menino, é só parar no sinal de entrada da terceira ponte, na Avenida Desembargador Santos Neves, no sentido Praia do Canto – Centro, ao lado do posto da Shell. Bem no alto do morro está a arvore com seu balanço.


Para todos os amigos que desça, sobre todos, o olhar de nossas crianças.

Forte abraço nestes dias de festa,


Jorge

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

José Augusto Carvalho


PRESENTE DE NATAL

José Augusto Carvalho




Quando eu soube que Jesus nasceu em março, antes de Cristo, e que o dia 25 de dezembro foi fixado pela Igreja no ano 525 para cristianizar festas pagãs em homenagem ao deus Mitra, adorado em Roma, apesar de persa, senti que o Natal havia perdido para mim grande parte do que ainda tem de divino. Senti-me enganado não mais na minha fé, que já a havia perdido, mas na minha devoção a um líder carismático que tinha a pureza de um Gandhi ou de uma Madre Teresa de Calcutá e a santidade de um Dalai-Lama ou de um Francisco Cândido Xavier
O Natal teria virado uma farsa, não fosse o milagre das crianças que acreditam em Papai Noel. São elas que ainda dão ao Natal o espírito cristão que falta na maioria das religiões que cultuam Cristo.
Mudou o Natal e mudei eu – respondo à pergunta do soneto de Machado de Assis. Mudamos todos, mas seria bom que o Natal, mesmo com sua origem pagã, não mudasse nunca, que fosse sempre um Natal para a criança que temos dentro de nós. As crianças não estão interessadas apenas nos brinquedos de Papai Noel. As crianças vivem a magia do Natal que ainda tem, sequer para elas, aquela aura de religiosidade, de esperança e de fé.
Quando visitava o campo de concentração de Auschwitz, o Papa Bento XVI perguntou onde estava Deus, que permitira tudo aquilo. Embora tal pergunta não devesse ser formulada por um líder cristão, ela procede: onde estava Deus que permitiu sagrar-se Papa um inquisidor que calou a voz de um intelectual e sacerdote como Leonardo Boff?
Diz a Bíblia (Gen. 2: 2-3) que Deus fez o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Não sei se um Deus de verdade se cansa, mas, se a Bíblia diz a verdade, acho que é por ainda estar descansando que Deus não viu o holocausto, não viu eleger-se um Papa censor reacionário, não viu as guerras entre os homens, não viu o fim das torres gêmeas, não viu homens armados massacrarem jovens estudantes em escolas, não viu a invasão do Iraque pelo maior de todos os terroristas do mundo moderno, nem vê a violência crescente no nosso quotidiano...
Seria bom que o presente de Natal para todos os homens deste mundo fosse o fim do descanso de Deus...



Escritor, tradutor, jornalista e professor universitário, José Augusto Carvalho é mineiro de nascimento e capixaba por adoção.
Um dos principais lingüistas do Brasil.Bacharel e licenciado em Letras Neolatinas, também é mestre em Lingüística pela Unicamp e doutor em Letras pela USP. Atua principalmente como professor, mas traduz desde a década de 1970 textos do francês, inglês e italiano. Possui uma extensa obra publicada tendo também realizado traduções para as principais editoras do País.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade


A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Este poema fica aquí para todos os apreciadores de Drummond.
Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Memorial da língua


Esta língua que te invade
é do mundo.

Esta língua que te cobre;
cuspida e engolida por muitos.

Sou tua mãe incestuosa;
metade digerida do fruto.

A toxidez, o divino
que ouviste no útero.

Acompanho-te vida a fora;
tua maldita consciência.

Sou tua aura de incertezas,
causa de tuas mortes.

Sou indecente, protuberante;
o arrebatamento do grito arremessado.

Sou o princípio e o fim;
parte do gozo.

A primitiva interjeição,
o deslumbramento, a eternidade.

Trago-te o gosto dos séculos.
Sou tua memória.

Sou comprida, ágil, afiada.
Lembro-te todas as palavras vãs.

Sou o vício evanescente.
Afetada e mansa.

Acordo e vivo contigo.
E, quando partes, me disperso com a bruma de tua alma.


MINHA HOMENAGEM AO ESPIRITO DA LINGUAGEM

domingo, 29 de novembro de 2009

Sombras e brisa


Foto: parede de trapos



Desabou a parede de retratos. Nada mais restava de pé.
Há anos repassava as mesmas imagens com o olhar de máquina de escrever manual. Até que as teclas emperraram...
A letra A do nome dela que agarrou-se ao S de separação.
Não pôde mais sair, ficou diante da parede a indagar respostas.
O mundo desconstruindo-se ao seu redor e ele não medindo esforços para manter-se
erguido sobre os escombros, que o espremiam cada vez mais de encontro a parede.
Tão exíguo tornou-se o espaço que seus óculos se arranhavam na moldura de vidro.
Os pelos da barba crescida entravam pelo vidro estilhaçado e roçava as belas coxas por debaixo do vestido branco.
A ausência de espaço não poupara nem mesmo as sombras.
Mas agora, todo passado era escombro.
E uma brisa irritante feriu-lhe os olhos através da lente quebrada dos óculos.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Ao sal


Cumuruxatiba - Bahia
Foto: Jorge Elias



O último passo – o de ida.
E assim devia ser para todo o sempre.

As amarras permaneceram tensas,
como se desconhecessem sua inutilidade.

O último espaço ficou suspenso.
Num retalho de tempo,

a dúvida da volta.
E então passou o prazo,

e tombou o píer, de joelhos,
sobre o velho mar.



(Rascunhos do absurdo – 2009)

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

NEUZA PINHEIRO


(auto-retrato)





quando o tempo
não me der a mínima
nem musas
hei de chover ausência
às semifusas


-.-.-.-.-.-.-.-.-




SOLO PARA SONAR

Morcegos são quase amor
são quase cegos
Morcegos são quase Morse
vates do nosso reverso
Morcegos surrupiam extratos da noite
e vertem réquiens sibilinos
sinos, farfalhar de estrias
trilhas do nosso flagelo
Morcegos são quase trevos
na lapela dos becos
conhecem o rito dos gatos
a alma dos cães em solitude
Morcegos sabem quando as ruas divagam
sabem do ponto exato em que a morte acelera
e do éter que entorpece os ciprestes
Morcegos são freqüências
decibéis do que não chega
Morcegos choram pelo Homem-estalactite
o homem submerso nas ondas cavernosas
do seu próprio desespero
corpo fechado
em oitavas incontáveis
de miséria
Morcegos não guardam segredo
escancaram cicatrizes ainda quentes.

M o r c e g o s a t r a v e s s a m a l u a...



-.-.-.-.-.-.-.-.-



MONSTRUÁRIO PARA GEMIDO E RANGER DE DENTES
(os cachorros nunca mais serão azuis...)

