terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Marcos Tavares

RE / TALHOS


As meninas choravam e choravam
e eu punha colírio nos olhos.
Há muito perdi meu coração
entre um amor e uma rua.

O relógio está quebrado.
O emprego, difícil.

Ainda acabo num hospício,
ou em Faculdade de Letras.

O mundo não é só palavra.
O mundo é redondo rodando.
E os homens continuam quadrados.

O pai queria-me engenheiro,
depois vieram outros filhos,
e fiquei sendo o mais velho.

Não agüento mais essa morte.
Tenho mesmo é vontade de viver.
Um dia hei de ser um homem.




( Junho / 1979 )








POLUIÇÃO




CO      CO       CO      CO
           tosse            tosse            tosse
CO      CO       CO      CO
           tosse            tosse            tosse
CO      CO       CO      CO
           tosse            tosse            tosse
CO      CO       CO      CO


tosse CO
tosse CO
tosse CO
tóxico
monóxido
carbônico


ó
   t
bi   o


MARCOS TAVARES ( 16-01-1957, Vitória-ES) é autor de contos ( “ No Escuro, Armados ”, Ed. FCAA / Anima, 1987 ) e de poemas ( GEMAGEM, Ed. Flor & Cultura, 2005 ). Integrou o Grupo LETRA, que editava revista homônima. Coautor de livro (“ Uma, Duas, Três Histórias “ – UFES, 1989 ) considerado “ altamente recomendável “ pela FNLIJ. Publicou textos em : jornais do ES, revista IMÃ, coletâneas ( Poetas do ES, 34 Poetas Daqui Mesmo , Contos Capixabas , Letras Capixabas em Arte , entre outras ). Eleito em 2011, ocupa a Cátedra n º 15 da Academia Espírito-santense de Letras (AEL).

sábado, 10 de dezembro de 2011

REFLEXÃO

As verdades se camuflam
e não nos chegam nos abraços.

Jorge Elias Neto

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Fernando Achiamé

Alívio


É complicado ser solteirão
e encher um baú com poemas.
Cercado de mulher e filhos
é complicado fazer versos.
(Tudo implicado, mestre e irmão,
sempre serei neófito no mundo
esotérico dos teus poemas,
onde a morte não existe).


Ocultista, tudo revelaste, tudo,
enquanto nós, pobre mortais,
por dentro nos destruímos.
Só tu criaste outros eus
para te somares em mais versos,
e quieto te deixarem
a contemplar uma tabacaria,
beber em todas as tascas.
(Tua dor é nossa dor,
nossa alegria é tua também:
para sempre integras o futuro,
e o porquê somente tu sabes).


Sendo de ti meio homônimo,
ai quem me dera ser dos teus
heterônimos o mais olvidado.
(Em oblívio nos mudaste, e hoje
somos outros nomes teus,
pois te vejo em nós dissolvido,
para nosso recíproco alívio).

FERNANDO Antônio de Moraes ACHIAMÉ, Colatina (ES), 1950. Seguiu carreira na administração pública estadual e lecionou na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Historiador, pesquisador-associado do Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo – NEPLES/UFES e membro do Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo. Editou e organizou diversas obras sobre história capixaba. Tem artigos e poemas publicados em periódicos de Vitória e em diversos sites, a exemplo de www.tertuliacapixaba.com.br. Autor do Guia Preliminar do Arquivo Público Estadual (1981), Catálogo dos Bens Culturais Tombados no Estado do Espírito Santo (1991, em coautoria), O Espírito Santo na Era Vargas (1930-1937): elites políticas e reformismo autoritário (FGV, 2010), Esquadro e Compasso em Vitória: Álbum da Loja Maçônica União e Progresso (IHGES, 2010) e dos livros de poemas A Obra Incerta (Flor&Cultura, 2000) e Livro Novíssimo (Flor&Cultura, 2011).

