Cristo na cruz
Cristo na cruz. Os pés tocam a terra.
As três vigas são de igual altura.
Cristo não está no meio. Ê o terceiro.
A negra barba pende sobre o peito.
O rosto não é o rosto das lâminas.
È áspero e judeu. Não o vejo
e o seguirei buscando até o dia
último de meus passos pela terra.
O homem violado sofre e cala.
A coroa de espinhos o lastima.
Não o alcança o escárnio da plebe
que viu sua agonia tantas vezes.
A sua ou a de outro. Dá no mesmo.
Cristo na cruz. Desordenadamente
pensa no reino que talvez o espera,
pensa em uma mulher que não foi sua.
Não lhe é dado ver a teologia,
a indecifrável Trindade, os gnósticos,
as catedrais, a navalha de Occam,
a púrpura, a mitra, a liturgia,
a conversão de Guthrum pela espada,
a Inquisição, o "sangue dos mártires,
as atrozes Cruzadas, Joana D'Arc,
o Vaticano que bendiz exércitos.
Sabe que não é um deus e que é um homem
que morre com o dia. Não lhe importa.
Lhe importa o duro ferro dos cravos.
Não é um romano. Não é um grego. Geme.
Nos deixou esplêndidas metáforas
e uma doutrina do perdão que pode
anular o passado. (Essa sentença
foi escrita por um irlandês em um cárcere.)
A alma busca o fim, com urgência.
Escureceu um pouco. Já morreu.
Anda uma mosca pela carne quieta.
Que pode me servir que aquele homem
tenha sofrido, se eu sofro agora?
Kyoto, 1984
in: "Os Conjurados" - 1985
quarta-feira, 10 de março de 2010
Jorge Luis Borges
Postado por Jorge Elias às 9:54 PM
Marcadores: Jorge Luis Borges
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Um comentário:
Sempre muito bom ler Jorge Luis Borges, mas hoje vim pra falar do teu "quem sou eu". Isto tem uma força que impressiona. Sempre muito bom te ler Jorge. :) Abraço!
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