I
ÁRI(D)A


Olhos secos ralando cebolas.
Não reconheço a salvação
ela não me reconhece
A salvação jaz em algum templo soterrado no deserto.
A alma
quem sabe já tenha se encaixado
um dia
nas ranhuras da carne
quem sabe tenha descansado no Peito Imenso da estrela-Mater
(estrelas são dádivas, sinais de vida
mas luminosos são paranóicos
luminosos
são armas letais)

II
NUVENS NEGRAS


Olhos vagos
olhos sem medida
estendendo lençóis
Não reconheço as nuvens
elas não me reconhecem
As nuvens
nunca mais serão carneiro
nunca mais serão dragão
nunca mais serão castelo
O filhote de pássaro agoniza na calçada
Não resistiu ao temporal...




Neuza Pinheiro foi a primeira intérprete de Arrigo Barnabé. Cantou Diversões Eletrônicas, vencedora do festival TV Cultura-MPB (1979) e classificou Infortúnio em quinto lugar.
Ganhou o prêmio nacional de melhor intérprete cantando Sabor de Veneno, de Arrigo no Festival MPB TV Tupi (1979). Trabalhou com Itamar Assumpção na banda Isca de polícia (1985/88). Lançou o CD autoral OLODANGO em 2005. Através do projeto PROFISSÃO DE FEBRE, Neuza vem musicando os poemas de Paulo Leminski. O projeto se estendeu em 2008 a poetas como Odete Semedo (Guiné Bissau), Marcelo Sandmann e Bárbara Lia (Curitiba). É paranaense, socióloga e educadora da Prefeitura Municipal de São Paulo. Vive em S. André-SP.
Email: pinheironeuza@hotmail.com
Blog: www.spiritualsdoorvalho.blogspot.com
Myspace: www.myspace.com/neuzapinheiro

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

PÉTALAS


A menina de beijo eriçado,
lia rascunhos de coito;
sonhando pétalas.

A mocinha de peito afiado,
fendia azulejos de quatro;
sonhando pétalas.

A mulher ao jeito do Diabo,
sorvia desprezo no prato;
sonhando pétalas.

A anciã no leito, exilada,
morria sozinha no quarto.


(Verdes versos - 2007)


Obs: este meu poema traz o corte, o fim inesperado, tão característico da obra de Miguel Marvilla. Quando Miguel organizou meu livro, fez alguns comentários que me foram muito úteis na elaboração dos poemas que se seguiram. Após isso, na releitura que fiz de sua obra, observei tratar-se de um traço utilizado em alguns dos seus melhores poemas.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

HOMENAGEM AO POETA MIGUEL MARVILLA - CRONÓPIOS


PREZADOS LEITORES,

CONVIDO TODOS A LER A PEQUENA COLETÂNEA QUE PUBLICAMOS NO PORTAL LITERÁRIO CRONÓPIOS EM HOMENAGEM AO POETA MIGUEL MARVILLA.

GRANDE ABRAÇO E BOM FIM DE SEMANA

CRONÓPIOS: http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=4245


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Moribundo


Foto: Eloísa Pelegrineti - St. Paul - França - 2008


Se te lembrares de mim,
traz-me orquídeas num tubo de ensaio –
dessas que são isoladas, para não se ocupar
da impureza de nossos dias –
e injeta em minha veia.

Coloca um fone em meus ouvidos
que me sussure brisas.

Mostra-me fotos de casa
e conta de nossas sombras .

Se te lembrares de mim,
lê-me a Máquina do Mundo.

Não te prendas aos meus olhos fechados;
na escuridão, recicla-se a luz do entardecer.

No limiar da consciência
o nada-fundo se disfarça em paz.

Se te lembrares de mim,
ignora a falsa ausência de gestos.

Abafa os sons
dos aparelhos que me amparam
com um lindo sorriso.

Se te lembrares de mim,
diz a quem interessa, que os amo.

Se te lembrares de mim,
deixa-me de recordação, seu cheiro.

Depois, sai feliz
e celebra a vida.



Pois logo chegará a morte.
Quem sabe a única esperança...,

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

UM POEMA PARA MIGUEL


Le Papillon blessée

Para Miguel Marvilla


Na atual névoa
das simetrias.
Quando se veem pungentes
os passos que reverberam certezas,
parece um capricho,
essa fieira de insignificâncias
(o rastro da borboleta).

Por isso, o silêncio resoluto
desse corpo flácido do homem
diante de nós.
(O retorno à condição humana é o recurso último
ao qual se entrega a borboleta em momento de agonia.)

Esses tantos
que se debruçam
sobre seu leito
não se apercebem da fraude.

(Na verdade,
o poeta não carece de existência corpórea.)

São borboletas que persistem
suspensas na cor indistinta do tempo.

Sempre restará o marolar das asas,
cortejando com seus signos,
aquele que, no absurdo da vida,
se aperceber
só.




Vitória, 10 de outubro de 2009

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Miguel Marvilla


Prezados amigos,

Faleceu, no último sábado, aos 50 anos, o poeta e contista Miguel Marvilla.
Miguel é certamente um dos maiores poetas da história do Espírito Santo.
Juntamente com José Augusto Carvalho e Jô Drummond foram meus maiores incentivadores a persistir no caminho da poesia.
Além de poeta e contista, Miguel possuía a editora Flor & Cultura pela qual publiquei meu primeiro livro.
Tenho muito a dizer sobre esse grande poeta. Em decorrência disso, dedicarei as próximas semanas desse blog a apresentar uma pequena coletânea de seus poemas.
Para começar, seguem alguns poemas de seu livro A fuga e o vento, publicado em 1980.
Estou preparando uma coletânea para que todos tenham uma idéia da qualidade dos escritos desse, que para mim, é um poeta que merece um reconhecimento em nível do todo nosso País.

A FUGA E O VENTO

(1980- edição marginal)


Ordem natural das coisas

Murchas
as rosas já não surtem
seus efeitos de rosas

tudo tem seu tempo de florescer
as revoluções
os poemas
as palavras
e as crianças

tudo tem seu tempo de apodrecer


Ofício
Não posso prescindir da janela
é meu ofício pretender a lua


Poema de(s)esperança
deus e o germe
é fato que se multiplicam
criaturas plenas

(hermanas creaturas
Debajo del jardin
Crescen muertas)

e são minha mano izquierda
y mi mão direita
e resto del cuerpo

difusos e opacos
deus e o germe
na obscuridade se multiplicam

pero muertos


Lápide
se há de chover, que chova.
a chuva
lava
a palavra
respaldo do germe.

se há de saber, que haja.
defronte mesmo à parede,
o caos não se repensa.

se há de consentir, que forje.
os mitos
não se permitem
ousar mais: são mitos.

se há de louvar, que duvide.
os pães
e os ladrões
não dormem na mesma mão.

se há de negar, que conheça.
(é preciso aço e membrana.)

se há de fluir, que aconchegue.
(é preciso sangue e nácar.)

se há de haver, que nasça.
excessos
e encéfalos
fazem
a
massa
da
vida.


(se há de morrer, que anoiteça.)






