sábado, 25 de agosto de 2012

Ungaretti - poemas escritos durante a I guerra mundial



Na galeria

Um olho de estrelas
nos espia daquele açude
e filtra sua bênção gelada
sobre este aquário
de sonâmbulo tédio.

Lindoro de deserto

Um bruxuleio de asas fúmidas
rompe o silêncio dos olhos

Com o vento se debulha o coral
de uma sede de beijos

Perturba-me a aurora

A vida se me trasvasa
num enredo de nostalgias

Agora em mim se espelham os pontos do mundo
que tive por companheiros
e farejo um rumo

Até a morte ao sabor da viagem

Temos as tréguas do sono

O sol enxuga o pranto

Cubro-me com o manto morno
de lind’oro

Deste terraço de desolações
me entrego ao abraço
do bom tempo


Vigília

                                        Cima Quattro, 23 de dezembro de 1915

Uma noite inteira
jogado ao lado
de um companheiro
massacrado
com a boca
arreganhada
voltada para a lua cheia
com a convulsão
De suas mãos
entranhada
no meu silêncio
escrevi
cartas cheias de amor

Nunca estive
tão
aferrado à vida


Manhã

                           Santa Maria La Longa, 26 de janeiro de 1917


Ilumino-me
de imenso


 Vaidade


                              Vallone, 19 de agosto de 1917

De repente
se eleva
sobre os escombros
a límpida
maravilha
da imensidão

E o homem
curvado
sobre a água
surpreendida
pelo sol
se descobre
uma sombra

Embalada
e pouco a pouco
desfeita



Regresso

AS coisas guarnecem de rendas uma extensa

                                   [ monotonia de ausências

O agora é um pálido invólucro

Rompeu-se o escuro azul das profundezas

O agora é um árido manto



Ungaretti, Giuseppe, 1888-1970. A alegria: edição bilíngüe; tradução e notas Geraldo Holanda Cavalcanti. – Rio de Janeiro: Record, 2003.

3 comentários:

Chico Pascoal disse...

Passando outro dia em frente a Casa das Rosas, vi o anúncio de uma exposição sobre Ungaretti. Entrei e tive o prazer de conhecê-lo e à sua obra. Grande poeta, de rica vivência.

Um presente de fim de tarde, após o trabalho.

Jorge Elias Neto disse...

É isso, Chico Pascoal:

Estou dedicando as postagens aos poetas mais expressivos do inicio do século passado (os ditos herméticos) da literatura italiana.
Obrigado pela visita.

Ana Cristina Costa Siqueira disse...

Não reconheço hermetismo onde há verdadeira poesia. Em sua fluidez, tudo é dito, é claro e límpido como as sensações de verão e de inverno; tudo nos é perceptível como os aromas (doces ou amargos),e as nuanças do dia.Talvez concorde comigo - e sabemos que a verdadeira emoção, aquela que o olhar captura, no poema pertencerá somente ao poeta.
Desconheço muito do que Ungaretti escreveu, mas um grande poeta, ou escritor, pode andar por aí,como os jabutis, protegido por uma carcaça bem dura. A propósito, seus versos, Jorge, têm muita dramaticidade. Gostei da força do seu tom.