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Máscara mortuária

Guardei meu último gesto.
Será um movimento
exato da mão
a cortar pelo talo
a palavra
definitiva.


Dirão as carpideiras:


Reparem
o riso e todos
esses dentes;
a frouxidão da boca
cansada de gargalhadas
e asneiras.


O cúmplice,
me encontrará sem palavras
e gelado
como a verdade.

Jorge Elias Neto

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Ángel González traduzido pelo poeta Jorge Elias Neto

O poeta Hilton Valeriano publicou em seu blog POESIA DIVERSA uma série do poeta ÀNGEL GONZALEZ que traduzi.

Vale ler este excelente poeta.

Abraço para todos,



Jorge Elias Neto



Link para leitura: http://www.poesiadiversidade.blogspot.com/

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Thelma Maria Azevedo - HOMENAGEM

Foto: Thelma Maria Azevedo ao lado do escritor capixaba Francisco Aurélio Ribeiro

Faleceu em Vitória uma visionária de 80 anos. Thelma Maria Azevedo,que organizou o primeiro site, um verdadeiro banco de dados para pesquisa e leitura, da poesia capixaba. Essa menina conseguiu rastrear nos últimos anos 2281 poetas em todos os cantos do Espirito Santo. De uma geração muito anterior a tecnologia, pacientemente, criou o site POETAS CAPIXABAS. Do mais desconhecido prosador que lavra a terra ao mais celebre poeta de nosso Estado poderá ser encontrado nesse site. Tenho certo que uma obra fundamental para pesquisadores futuros. Um beijo àquela que primeiro me recebeu, primeiro publicou um poema de minha autoria. Um beijo no coração. Site poetas capixabas: http://www.blogger.com/goog_496769118

sábado, 19 de novembro de 2011

René Char

RENÉ CHAR e a poética do combate
Carlos Alberto Shimote

Lutadores
O pão das estrelas me pareceu tenebroso e rijo no céu dos
homens, mas em suas mãos estreitas, li a luta dessas estrelas
convidando outras: emigrantes da ponte, sonhadoras ainda;
recolhi seu suor dourado, e por mim a terra parou de morrer.
René Char – Le Nu Perdu/1971

I – Um poeta de combate (cronologia 1907-1948)
Poeta, homem de letras, esteta, crítico e curador de artes, militante político, interlocutor de filósofos, amante da filosofia, pesquisador das linguagens visuais e verbais, interlocutor de pintores, amante e devoto da pintura, intelectual proteiforme e multifacetado. René Char é ainda um escritor quase desconhecido no Brasil: ele nasceu em 14 de junho de 1907, numa propriedade rural em Névons, Isle-sur-la-Sorgue, nos arredores de Avignon, na região da Provença, no sul da França. Poeta profundamente envolvido com a natureza da sua região natal, sobretudo com o rio Sorgue; referência importante em sua obra:
A conduta dos homens da minha infância tinha a aparência de um sorriso do céu dirigido à caridade terrestre; saudava-se o mal como se fosse uma rapaziada da noite. A passagem de um meteoro comovia. Apercebo-me de que a criança que fui, tão disposta a apaixonar-se como a ferir-se, teve muita sorte. Caminhei sobre o espelho de um rio cheio de anéis de cobra e danças de borboletas. Brinquei em pomares cuja velhice robusta dava frutos. Escondi-me nos juncais, guardados por criaturas fortes como carvalhose sensíveis como pássaros.
Este mundo asseado morreu sem deixar ossários. Ficaram apenas cepas calcinadas, superfícies errantes, pugilatos informes, e a água azul de um poço minúsculo guardado por aquele Amigo silencioso
A poesia de Char restringe-se, algumas vezes, à expressão mínima e às coisas mais banais da realidade, um átimo, um instante de luz, um clarão; iluminação repentina de uma beleza que se revela aos olhos do poeta em puro fulgor. A apreensão e percepção dessas coisas banais e quase ordinárias, transformadas ainda assim em poemas, aproxima Char de Hölderlin que, em seu romance Hipérion, declara justamente que “nada é tão pequeno e tão pouco que não se possa adadmirar”
Para Char, o poeta deve ser capaz de perceber o poético escondido na escuridão, mesmo porque para ele, o poético nada mais é do que uma iluminação, um instante de visão mágica em que a poesia se desvela e se mostra como uma eclosão luminosa. Para Char, compete ao poeta buscar no cotidiano a revelação da poesia, a qual surge para os espíritos menos cansados e mais vigilantes como uma espécie de epifania: o poeta – afirma ele num dos fragmentos de Partilha Formal – “deve manter o equilíbrio entre o mundo físico da vigília e o perigoso bem-estar do sono”, pois a “vitalidade do poeta não é a vitalidade do além mas um ponto diamantado atual de presenças transcendentes e de tempestades peregrinas.”