Silêncio
os ratos roem meu corpo
por que ninguém chora (?)

os ratos roem meu corpo

ah meu deus se alguém chorasse
talvez eu soubesse de pronto
que estou vivo

talvez até gritasse


Elegia
pedaço de metafísica
a tua boca é uma emoção
acomodada sobre a geografia dos dentes

gramática e cor
compondo os sintomas do riso

paisagem edificada
sobre
suavitez
a primavera em cabelos
reforça o arco-íris
teus olhos

(policromia é uma falta de escuro
na noite que te comporta)

alva e repleta
tua pele se aperfeiçoa
bela e gentil
para o seio patente
em minhas muitas mãos
que jamais te tocaram

e a noite com seus etéreos
permanece estéril
enquanto teu olhar floresce manhãs

(guardarei meu beijo para o teu conhecimento
e meu corpo para o teu silêncio
que o futuro ainda não foi muito longe)

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

TRIGÉSIMA SÉTIMA LEVA DA REVISTA CULTURAL DIVERSOS AFINS


Prezados amigos,

Convido todos a lerem a nova leva da REVISTA CULTURAL DIVERSOS AFINS.
Fui convidado por Fabrício Brandão e Leila Andrade para responder algumas questões sobre minha poesia e minhas percepções do processo criativo.
Mais isso é muito pouco...
A revista, como sempre, reserva-nos o valoroso sabor das descobertas.


- percorrendo a estética intervencionista do artista plástico e fotógrafo Kilian Glasner

- em meio à linguagem contundente das linhas cinéfilas de Celso Serpa

- nas experiências inusitadas presentes nas prosas de Nydia Bonetti, Bruna Mitrano e Larissa Mendes

- pelas profundidades dos versos de Aleph Davis, Fao Carreira, Nilson Galvão, Wilton Cardoso e Marcos Pasche

- através das vias sonoras dos discos de Otto e Filipe Catto


Vale a visita:


http://diversos-afins.blogspot.com

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

O que seja


Ser o eco das imperfeições.
A solubilidade do instante.
O entardecer entre nuvens –
quando o sol se dissolve
no piscar das pálpebras.
O inesperado,
o suspeito.
A perda do filho que apenas principiava.
A morte a atrapalhar a risada dos desatentos.

Ser o lamento.
A antevisão do pisotear dos corpos.
Palavras com tessitura de um devaneio.
Ser o meio
com todos desperdícios.

Ser o vício.
O mito extinto.
A bolha de ar na traquéia rompida.
Ser dos anjos, a comida.

Ser a orgia.
Peripécias.
A gudeira na mão do crepúsculo.
O definhamento dos músculos.
A graça das línguas.

Ser a míngua.
Fadiga.
A miragem da felicidade.
O tropeço.
O preço da vida.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Sobre algumas verdades


Tenho algumas verdades litorâneas.
Dessas que não molham os pés,
mas se empanturram de areia
e saem se enterrando ao mínimo sinal
de proximidade do desconhecido.

Não sei quantas vezes li
que as flores persistem.

Assim também são essas verdades.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

CRONICA


A leveza da queda



Aos poucos estão trocando o piso das calçadas de Vitória; novas normas para tornar mais seguro o dia a dia dos pedestres.
Podem achar estranho, mas não me atraem calçadas regulares.
Os buracos, as irregularidades e os desníveis me servem como camuflagem do relógio do tempo, como um sinal de que mantenho momentos de distanciamento, de contemplação, de ausência.
Sei que surpreendo muita gente, mas alguém tinha que tirar proveito do descaso dos gestores de nossa cidade...
Para quem não acredita, basta olhar a quantidade de marcas que tenho nas canelas, motivo de chacota dos amigos e do pessoal lá de casa. Não, não é nada disso, não tem nada a ver com masoquismo. A razão é mais nobre...
O tropeço súbito tem dupla finalidade, mantém a possibilidade do poema e me permite dissimular a chegada da morte.
Ainda não entenderam?
Como vou saber, andando por esse piso de ladrilho hidráulico simetricamente disposto pelas ruas, se estou atento demais às praticidades da vida? E outra coisa: depois de treinado, condicionado à mesmice, se, por acaso, por um descuido da fiscalização pública, eu deparar com um buraco e tropeçar e tombar sem me proteger, e me machucar, e tiver dificuldades para me reerguer, e sentir uma sensação de vazio, de falta de propósito na queda, nesse momento eu saberei que me tornei velho e pior, que terei deixado para trás, perdida em alguma queda, irrecuperável, a inspiração do último poema.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Eucanaã Ferraz


Mais doce


Confesso: não pude desamar de ti.
Tornei-me, então, tua mãe.

Afinal, não serias o meu homem,
eu sabia. Não vacilei, e dedico-me

à condição mais intestina,
mais doce – a de quem cozinha,

cose, espera, cala, tece,
aconselha, espera, vela

(mesmo que não, é como se fosse),
à condição de quem vê passar

o tempo no cabelo, nos gestos,
nas histórias, nos amigos, nos dentes

do seu pequeno príncipe, do seu dolorido,
do seu príncipe feliz.

Porque não me querias como homem,
porque não poderia ser teu pai,

retou-me não ser menos que este amor
que segue ao teu lado

mesmo quando é tão distante teu caminho,
teu silêncio, teu passo rápido, teu sonho.

Choro,
que o destino das mães é sempre triste.

Porque é triste não poder ser
a mulher do seu menino.


Via


Eu caminhava nu, sem que você visse.
Pra que você visse, eu caminhava sem.
Você não via. Pra que você soubesse,
eu caminhava nem, sem que você visse,

eu caminhava livre, além do limite de
ser ninguém, sem remo e sem alento,
o andar isento quase de mim mesmo,
num estranho,cansado engano,

sem âncora, no vento, e mais contente.
Nu, livro ao avesso; nu, anel sem dedo;
nu, anel sem dentro; nu, a pedra
bruta; nu, um livro bruto, antes

do acabamento, cimento grosso,
na antemão da cal, da letra, descampado,
como se a mão de alguém me desenhasse,
antiqüíssimo, no dorso de um vaso.

Sem poder ser belo, sem poder ser feio,
coisa-coisa no espaço, no tempo, eu ia.
O sol me reconhecia: eu era o filho
mais novo do boro e do alumínio.

Meu passo exalava o hálito do barro.
As crianças me apontavam, riam.
Tudo se condensava à minha roda.
No entanto, nenhuma flor surgia

nos meus passos: os brejos permaneciam
sáfaros, cobertos de urzes, sem que nada
fosse esquivo, estranho ou intratável,
nenhum recife, navalha ou gesto sórdido.

E pra que se desse a ver, meu silêncio
dizia: cabelo, pelo. Sorri: os anjos de pedra
me acenaram. Eu caminhava sem,
em você, sem que você visse.



EUCANAÃ FERRAZ. Rua do mundo. Rio de Janeiro: Companhia das letras, 2004.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Rosa dos ventos


foto: Prego ou não Prego
Autor: benjamim vieira



O segredo do meu casamento
é um prego cravado fora da porta de casa.
Penduro ali
meus sentimentos provisórios.





