quinta-feira, 2 de agosto de 2012

EUGENIO MONTALE - III

APENAS UM VÍCIO

Bufões transvestidos de poetas
burocráticos arrogantes,
pedantes pregoeiros
vós sois os porta-flâmulas
brandindo insígnias desbotadas.
Ser poeta não é um título de glória.
Apenas um vício natural.
Um fardo que por medo
amarramos mal.

  
      ***
A noite que se insinua entre os refolhos
mais escuros, compreendeu o segredo
do tempo, do espaço que divide.
A verdade está talvez nessa fímbria
que se adelgaça, no toco de cigarro,
ressurge naquele fundo de garrafa
abandonado à margem da ressaca.
O resto não passa mesmo de um pretexto
para sentir-se vivo e menos só.

    ***
Um dia não muito longe
assistiremos à colisão
dos planetas e o céu diamantado
acabará submerso em escombros.
Então colheremos flores rutilantes
e estrelas de néon.
Olha, eis o sinal, um fogo
acende-se no céu, chocam-se
Júpiter e Órion e no terrível
estampido onde acabou o homem?
Certo que basta um sopro neste mundo
em que vivemos para que ele acabe.
Ficará talvez um grito, o da
Terra que não quer perecer.

    ***
Falarás de mim com o mesmo
fervor que te anima quando
recordas o avô já morto.
A morte não é o sono,
é um país do qual não se retorna;
lenta ressoa e depois chega,
é a hora, e de improviso é tua vez
de desaparecer entre seixos e terra.


Montale, Eugenio, 1896-1981. Diário póstumo/ Eugenio Montale; tradução, introdução e notas de Ivo Barroso; prefácio de Marco Lucchesi. – Rio de Janeiro: Record, 2000.

2 comentários:

Ricardo António Alves disse...

Magnífico!

Jorge Elias Neto disse...

Obrigado Ricardo.
Pena que não tenhamos acesso a toda obra de Eugenio Montale ...