Être poète, c'est avoir de l'appétit pour um malaise dont la consommation, parmi les tourbillons de la totalité des choses existantes et pressenties, provoque, au moment de se clore, la felicité.

Ser poeta é ter o apetite de um mal-estar cuja consumação, entre os turbilhões da totalidade das coisas existentes e pressentidas, provoca, no momento da eclosão, a felicidade.

Para os interessados em ler mais sobre o poeta René Char basta acessar http://www.apropucsp.org.br/revista/rcc01_r12.htm

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Sua sombra que passa

                                   O tempo, meu amor,
                                               sempre se dilata
                                              e marca sua face.



O rio se adianta
em desandada
pressa,
e sua sombra,
esguia e distante,
é mais inquieta
que as águas.
Nas horas tardias
sua sombra
         permanece.
Mas tomba
o sol,
e resta apenas a palidez
de seu espanto.

Jorge Elias Neto

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Caê Guimarães - Crônica

LETRAS TORTAS PARA UM POETA MORTO

Caê Guimarães

As palavras doem, não? Por isso as manuseia com a santa obsessão pelo tempo certo, a melodia inusitada, as imagens que se alteram e os fonemas que se aliteram, a forma que embala o conteúdo até se tornar o próprio conteúdo. Elas giram no imenso liquidificador que as liquefaz. São tantas e tontas, soltas, tortas, espertas, ferozes e amenas. Tentam escapar pelos buracos da cabeça. E o que resta é domá-las, retorcê-las e moldá-las como se molda a água, que cabe em qualquer recipiente.
As palavras também causam fausto, correto? Há momentos em que o melhor é fugir, mas elas seguem você como moréias ágeis e traiçoeiras que se esgueiram por entre tudo que separa e ata seu pensamento ao mundo. Não adianta resistir. Você sabe disso como poucos, mas ainda assim há a náusea, a avalanche de frases, verbos e versos. Vez ou outra um romance inteiro surge enquanto dirige ou quando espera pacientemente ser atendido pelo gerente do banco. A coisa toda explode e não há como conter o que urge. Aí você corre a mão no bolso, saca uma caneta e um bloco. E escreve.
Sabe o que é poesia? É a tentativa nossa vã de todo dia de vencer a morte. É quando olhamos para esse Deus que nos joga na vida e nos saca dela às vezes repentinamente e falamos: “Escute aqui, seu velho doido, eu também posso criar mundos. A extensão do meu punho e dedos desenha códigos que contêm vida, tão definitiva e exata, tão efêmera e abstrata quanto a existência na qual você me atirou aleatoriamente sem me consultar. Ouviu?” Mas a resposta nunca vem. E você segue escrevendo.
Também te dão prazer as palavras, acertei? É indescritível a sensação de moldá-las. Nem um escritor como você consegue a definição exata. Penso que, de verdade, ninguém conseguiu até hoje. Porque há coisas que habitam o indizível. E não é apenas tormento e dor. O gozo, o êxtase, a maravilha de criar mundos com a linguagem é inexplicável. É como se você tomasse o lugar do tal velho doido e irresponsável. Uma personagem morre, a outra se esgueira pelas sombras, há as que se atiram nos braços uma da outra e as que dormem penduradas no teto. Há labirintos. E asas de cera para escapar deles. E há o sol, meridional, implacável e generoso, que dia após dia nasce e morre, desaparece e surge em outra arquitetura.
Siga em paz, Miguel Marvilla. Diga ao velho maluco aí de cima que se não tiver papel ou caneta à mão você não vai deixá-lo dormir. Por aqui, o Livrão segue sendo escrito. Mas o capítulo desse final de semana bem que poderia ter sido cortado.