(PENSEI EM CONTINUAR ESSE POEMA COM AS ESTROFES SEGUINTES, MAS ACABEI SUPRIMINDO-AS)

De resto,
não direi mais nada.

O que te aparenta inútil
prescinde de explicação.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

TERCETOS IV


A ausência de espaço
não poupará
nem mesmo as sombras.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Fabrício Brandão e Leila Andrade


Foto: Leila Andrade


A PONTA DA ESTRELA


Fabrício Brandão





Tenho segredos que me sabem.
Todos eles tidos em mãos ocultas,
Circundam um tempo vazio de horas.
Então, adormeço para fazer frente aos desejos,
Catando a outra borda do sonho.
Pequeno grande objeto estranho de mim,
Deixo o sol se espraiar sobre mentiras,
Uns tantos prediletos brinquedos de vida.






DUO


Fabrício Brandão


Aquele outro se abre em fendas
Arranha espaços
Agarra as mentiras presas nos lençóis
Acontece sem ninguém.


Dialoga com espelhos
Despeja poeira nos móveis
Discute com vista para o mar
Depois do prazer


Cumpre o rito das horas
Corteja o azul que vaga
Cala em voz alta
Cerra os olhos em terras distantes


O daqui sustenta esperas
Ornamenta os sentidos na estante
Obedece sinas tortuosas
Ora por um pouco mais de tempo




Fabrício Brandão gosta de levar adiante as missões da Comunicação e das Letras. Homem de poesia, prosa e outros gêneros similares, edita, juntamente com Leila Andrade, a Revista Cultural Diversos Afins.

http://diversos-afins.blogspot.com






RETRATO FINAL

Leila Andrade

a inconstância do mundo apavora
o corpo que se move lento
respira sem profundidade
numa desordem possível
: os cálculos imperfeitos


retalhos de uma vida deserta
espalhados na colcha da cama fria
combinação exata com a falta de leveza
das cores prediletas
vermelhas, amarelas, culpadas






DE DESERTO E SOMBRAS


Leila Andrade



Uma pedra íntima desvia

o meu grito de desgosto

interpretado sob medida

em um coração deveras

largo



e não se ajusta

à calma:


meus cantos todos calados

uma homenagem ao silêncio,

senhor de todo caminho

deserto.


Leila Andrade é graduada em Letras e Comunicação Social. Pensa poesia em seus dias como um inevitável sopro do vento em sua face.





http://palavraedestino.blogspot.com

sábado, 15 de agosto de 2009

Ferreira Gullar



INTERNAÇÃO

Ele entrava em surto
E o pai o levava de
carro para
a clínica
ali no Humaitá numa
tarde atravessada
de brisas e falou
(depois de meses
trancado no
fundo escuro de
sua alma)
pai,
o vento no rosto
é sonho, sabia?


Poema escrito por Ferreira Gullar, pai de dois filhos portadores de esquizofrenia.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Terroir



Iluminou-se o estilo:
rascante.
Espinha de peixe.
Monjolo a pilar a palavra
até que finde a água.



(Verdes Versos)

quarta-feira, 29 de julho de 2009

INTERJEIÇÃO


A ocupação daquele casebre
por Juarez, um pescador,
antecede o nome das águas.

Desde sempre brotaram peixes
das ranhuras daquelas encostas;
e a cada floração,
colhia-se o indispensável.

O Mar era uma planície alagada,
que derramava a cada entardecer
suas luzes no horizonte.

Nessa hora,
Juarez bebia do Mar
para saber da pureza.

Eram bons os presságios.

No encortinar do dia,
o homem de sal
despia-se do indecifrável das horas
e adentrava a choupana de sopapo.

Juarez tinha uma companheira -
diziam ser uma bruxa -,
roubada dos círculos de fogo.

Coxas firmes,
que iludiam os anos.
Pele clara,
que refletia o Sol.

Chamava-se mulher;
e isso bastava.

Diante dela,
o homem quedava-se e orava;
era sempre um desconhecido.

E a mulher
oferecia-lho a certeza da vida;
e era o bastante.

As palavras não lhes tomavam
o espaço dos corpos.


Mãos ásperas – acesas –,
curavam-se da brutalidade dos anzóis
no visco da fêmea.

O facho da Lua
iluminava os lábios da mulher,
que diziam o nome do gozo.

Sons da noite...

Assinatura perdida
da identidade humana.

quarta-feira, 22 de julho de 2009


Imensidão!

O cavalo branco,
já sem asas,
trota,
com desandada fúria,
sobre o cobertor de asfalto.

No piche molhado
(não contavam com isso),
ainda desliza o azul
das primeiras águas
da tempestade.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

CONVITE

CONVIDO TODOS A VISITAR O BLOG DO POETA E ENSAÍSTA GUSTAVO FELICÍSSIMO
RESPONSÁVEL PELA ORGANIZAÇÃO DE MEU PRÓXIMO LIVRO "RASCUNHOS DO ABSURDO".
GUSTAVO TEM REALIZADO UM TRABALHO BRILHANTE DE RESGATE DOS POETAS BAIANOS.
ESTA SEMANA ELE PUBLICOU UMA BREVE ENTREVISTA E ALGUNS POEMAS DE MEU LIVRO.

UM GRANDE ABRAÇO PARA TODOS.

Gustavo Felicíssimo
http://www.sopadepoesia.blogspot.com

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Georgia on my mind - Ray Charles


Geórgia
Para Ray Charles

Geórgia!
Te atormentam meus dedos longos?
São extensão das teclas;
negros como meu céu.

Geórgia!
Arregalei meus dentes brancos
e afrontei tua empáfia
com a melodia da ausência.

Geórgia, Geórgia...
O mito percorre a galeria
dos acorrentados.

Geórgia ...
E essa minha cegueira?
E a de tantos outros,
frente a iniqüidade ...

Geórgia...
Busco refúgio
na mansidão do vício,
mas já não me basta...

Geórgia ...
As últimas águas que vi
derramaram meu irmão morto.

Geórgia!
Levanta-te e olhe para trás.
Gritos te espreitam nos calabouços.
Corpos pendem nos plátanos.


Geórgia ...
Por hoje basta.
Deixemos os aplausos
ecoando nas galerias vazias.
Cuidemos juntos do arado.

sábado, 4 de julho de 2009

CONVITE

PREZADOS AMIGOS,

DEIXO AQUÍ UM CONVITE PARA LEITURA DE UMA PEQUENA COLETÂNEA DE POEMAS ENTITULADA "ESCRITO À MÃO ESQUERDA" PUBLICADA NA REVISTA ELETRÔNICA CRONÓPIOS.

CONVIDO TODOS PARA UMA VISITA NA DIVERSOS-AFINS, EDITADA PELOS AMIGOS FABRÍCIO BRANDÃO E LEILA.
A EDIÇÃO DE COMEMORAÇÃO DO TERCEIRO ANO DE EXISTÊNCIA ENCONTRA-SE IMPERDÍVEL.

