sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade


A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Este poema fica aquí para todos os apreciadores de Drummond.
Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

4 comentários:

Dauri Batisti disse...

Passei por aqui. Li e reli. Há alguma coisa aqui que aponta para uma mudança(?) nos teus caminhos de escrever. Descortinas novas possibilidades, com certeza. Mas o cuidado e o zelo para com a palavra continua o mesmo. Parabéns pelo belo trabalho.

(Você é mineiro?)

Um abraço.

Elton Pinheiro disse...

claro enigma (que título!) é um livro maravilhoso, e esse poema aí é maravilhoso também, dos grandes mesmo...

abraços

Jacinta Dantas disse...

Um poema e tanto, Jorge. Drummond, Minas Gerais, estradas no entardecer. Tantos versos...uma viagem pelos sentimentos de busca... busca que me parece solitária. Um se ver por dentro, no vazio, sendo Ser colocado no mundo. Eita Drummond. Eita Jorge que brinda o leitor com esse texto. Eita viajante que me aproxima do personagem.
Lindo demais.
Abração

Jorge Elias Neto disse...

Prezado Daurí,

foi de Drummond a primeira obra completa que lí. Minha admiração por esse poeta é enorme.
Não conseguiria escrever "A máquina do mundo" mas sempre que leio esse maravilhoso poema sinto-me invadido por todas angústias e contradições humanas (e essa sensação se renova cada vez mais forte enquanto sigo em minha busca).
Sou capixaba, mas tenho um profundo amor por tudo que vem de Minas Gerais. Tenho multiplas ligações com esse Estado.
Abraços,


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Elton,

concordo com você. "Claro enigma" é uma obra prima de Drummond. Sobre o poema, um deslumbramento.
Existe muito material (inclusive teses) interessantes sobre a "Máquina do mundo" de Drummond.

Grande abraço

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Eita Jacinta que vê o dia descortinar-se nas praias de Vila Velha!
Sim, devemos reservar um crescente espaço para estarmos sós. Não esta solidão confusa e contra-producente (não sei se cabe o hífen) dos dias atuais; uma solidão que nos remeta para dentro do nosso ser, que nos possibilite a busca, que nos engalfiem com nossas dúvidas.
Não podemos fugir da responsabilidade de estarmos vivos.

Um abraço,