Crônica escrita para o Jornal A GAZETA em homenagem ao grande poeta capixaba
Miguel Marvilla falecido em outubro de 2009

Caê Guimarães nasceu no Rio de Janeiro em 1970 e cresceu no Espírito Santo. Viveu por temporadas em Ouro Preto e Belo Horizonte. É poeta, cronista, escritor e jornalista. Desde o final dos anos 80 desenvolve pesquisas com a linguagem em verso e prosa. Participou da exposição Psicotrópicos, com o artista plástico Luciano Cardoso, publicou os livros Por Baixo da Pele Fria (poesia - Massao Ohno Editor, 1997), Entalhe Final (conto, Massao Ohno Editor, 1999), Quando o Dia Nasce Sujo (poesia, Secult, 2006), De Quando Minha Rua Tinha Borboletas (crônicas, Secult, 2010) além de poesias e contos em antologias, jornais literários e revistas de diversos locais do Brasil e exposições e recitais no Brasil e na França.
O autor também é cronista no jornal A Gazeta, escreve resenhas literárias na coluna Entrelinhas, do suplemento cultural Pensar, do mesmo jornal. Suas oficinas de texto e poesia abordam aspectos da mitologia, do estudo da linguagem e a interface da escrita com outras manifestações artísticas. Atualmente, Guimarães está escrevendo o romance Encontro Você no 8º Round, e está em estúdio para gravar o áudio-book A Aranha Minimalista. Ele escreve regularmente no  Site

domingo, 6 de novembro de 2011

Odysséas Elytis

Abro a minha boca e o mar se regozija
E leva as minhas palavras a suas escuras grutas
E às suas focas pequenas as murmura
Nas noites em que choram os tormentos do homem.


Abro as minhas veias e enrubram-se os meus sonhos
Transformam-se em arcos para os bairros dos meninos
E em lençóis para as raparigas que velam
Para ouvir às ocultas os prodígios do amor.


Aturde-me a madressilva e desço ao meu jardim
E enterro os cadáveres dos meus mortos secretos
E às estrelas traídas que eram suas
Corto o cordão dourado pra caírem no abismo


O ferro enferruja e eu castigo o seu século
Eu que já experimentei a dor de mil pontas
Com violetas e narcisos a nova
Faca vou preparar que convém aos Heróis.


Desnudo o meu peito e os ventos se desatam
E vão varrer as ruínas e as almas destruídas
Das espessas nuvens limpam a terra
Pra que surjam à luz os Prados encantados.

Tradução de Manuel Resende


Odysséas Elýtis (em grego: Οδυσσέας Ελύτης; Iráklio, 2 de Novembro de 1911 — Atenas, 18 de Março de 1996), foi um poeta grego.Nascido Odysséas Alepudélis (Οδυσσέας Αλεπουδέλης) na ilha de Creta, estudou Direito na Universidade de Atenas mas não se formou. Ele foi o último de seis filhos de Panagiótis Alepudélis e María Vrána, que se mudaram para Atenas quando Odysséas era pequeno. Em 1923, visitou a Itália, Suíça e Alemanha.Seu principal trabalho, escrito durante quatorze anos e publicado em 1959, é Axion Esti, um poema que tenta identificar os elementos vitais nos três mil anos de história e tradição da Grécia e onde imagens do sol e do mar misturam-se com a liturgia Ortodoxa e os elementos pagãos com o Cristão. Outros trabalhos incluem Ανοιχτά χαρτιά ("Anoichtá chartiá", ou seja, "Papéis abertos"), importante coletânea de ensaios sobre literatura.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Reflexão


Em que pese os malefícios para o corpo,
arrasto comigo a consciência
de minha insignificância.