UM ABRAÇO PARA TODOS.

http://www.cronopios.com.br/site/default.asp
http://www.diversos-afins.blogspot.com/

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Dialética do desenlace


(Eleusa de Morais - tinta acrílica sobre tela)
eleusa9@pop.com.br



Estamos sós.
E a tristeza que invade os espaços íntimos
não permite sobriedade.

Desfazem-se gestos
para evitar a tortura de sentir-se interpretado.

Quando calar-se
é um virar de costas.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

POLITEÍSMO



Costumam rir dos meus Deuses


Antes que o Céu
se encumbisse do sumiço das estrelas,
o menino desenhou um Sol para cada País.

domingo, 24 de maio de 2009

ITALO CALVINO - parte II


Seis propostas para o milênio



Por Bruno Tolentino

As prefigurações de Italo Calvino para a arte que virá podem ser chaves de uma nova humanidade

Em suas Seis Propostas para o Próximo Milênio – mais exatamente, nas cinco que conseguiu redigir antes de sua morte súbita -, Italo Calvino faz melhor que profetizar: assume e, assim fazendo, define magistralmente o que seja o componente profético de toda grande arte. Recorde-se que os vocábulos vate e vaticínio têm a mesma raiz; observe-se que, conto, romance ou ensaio, o grande prosador italiano manejava as artes da linguagem com absoluta mestria; e constate-se que, nesses textos, zênites de toda uma vida dedicada à reflexão, Calvino é mais que nunca o autor das Cidades Invisíveis. Vale dizer: o que sua argúcia de ensaísta e erudito nos permite entrever de um futuro hipotético, ele o vai tecendo com os fios eminentemente artesanais de um artífice embebido de um passado tão instrutivo quanto promissor.
Aqui é o artista que nos conduz de espanto em maravilhamento, de Ovídio a Lucrécio, das sagas nórdicas ao folclore centro-europeu e, pelas vias mais inesperadas, de Dante e Cavalcanti a Petrarca e Leopardi, e deles até Montale, Wallace Stevens, Emily Dickinson, Jorge Luis Borges... A impressão é a de que nada se perde de uma Via-Láctea tornada a moldura de uma Via Dolorosa em que se movem, como na roca de um tear inefável e incessante, todos os possíveis do espírito humano. Desse movimento de espiral contínua, ascendente, descendente, recorrente, mas sempre fiel a seu roteiro como um pêndulo a seu ritmo, Calvino interroga não as Parcas, mas o destino exemplar da humanidade tal como até hoje o determinou tudo o que a criatura fez de melhor. Isto posto, aponta a destinação, senão provável com toda certeza perfeitamente possível, desse moto-contínuo, desse périplo cuja coerência e unidade seu admirável gênio analítico torna vívido, perceptível e onipresente.
O espírito enquanto experiência acumulada que seu esboço de painel temporal projeta sobre o devir é, de fato, tão nítido e palpável que, em momento algum, ameaça caber no estreito funil das especulações lucubratórias. Longe disso: sua leitura do exercício da inteligência como fio condutor da condição humana toma o ato de criação artística como a tarefa por excelência da espécie; e, aspirando a bem mais que um mero roteiro das peripécias do intelecto, seu painel da aventura cognitiva tece ante o leitor arguto uma teia de significações de tal modo emocionante, que a única reação possível é o júbilo.
Se tanto se fez, e tão bem, que é possível torná-lo evidente e revê-lo à mais casual ou à mais assistemática das leituras, então é certo e seguro que nada se perde ou pode vir a se perder do ímpeto inquiridor e criativo do ser humano, esse enigma em busca de mais e mais veracidade, consciência e claridade. Isso posto, torna-se um prazer conjeturar como uma tão esplêndida bagagem expedida rumo ao futuro vai atravessar-lhe e clarear-lhe as brumas, cumprir sua viagem e, uma vez lá chegando, dar testemunho do que fomos e havemos de ser.
Dos cinco itens assim inventariados e expedidos à alfândega do amanhã – Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade e Multiplicidade; a sexta proposta, Consistência, não chegou a ser desenvolvida -, três parecem-me ter assegurados bom trajeto e bom porto. E digo já por que distingo e separo dos outros dois os quesitos de Leveza, Exatidão e Visibilidade, por que razões deixo às Parcas o destino, para mim incerto, da Rapidez e da Multiplicidade, tais como Calvino as lê e propõe.
É que, como as vejo eu, estas últimas são passíveis de confusão; a primeira, essa “rapidez” que ele entende como economia de meios em favor da comunicabilidade do essencial, pode, cá entre nós, facilmente ser tomada por uma receita de atalhos mais ou menos acrobáticos, dado o espírito apressado de uma era que se anuncia enamorada das vertigens súbitas. Não é o que lhes envia, mas temo que possa vir a ser o que efetivamente queiram receber os “amanhãs que cantam” nos Brasis vindouros... Em que pese a nitidez de sua exposição, a virtude da rapidez necessitaria ainda mais talento e mais cuidado na “chegada” do que no ato de embalá-la e enviá-la a um futuro que temo por demais ávido de mediatismo, de “resultados imediatos”. Bem pode ser que a alguns cá do Terceiro Mundo em seu terceiro milênio não fique assim tão absolutamente claro que Calvino não era calvinista...
O mesmo, ou quase, vale por sua apologia da Multiplicidade. Aqui, a bem dizer, o risco de desvio de carga parece menor, pois que Calvino advoga a idéia de romance como uma espécie de mosaico móvel, em lugar da flaubertiana forma precisa (e fechada) de captar e narrar um determinado aspecto, ou instante, do real. Seu modelo da multiplicidade de planos e perspectivas é sobretudo a Recherche de Proust, e até aí vou eu.
Mas começo a hesitar onde sua reflexão passa de uma justíssima avaliação do projeto (necessariamente) inconcluso de Robert Musil, ao elogio do especimen (inevitavelmente) confuso de Carlo Emilio Gadda. Entendo-o, simpatizo mesmo com essa ambição, esse voto de confiança para com o “seu” ofício, mas não me disponho a endossar suas recomendações, e isso em nome de um certo irredutível espírito meu de desconfiada resistência às amplidões “abertas” em matéria de arte.
Nem todos os sertões são tão grandes que acolham veredas seguras, as mais das vezes o diabo da anarquia dança sozinho nos mais arbitrários redemoinhos à beira da estrada... Ou seja: a menos que se proponham os contos de Borges e as parábolas de Kafka como paradigmas de uma “nova ficção”, e até que lá se chegue sem bookprizes, fico com A Montanha Mágica, com Leviathan, com Mrs. Dalloway, com Nostromo, no temor do que possam vir a ser nossos futuros “homens sem qualidades”...
No mais, Calvino ganha de barbada a aposta com o desconhecido. Partindo do que se fez de mais notável no Ocidente, sua lucidez mapeia os vinte e tantos séculos do ilustre passado-presente, e sua paixão conduz o leitor rumo a um amanhã que contenha toda a fertilidade de um acervo excepcional que, além de incomum, ele demonstra ser mais do que suficiente. Quaisquer que possam ser os novos parâmetros, não será possível honestamente ignorar o que Calvino mostra-nos ter sido e seguir sendo o grande, o incontornável inventário do arquiprovado gênio ocidental.
Sob a rubrica Visibilidade, sua ensaística dá-nos talvez a mais sensível e sucinta explicação demonstrativa do que seja – no caso, em Dante – a “alta fantasia”, essa faculdade eminentemente superior do intelecto, a que antes de tudo o define e sem a qual não há como haver plena representação do mundo nem das coisas que o animam e ultrapassam. É a arte da poesia tornada clara equação e jubiloso entendimento. Haveria mais, bem mais a dizer desse quarto capítulo, mas temo que deixar-me alongar nele seria tentar dar a muitos o que é inevitavelmente o alimento de poucos. É ao poeta, e ao poeta especialmente lúcido, que Calvino se dirige nessa incomparável lição de modelagem, de plasticidade, de forma – a forma e sua música sem par e sem paráfrase. Seu louvor da paranomásia, por exemplo, na Enguia de Montale, por si só mereceria um estudo todo seu. Mas, se passo assim batido por onde a mim mais me importaria deter-me, é que urge, em benefício de todos, aqui e agora, refletir na análise propositiva que seu minucioso intelecto coloca sob as égides complementares da Leveza e da Exatidão.
O que ali vai dito vale especialmente para uma cultura em risco de mutação regressiva, como há meio século vem sendo a nossa, esse nosso Brasil em crise de adolescência tardia, o mesmo que Manuel Bandeira, em 1957, já dizia ser “da América infeliz a porção mais doente”. Àquele país, então apenas esboçado, hoje maduro o bastante para extrair seu enxame de vermes da própria polpa apodrecida, vai endereçada a mensagem central da Leveza segundo Calvino, qual seja: “O mito da modernidade é o exato oposto da eternidade do mito. (...) Se eu tivesse que escolher um símbolo votivo para saudar o novo milênio, seria o salto ágil e imprevisto do poeta-filósofo que se eleva acima do peso do mundo, demonstrando que detém o segredo da leveza, enquanto aquela que muitos julgam ser a vitalidade dos tempos, estrepitante e agressiva, pertence ao reino da morte, como um cemitério de automóveis enferrujados”.
E, para encerrar sem meias medidas, last but not least, aqui vai o mais grave: numa língua cada dia mais invertebrada, preguiçosa, distorcida, contaminada de populismos que, mais ou menos ideologicamente herdados dos ingênuos desvarios “independentistas” de 22, se iriam espertamente institucionalizar em benefício de uma claque de viúvas alegres, tão ciosas quão ambiciosas, nesse quadro acabrunhante e perigoso, a lição, a noção calviniana de Exatidão soa e ressoa com um inadiável sentido de urgência. Por exemplo, na incisividade de passagens como a que segue: “Por que a necessidade de defender valores que a muitos parecerão simplesmente óbvios? A linguagem usada de modo aproximativo, casual, descuidado, me causa intolerável repúdio”. Que não lhe haveria de causar a leitura do cá canonizado Macunaíma, por exemplo? Ou, praticamente ao mesmo nível, a leitura de certos jornais, lamentáveis folhas que acabaram devendo tanto àquela “mariologia” libertária que a USP se encarregou de vender a todo um país que jamais a necessitou, sonhou ou quis... Porque a mentira de cátedra continua a reinar e a irradiar seu terrorismo “novologista”, a leitura das propostas de Calvino talvez ensine o caminho da Arca aos raros que não queiram virar rinoceronte pós-moderno, capivara petista, anta versejante, chimpanzé roqueiro, ou o que mais prometa a fervilhante fauna.
Para esses, vestibulandos em risco de se verem envelhecer como animais no “atual” presépio conceitual beletrista, Calvino pode ser um Noé.

