segunda-feira, 23 de julho de 2012

Eugenio Montale - II




Traz-me o girassol que eu o transplante
no meu terreno queimado de maresia,
e a ansiedade de sua face amarela mostre
aos azuis brilhantes do céu todo o dia.

Tendem à claridade as coisas obscuras,
exaurem-se os  corpos num decorrer
de tintes: esses em música. Esvaecer
é portanto a ventura das venturas.

Traz-me tu a planta que conduz
aonde surgem louras transparências
e evapora-se a vida como essência;
traz-me o girassol enlouquecido de luz.

                    *

Chia a roldana dentro da cisterna,
a água sobe à luz e nela se funde.
Uma lembrança freme em balde cheio,
no puro círculo ri-se uma imagem.
Encosto o rosto a evanescentes lábios:
deforma-se o passado, faz-se velho,
pertence a um outro...
                                   Ah que já range
a roda, devolve-te ao negro fundo,
visão, uma distância nos separa.

                    *

Antigo, sou inebriado pela voz
que sai de tuas bocas ao se abrirem
como verdes campanas e se jogam
para trás e dissolvem.
A casa dos verões meus, distantes,
estava ao pé de ti, bem sabes disso,
lá na terra onde o sol é escaldante
e o ar se anuvia com os mosquitos.
Como estão petrifico em tua frente,
mar, porém não mais digno
me creio hoje da solene advertência
do teu alento. Logo me disseste
que o diminuto fermento
do meu coração era só um momento
do teu; que em mim estava no fundo
tua arriscada lei ser vasto e diverso
e fixo ao mesmo tempo:
e esvaziar-me assim de todo dejeto
como fazes tu que atiras nas bordas
com cortiças algas astérias
os destroços inúteis de teu abismo.


                           *

Quisera ter-me sentido tosco e essencial
Assim como esses seixos que revolves,
Comidos por salsugem;
Lasca fora do tempo, testemunho
De uma vontade fria que não passa.
Outro fui: homem fito que repara


Em si, nos outros,a efervescência
da vida fugaz ― homem demorado
nos atos que ninguém, depois, destrói.
Quis procurar o mal
que corrói o mundo, a pequena torção
de alavanca que para
o engenho universal; e vi a todos
os eventos do minuto
prestes a desjuntar-se num abalo.
Na trilha dum caminho eu quis o rumo
inverso, convidativo; e talvez
precisasse do gesto incisivo,
da mente que decide e se determina.
Eram-me necessários outros livros
não tua página estrondosa.
mas nada posso lamentar: teu canto
desata ainda os nós interiores.
O teu delírio então sobe aos astros.


                        *


Tramontana 

E agora cessam os círculos de ânsia
que discorriam no lago do coração
e aquele amplo fremir da matéria
que descora e morre.
Hoje uma férrea vontade varre o ar,
arranca arbustos, açoita as palmeiras,
e no mar comprimido cava
grandes sulcos de arestas espumosas.
Cada forma se agita no tumulto
dos elementos; é um uivo, um mugido
de vidas extirpadas: só há destroços
na hora que passa: viajam a cúpula do céu
mal se sabe asas ou folhas ― e somem-se.
E tu que inteira vergas nas pancadas
de ventos irrefreados
e em ti cinges os braços inflados
dDe flores ainda por nascer;
como sentes hostis
os espíritos que a convulsa terra
sobrevoam em bandos,
minha vida sutil, e como amas
hoje tuas raízes.



Montale, Eugenio, 1896-1981. Ossos de sépia 1920-1927. Tradução e notas Renato Xavier. – São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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