 

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Pétala


A menina de beijo eriçado
lia rascunhos de coito,
sonhando pétalas.

A mocinha de peito afiado
fendia azulejos de quatro,
sonhando pétalas.

A mulher ao jeito do Diabo
sorvia desprezo no prato,
sonhando pétalas.

A anciã no leito, exilada,
morria sozinha no quarto.

Jorge Elias Neto

domingo, 16 de outubro de 2011

Marco Aqueiva

À BEIRA BEL
                                    

E uma onda com alguns destroços cai sobre mim.
Um toco de mastro envolto em fios de riquezas esmaecidas
                                                        e algas presumidas.
Ainda sóbria, bordada agora num casco de borco, uma insígnia.
Apagada para as grandes distâncias, não para as minhas pupilas,
valsa com as medusas a estrelinha-do-mar, sem pouso, decaída.
Com os búzios do fundo que me traz a navalha das marés,
os flancos fluidos da Beleza e a mão reflexa de um maestro.
Ouço teu torso nu e fotográfico agitar-se com as últimas notícias:
"A Carne Escassa dos Corais" e "A Morte Clínica dos Manguezais".


Cardumes de fatos chegam-te à boca descarnados e intemporais.
Teus olhos cheios de mares e sombras imergidas,
olhar pendente crescendo por entre as ondas pélvicas e dorsais.
Teus longos cabelos oscilando soltos e translúcidos sob a água.
Tua mão acenando para fora de teu palco prepara-me
um levantar das ondas em prodigiosas colunas.


Esta tua voz que, submersa, persigo ao nadar-me em angústia.
Estas tuas mãos que, adivinhadas, procuro ao avanço da tempestade.
E meus olhos em toda sua insuficiência atlânticos
em teus seios de maré grande, cheios, espumando !


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Mas um manto de ondas atira-me aos pés o corpo do Desejo
totalmente desfigurado, sem vida, regressando ...








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MARCO AQUEIVA, poeta, professor de literatura no ensino superior, autor de NESTE EMBRULHO DE NÓS (Scortecci, 2005), vencedor do III Prêmio Literário Livraria Asabeça – categoria Poesias, e de SÓIS, OUTONO, SOU? (Dulcineia Catadora, 2009), é colaborador de publicações impressas e na web.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Apocalipse verde


O mar afoga as colinas
onde até anteontem os passos
deixavam marcas de certezas.
Os três ou quatro versos
               que eu deixei
voltaram ao sal.
Já não restam vogais,
somente rastros
na rocha dos tempos.
Rezar não adianta;
na cruz – puleiro dos derradeiros papagaios –,
os musgos viçosos
                sobrevivem.
O VERBO partiu
e levou consigo
o pecado.
O mundo suspira aliviado
o retorno à solidão.