Bruno Tolentino

Grande poeta brasileiro

(12.11.1940 - 27.06.2007)

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Poema à morte da ingazeira


Morre de pé o verde,
até que a inexorável gravidade
trace seu rumo definitivo:
partir para o esquecimento.


(Verdes versos - 2007)

sexta-feira, 15 de maio de 2009

ITALO CALVINO - parte I


Italo Calvino: Descobridor do fantástico no real

Por Pedro Maciel

Autor de histórias originais reflete sobre as coisas que acontecem no tempo múltiplo, templo plural, tempo de uma ação que acontece no presente, mas que se bifurca entre o passado e o futuro




“Não é verdade que já não me lembro de nada, as lembranças ainda estão lá, escondidas no novelo cinzento do cérebro, no úmido leito de areia que se deposita no fundo da torrente dos pensamentos...” Os pensamentos de Italo Calvino, mergulhados na vivência e saber, nos assombram e demarcam caminhos que iluminam a sabedoria. Calvino traçou muitos caminhos pela vida afora. Um deles é “O Caminho de San Giovanni” (Ed. Cia. das Letras), composto por narrativas escritas entre 1962 e 1977. Calvino narra histórias originais através de fragmentos, lampejos que transitam entre a memória e a reflexão.
“O Caminho de San Giovanni”, que abre o livro, evoca a adolescência passada em San Remo, as divergências entre pai e filho, a natureza bucólica e a paixão pela cidade. “Autobiografia de um espectador” é o escritor descobrindo o cinema, sua adoração pelo imaginário de Hollywood. Calvino ainda revela a confluência do seu mundo com o mundo do circo de Fellini, mundo desenhado a partir do humor poético, crepuscular e angélico.
“Lembranças de uma batalha” narra os tempos de guerrilheiro antifascista na Ligúria. Calvino volta-se no tempo, “perscrutando o fundo do vale da memória”, para recuperar os sons, imagens e palavras que o infernizaram na época da Segunda Guerra. Em “La poubelle agrée” descobrimos o humor de Calvino a partir dos gestos banais, como pôr o lixo fora de casa. Para encerrar, “Do opaco”, um texto poético que tenta desvendar “o lugar geométrico do eu” no mundo, “o eu que só serve para que o mundo receba continuamente notícias da existência do mundo, um engenho de que o mundo dispõe para saber se existe”.
Os exercícios de memória de Calvino não apresentam a verve do ficcionista, do fabulista que se encontra em “Palomar” ou nas “Cidades Invisíveis”, quando o autor dedica-se a renovar a arte literária. Em “O castelo dos destinos cruzados” ou em “Se um viajante numa noite de inverno”, o ficcionista reflete sobre o ato de escrever num mundo já conquistado, “colonizado por palavras”.
Italo Calvino é discípulo espiritual de Jorge Luis Borges. Calvino, ao decifrar Borges, decifra-se como uma esfinge: “Em cada texto, por todos os meios, Borges fala do infinito, do inumerável, do tempo, da eternidade ou da presença simultânea ou da dimensão cíclica dos tempos”. Calvino também reflete sobre as coisas que acontecem no tempo múltiplo, templo plural, tempo de uma ação que acontece no presente, mas que se bifurca entre o passado e o futuro.
As narrativas do autor de “Os amores difíceis” são reinvenções de um aventureiro da literatura. Calvino é autor de idéias, cerebral e livresco. Reinventor de lendas medievais. Toda a sua literatura é uma reescritura (paródia). Adepto da ficção absurdamente elaborada. De estilo imprevisível, alterna humor, erudição, deslumbramento e ironia. É um descobridor do fantástico no real. A ficção de Calvino mapeia a história de humor e amor. Nada que não esteja fora dos interstícios da realidade. Apesar de que toda literatura aspira ao fictício.
Poderíamos dizer, mesmo pensando em Borges, que Calvino é o inventor das narrativas cíclicas, das histórias do espírito. A literatura se resume a algumas histórias recontadas por um mesmo espírito e essas histórias, ao serem relidas, desvendam-se em outras leituras ou em novas histórias.



