quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Caê Guimarães - Crônica

LETRAS TORTAS PARA UM POETA MORTO

Caê Guimarães

As palavras doem, não? Por isso as manuseia com a santa obsessão pelo tempo certo, a melodia inusitada, as imagens que se alteram e os fonemas que se aliteram, a forma que embala o conteúdo até se tornar o próprio conteúdo. Elas giram no imenso liquidificador que as liquefaz. São tantas e tontas, soltas, tortas, espertas, ferozes e amenas. Tentam escapar pelos buracos da cabeça. E o que resta é domá-las, retorcê-las e moldá-las como se molda a água, que cabe em qualquer recipiente.
As palavras também causam fausto, correto? Há momentos em que o melhor é fugir, mas elas seguem você como moréias ágeis e traiçoeiras que se esgueiram por entre tudo que separa e ata seu pensamento ao mundo. Não adianta resistir. Você sabe disso como poucos, mas ainda assim há a náusea, a avalanche de frases, verbos e versos. Vez ou outra um romance inteiro surge enquanto dirige ou quando espera pacientemente ser atendido pelo gerente do banco. A coisa toda explode e não há como conter o que urge. Aí você corre a mão no bolso, saca uma caneta e um bloco. E escreve.
Sabe o que é poesia? É a tentativa nossa vã de todo dia de vencer a morte. É quando olhamos para esse Deus que nos joga na vida e nos saca dela às vezes repentinamente e falamos: “Escute aqui, seu velho doido, eu também posso criar mundos. A extensão do meu punho e dedos desenha códigos que contêm vida, tão definitiva e exata, tão efêmera e abstrata quanto a existência na qual você me atirou aleatoriamente sem me consultar. Ouviu?” Mas a resposta nunca vem. E você segue escrevendo.
Também te dão prazer as palavras, acertei? É indescritível a sensação de moldá-las. Nem um escritor como você consegue a definição exata. Penso que, de verdade, ninguém conseguiu até hoje. Porque há coisas que habitam o indizível. E não é apenas tormento e dor. O gozo, o êxtase, a maravilha de criar mundos com a linguagem é inexplicável. É como se você tomasse o lugar do tal velho doido e irresponsável. Uma personagem morre, a outra se esgueira pelas sombras, há as que se atiram nos braços uma da outra e as que dormem penduradas no teto. Há labirintos. E asas de cera para escapar deles. E há o sol, meridional, implacável e generoso, que dia após dia nasce e morre, desaparece e surge em outra arquitetura.
Siga em paz, Miguel Marvilla. Diga ao velho maluco aí de cima que se não tiver papel ou caneta à mão você não vai deixá-lo dormir. Por aqui, o Livrão segue sendo escrito. Mas o capítulo desse final de semana bem que poderia ter sido cortado.

Crônica escrita para o Jornal A GAZETA em homenagem ao grande poeta capixaba
Miguel Marvilla falecido em outubro de 2009

Caê Guimarães nasceu no Rio de Janeiro em 1970 e cresceu no Espírito Santo. Viveu por temporadas em Ouro Preto e Belo Horizonte. É poeta, cronista, escritor e jornalista. Desde o final dos anos 80 desenvolve pesquisas com a linguagem em verso e prosa. Participou da exposição Psicotrópicos, com o artista plástico Luciano Cardoso, publicou os livros Por Baixo da Pele Fria (poesia - Massao Ohno Editor, 1997), Entalhe Final (conto, Massao Ohno Editor, 1999), Quando o Dia Nasce Sujo (poesia, Secult, 2006), De Quando Minha Rua Tinha Borboletas (crônicas, Secult, 2010) além de poesias e contos em antologias, jornais literários e revistas de diversos locais do Brasil e exposições e recitais no Brasil e na França.
O autor também é cronista no jornal A Gazeta, escreve resenhas literárias na coluna Entrelinhas, do suplemento cultural Pensar, do mesmo jornal. Suas oficinas de texto e poesia abordam aspectos da mitologia, do estudo da linguagem e a interface da escrita com outras manifestações artísticas. Atualmente, Guimarães está escrevendo o romance Encontro Você no 8º Round, e está em estúdio para gravar o áudio-book A Aranha Minimalista. Ele escreve regularmente no  Site

Um comentário:

Unknown disse...

Excelente!

É preciso trabalhar a palavra para que não doa,

Abraços

Mirze