Jorge Elias Neto

terça-feira, 27 de setembro de 2011

A NECESSIDADE DA POESIA - José Augusto Carvalho


Quem escreve – ainda que um simples bilhete – tenta afastar-se do falar cotidiano, tenta usar uma linguagem diferente da que está habituado a usar. E escrever poemas é distanciar-se ainda mais da fala do dia a dia. É trabalhar a língua, é subverter a sintaxe, é falar à alma. Por isso, as primeiras manifestações literárias de um povo costumam ser em versos. Quando não havia escrita, as histórias se contavam em poemas, porque as rimas ajudavam no processo de memorização e facilitavam a transmissão da cultura, de geração a geração. A perpetuação da ficção da comunidade ágrafa e da sua cultura – essa terá sido a primeira função da poesia.
Penso nisso agora, ao reler o artigo que (pasmem!), um poeta escreveu no caderno Mais!, de 26-01-97, na Folha de São Paulo. Refiro-me ao artigo “A necessidade atual da inútil poesia”, de Régis Bonvicino, em que ele diz, entre outras coisas:
“A poesia não tem, propriamente, uma função. Ela é inútil (...). Sua inutilidade atravessa regimes políticos diversos, bem como Economias (...). Talvez a poesia tenha uma função no quadro das artes e da cultura: a de ser manifestação inútil (“Teoria do inutensílio”, de Paulo Leminski), sem presença no dia a dia das pessoas, o que lhe confere liberdade e arbitrariedade. (...). A poesia está – hoje – dissociada da evolução das línguas. Não tem, assim, nem mesmo sua antiga função de estimular uma língua (sic!) – papel desempenhado pela televisão, pelo rádio, pelos jornais e um pouco pelo cinema. Há um esvaziamento da poesia neste final de século e de milênio.”
E por aí vai. A citação é longa, mas vale para mostrar que o primeiro grande equívoco do articulista foi confundir a poesia (o conteúdo) com o poema (a forma). A poesia existe em toda parte, em todo lugar, em todos os momentos. Compete ao poeta captá-la e transpô-la para o livro, ou para o filme, ou para a televisão, ou para a música, ou para a dança, ou para o rádio... O poeta é o que vê poesia onde o comum dos mortais não vê nada, além do trivial. Baudelaire viu-a no escatológico; Augusto dos Anjos, num escarro de sangue; Castro Alves, na ânsia de liberdade e de igualdade entre os homens. Gérard de Nerval viu na borboleta um traço de união entre a flor e o passarinho, e a borboleta ficou mais bonita para quem passou a ver nela isso também. Como seria a História do Brasil sem os poemas de Castro Alves, contra a escravidão? Como seria a História do Mundo sem os versos da “Chanson d’automne”, de Paulo Verlaine, que serviram de código para informar a resistência sobre a invasão aliada, na II Guerra Mundial? Ou sem os acordes iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven, que, casualmente, reproduzem a letra V de Vitória, segundo o código Morse (três notas breves e uma longa) e que, por isso, também serviram de aviso aos aliados?
O poeta vê o que nós não vemos, e revela-nos a beleza que existe no mundo que nos cerca, tornando-o melhor e mais habitável. Essa beleza escondida é a poesia revelada. Poesia é a visão bonita que Orestes Barbosa, na canção Chão de estrelas, nos transmite da lua que fura o telhado de zinco do barraco pobre e salpica de estrelas o chão que a morena pisa distraidamente. Poesia é a beleza que Vittorio de Sicca revela na cena final do seu filme Ladrões de bicicleta, ao mostrar o rosto endurecido da criança, subitamente transformada em adulto, a conduzir pela mão o pai desesperado e envergonhado por ter sido flagrado pela multidão quando roubava uma bicicleta para trabalhar. Poesia é o drama, mostrado pela televisão, em novembro de 1985, da menininha colombiana Omaira Sanchez, de apenas 13 anos, vítima da erupção do Nevado del Ruiz, ao morrer de hipotermia, soterrada num buraco cheio de lama e de pedras, acenando com esperança de vida para as câmeras que a focalizavam para o mundo inteiro.
A poesia é necessária, porque nos revela, como as lentes dos óculos de quem tem problemas visuais, um mundo de maravilhas que não saberíamos ver sem ela. Além disso, escrever poemas, vale dizer, tentar revelar a poesia do mundo aos outros, é uma forma também de terapia ocupacional, hoje adotada por psicólogos, por psiquiatras e por todos os que se dedicam aos ortopedismos da mente humana. E, posto que não tivesse função pragmática, a poesia seria necessária, porque não haveria sentido nenhum numa vida que se fechasse ao Belo.
Que me desculpe o pobre poeta articulista Régis Bonvicino, mas a poesia é tão importante e necessária que os homens se matam, a si e aos outros, quando não conseguem vê-la ou descobri-la.
Como eu.