***


Trecho de “O caminho de San Giovanni”, de Italo Calvino

E assim, mesmo agora, se me perguntam que forma tem o mundo, se perguntam a mim mesmo que mora no interior de mim e guarda a primeira impressão das coisas, tenho de responder que o mundo está disposto sobre uma porção de sacadas que irregularmente se debruçam sobre uma única grande sacada que se abre no vazio do ar, no parapeito que é a breve tira do mar contra o imenso céu, e naquele peitoril ainda se debruça o verdadeiro de mim mesmo no interior de mim, no interior do suposto morador de formas do mundo mais complexas ou mais simples, mas derivadas, todas elas, dessa forma, bem mais complexas e ao mesmo tempo muito mais simples, na medida em que todas estão contidas naqueles desaprumos e declives iniciais ou deles podem ser deduzidas, daquele mundo de linhas quebradas e oblíquas entre as quais o horizonte é a única reta contínua.



***


Trecho final de “As cidades Invisíveis”, de Italo Calvino

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.



***


Trecho de “Seis propostas para o próximo milênio”, de Italo Calvino

A última grande invenção de um gênero literário a que assistimos foi levada a efeito por um mestre da escrita breve, Jorge Luis Borges, que se inventou a si mesmo como narrador, um ovo de Colombo que lhe permitiu superar o bloqueio que lhe impedia, por volta dos quarenta anos, passar da prosa ensaística à prosa narrativa. A idéia de Borges foi fingir que o livro que desejava escrever já havia sido escrito por um outro, um hipotético autor desconhecido, que escrevia em outra língua e pertencia à outra cultura _ e assim comentar, resumir, resenhar esse livro hipotético. Faz parte do folclore borgiano a história de que seu primeiro e extraordinário conto escrito com essa fórmula, “El acercamiento a Almotásim”, quando apareceu em 1940 na Revista Sur foi realmente tomado como a recensão de um livro de autor indiano. Assim como faz parte dos lugares obrigatórios da fortuna crítica de Borges a observação de que todo texto seu redobra ou multiplica o próprio espaço por meio de outros livros de uma biblioteca imaginária ou real ou de leituras clássicas ou eruditas ou simplesmente inventadas. O que mais interessa ressaltar é maneira como Borges consegue suas aberturas para o infinito sem o menor congestionamento, graças ao mais cristalino, sóbrio e arejado dos estilos; sua maneira de narrar sintética e esquemática que conduz a uma linguagem tão precisa quanto concreta, cuja inventiva se manifesta na variedade dos ritmos, dos movimentos sintáticos, em seus adjetivos sempre inesperados e surpreendentes. Nasce com Borges uma literatura elevada ao quadrado e ao mesmo tempo uma literatura que é como a extração da raiz quadrada de si mesma: uma “literatura potencial”, para usar a terminologia que Será mais tarde aplicada na França, mas cujos prenúncios podem ser encontrados em Ficciones, nas alusões e fórmulas dessa que poderia ter sido a obra de um hipotético autor chamado Herbert Quain.


Ensaio gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Jornal do Brasil, a 15 de julho de 2000 e recentemente publicado no CRONÓPIOS.


Pedro Maciel é autor do romance A Hora dos Náufragos, Ed. Bertrand Brasil.
E-mail: pedro_maciel@uol.com.br

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Mãe


Pubis Matris

Concepção

Há algum tempo,
tu me excitaste o ventre,
me beijaste os seios,
mergulhaste em meus cheiros
com tua sanha de homem faminto.
Roçaste teu rosto e teus lábios
ensandecidos, em meu púbis

Deixei tatuadas em tua pele
as frases desconexas dos meus gritos.

E eu te recebi sobre mim
para te dar a essência de meu gozo.
E tu deixaste dentro de mim a casual
essência de nosso futuro.

A meio caminho,
no escuro de minha intimidade,
partes de nós fundiram-se.

Gestação

Há pouco tempo,
chegaste mais tranqüilo
e buscaste como um filho,
o calor de minhas coxas.
Tua mão, agora, sem desejo,
cruzou por meu púbis, só de passagem,
e quedou-se, mansamente, sobre meu ventre.

O parto

Há minuto,
éramos eu e ela que discutíamos o instante.
Eu a convidava, alternando gritos e sussuros,
Sua resposta me chegava como ondas de um frenesi crescente.
Nos momentos de silêncio,
que, pouco a pouco, me pareciam eternos,
eu quedava exausta entre teus braços.

Enquanto isso,
tu oscilavas entre altismo
e perplexidade.
Mas, enfim, tu te mostravas com a lucidez de meu amante.

Existia, sim, uma outra mão, um outro olhar,
a observar este nosso momento.
mas ele soube do sentido de tua presença
e manteve-se a uma distância segura
para dar cabo do meu desespero.

No momento presente,
- Ah, momento eterno!!!
Sopro o suor que me chega da testa
dispo-me das máscaras venezianas
sou fêmea parideira.
-Venha, minha filha sentir a luz !
Sinta já que a verdade é dura,
que se luta pela vida,
sinta o nosso amor.

Ela me pressiona o púbis
como que a abrir uma porta
que há pouco, jamais se abrira.
Olho dentro de mim,
vejo aqueles pequenos olhos
que só entendem da simplicidade da escuridão;
eles estão fechados, voltados para as suas poucas certezas.
Mas o instinto rompe a tênue membrana
e derrama, através de mim, o seu mar de segurança.
Seu corpo se expande como que por milagre, e ocupa
espaços que até há pouco eram só meus...
Pela primeira vez me vejo a empurrá-la para o futuro.
Entendo, então, o sagrado.
Mas esse momento fugaz de consciência
esvai-se com a dor.
Eis-me a sentir a dor do parto,
dor sem volta.
Não seria esse o preço da consciência da dor?
por que esta autocomiseração humana?
falta-me a resignação animal.
Mas esta dor não dá tréguas para reflexões filosóficas.
Concluo que, felizmente, sou um animal com acesso à ciência.
Essa dor chega a ser “ desumana¨.
Vamos, filha, que eu te ajudo.
Parteiro, por favor me ajude!!!

O corpo daquela mão
se aproxima e ela manobra
o ser contorcido em que me transformei.
Relembra-me os fins
com sua voz
pontuada de serenidade.

Agora já não falo,
já não penso,
somente a dor
com algo mais... que se dissolve no ar,
que me esvazia a memória
ao mesmo tempo que vejo
ser esvaziado meu corpo.
Talvez um registro iconográfico possa dizer por mim...

E ela surge tímida,
como uma atriz que olha a vida
por detrás de cortinas semi-abertas.
Teme a estréia.
Mas parte para decifrar a luz...

(Neste momento, o poeta se despe do manto lírico e se cala. Já não pode mais se aventurar
com palavras onde o mistério da vida só se faz claro para uma mulher)


(Verdes Versos )

domingo, 3 de maio de 2009

Consciência


Ser a perdição –
lisa – despudorada.

Ter a utilidade da farpa
da aroeira – curar o esquecimento.

O retorcido cipó da ansiedade –
com tua cabeça hasteada a meio-pau.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

FABRÍCIO CARPINEJAR


Não pretendo saber o que me pertence
para guardar melhor.

Há algo que o tempo não toca.
O tempo não está decidido no rosto,
mas na forma como se escape do tempo.
Quanto maior o desespero em fugir,
maior será a velhice.


(Fabrício Carpinejar em: Como no Céu - Bertrand Brasil 2005)

terça-feira, 14 de abril de 2009


Foto: Eloísa Pelegrineti - Bordeaux - 2008



Imagens
(pequenas lembranças para os fóbicos no claustro)


Fotografar a esquina
sem rumo.

O giz entre as unhas
(pó de palavras).

O “Deus me guia”, no casco do barco
emborcado na praia deserta.

O almoço das cracas
no pier abandonado.

Surpreender o raio
almejando a Cruz.

Captar a quintessência
de um amanhecer de lágrimas.

Mostrar ao Mundo
à fonte dos arco-íris.

A serenidade do pescador
reparando a rede.

A perspectiva da mão
que atirou a pedra.

A profanação do túmulo
dos paquidermes.

A delícia da vibração
dos lábios de Milton.

A indecisão da chama
diante do sopro humano.

...

Relíquias do poeta.

Noves-fora [...]

sexta-feira, 3 de abril de 2009

TERCETOS III


A controvérsia da distância


A quanto dista
o zelo do cientista
do abuso apaixonado do poeta com a palavra?

segunda-feira, 30 de março de 2009

EMILY DICKINSON


Sorte não é chance – é Esforço –
Fortuna cobra a seu gosto
Cada risada –
A Padroeira da Mina
É aquela Moeda antiga
Desprezada –





O Poeta acende Lâmpadas –
Ele próprio – apaga-se –
Os Pavios que inflama –
Se têm Essência

Como os Astros agregam-se –
Uma Lente em cada Época
Disseminando a sua
Circunferência –





Eis Dois Pores-de-Sol – o Dia e eu
Estamos competindo –
Fiz Dois – e fiz várias Estrelas –
E Ele – só fez Um –

O dele é bem maior – Mas como eu
Dizia a uma amiga –
O meu – é mais conveniente
Para levar na Mão –





É mais fácil chorarmos
Os que morreram
Que por falta de pena
É que se foram
A Tragédia já finda
Obtém o aplauso
Que na Tragédia em cena
Pouco tem uso.

segunda-feira, 23 de março de 2009

TERCETOS II



Palimpsestos

Quando busco vozes perdidas no exílio
e rumorejo versos pretensiosos,
ressuscito mortos.

segunda-feira, 16 de março de 2009

TERCETOS I


"A MÁSCARA DO OLHO VERDE CABEÇA" (Cerca 1915)
Óleo sobre tela
Amadeo Souza Cardoso (pochoir)



Verdes Versos I


O escrito, o exposto,
essas meias verdes verdades,
já não se escondem atrás de máscara.




(Verdes versos)

quinta-feira, 5 de março de 2009

Manto


Vou sair na noite
e me travestir de amenidades.

Desenhar na névoa
elefantes com trombas sonoras,
zebras com listras de estrelas,
casais gozando em seus fuscas falantes,
de faróis de neblina iludindo o passeio dos guaiamus.

Sentarei a meia-distância de lugar algum
e gritarei seu nome em vão.

E então amanhecerá ,
e pedirei desculpas à aurora.

Pois despi a noite de seu manto
para encobrir meus devaneios.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Um pouco antes


Um pouco antes do desespero

entregarei as cartas;


não estas falsas memórias

principiadas em momentos de luxúria.


Somente a coragem de um moribundo

permite alguma crueza nas letras.


Talvez eu comece a entender Rimbaud

diante de meu cadafalso.


Por enquanto, tudo é entretenimento;

só cuspe e falsidade.


As cores são vivas e fortes

em meu semblante de camaleão.


Ao menos não me persigno;

não faço falsas preces.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

O LIMITE DA RAZÃO


Os búzios já não despejam ondas,
e eu me despeço.

De resto, somente uma ou outra suposição.

A questão passará a ser simples
quando dissermos: talvez...

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Sobre o mito de Sísifo



A labuta não respeita o portal das casas.

Dentro e fora – rolam-se pedras.



– Avisem-me

quem joga o bilboquê de pedra dos dias.



E segue o homem-bastão

entre romper o barbante

ou deixar que lhe caia sobre a cabeça

o peso da tomada de consciência.



O homem é um ser interrompido.



Seja no curtume das horas

ou nas contas do terço,

ele sempre se agasalha

com a tênue esperança.



“roda peão,

bambeia peão...”

No absurdo de agora

e à espera da vida eterna,

Amém!

sábado, 10 de janeiro de 2009

O absurdo em GAZA


Céu de bombas

Por que choras por mim meu pai?

Cumpri com o que me coube
nessa Gaza de feras.

Em cada criança morta, sacrificada,
um objetivo insano.

Despeço-me do dia
sob flashs e bombas.

Uma fome doentia
molhou teu corpo com meu sangue.

Estrelas dos profetas cruzaram os céus
e pulverizaram os créditos de minha infância.

A ambição de poder comeu meu destino.
Com a força, roubaram-me o sorriso.

Meu pai, nem sei perguntar por quê.
Não tive tempo para me nutrir de ódio.

Pensando bem, pai,
que às lágrimas partam.

Transpareças a cor de teu rosto indignado
nas telas indiferentes do Mundo.

Sobretudo creia, pai,
creia no triunfo do olhar de tua filha,
fosco de morte,
voltado para esse lindo céu,
reluzente de bombas,
nessa noite de um domingo de fúria.

07 de Janeiro de 2008