José Augusto Carvalho: Escritor, tradutor, jornalista e professor universitário, José Augusto Carvalho é mineiro de nascimento e capixaba por adoção. Um dos principais lingüistas do Brasil.Bacharel e licenciado em Letras Neolatinas, também é mestre em Lingüística pela Unicamp e doutor em Letras pela USP. Atua principalmente como professor, mas traduz desde a década de 1970 textos do francês, inglês e italiano. Possui uma extensa obra publicada tendo também realizado traduções para as principais editoras do País.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Sonho no absurdo

Ilustração: Felipe Stefani

                                                 Não tirem do poeta a visão;
                                                 podem condená-lo à loucura
                                                do mergulho no poema sem fim.

I

O poeta sabe a textura exata do sonho.


E por perceber que os números são símbolos
que poderiam arrastar seu povo,
foi o primeiro a se equilibrar nos destroços.


Não azulava as dúvidas com preces
e entendia a sujeira como um vício da realidade.


Caminhando em silêncio,
observou que a ausência de espaço
não havia poupado nem mesmo as sombras.


Homens desencontrados
cruzaram o limite da incerteza
e bradavam:


– Não pedi esse conflito.
Mas, na dúvida,
deixo a arma engatilhada!


Nunca foi do poeta o primeiro momento...

II


Aos primeiros que o ouviram disse:
– Se abuso daqui à esquina de minha casa,
perco o controle do dia.


– A vida é ritual de pontes.
Vejo triste que, entre o dito e o pensado,
ficou uma ponte tombada.


– Hoje massacraram nossas verdades,
e enxergamos o abismo.


Choraram juntos a mais temida das mortes.


III


O poeta sente o absurdo do tempo humano.


O homem aquietará.
E juntos, todos os ponteiros
deixarão de ter sentido.


É do homem buscar refúgio nos dias.

IV

Nos escombros,
na esquina antes sem luz,
sentaram as crianças.


Diante delas
o poeta circundou com o dedo
seu corpo na areia.


Com um salto
surpreendeu-as com a facilidade
que superou o limite de sua prisão.


O poeta percebe o momento exato do nascimento do sonho.


Jorge Elias Neto
(Rascunhos do absurdo - 2010)

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Mahmoud Darwich


Carteira de identidade



              Mahmoud Darwich


Registra-me!
sou árabe
número de minha identidade é cinqüenta mil
tenho oito filhos
e o nono... virá logo depois do verão!
vais te irritar por acaso?
Registra-me!
sou árabe
trabalho com meus companheiros de luta
em uma pedreira
tenho oito filhos
arranco pedras
o pão, as roupas, os cadernos
e não venho mendigar em tua porta
e não me dobro
diante das lajes de teu umbral
vais te irritar por acaso?


Registra-me!
sou árabe
meu nome é muito comum
e sou paciente
em um país que ferve de cólera
minhas raízes...
fixadas antes do nascimento dos tempos
antes da eclosão dos séculos
antes dos ciprestes e oliveiras
antes do crescimento vegetal
meu pai... da família do arado
e não dos senhores do Nujub¹
e meu avô era camponês
sem árvore genealógica
minha casa
uma cabana de guarda
de canas e ramagens
satisfeito com minha condição
meu nome é muito comum


Registra-me
sou árabe
sou árabe
cabelos... negros
olhos... castanhos
sinais particulares
um kuffiah² e uma faixa na cabeça
as palmas ásperas como rochas
arranharam as mãos que estreitam
e amo acima de tudo
o azeite de oliva e o tomilho
meu endereço
sou de um povoado perdido... esquecido
de ruas sem nome
e todos os seus homens... no campo e na pedreira
amam o comunismo
vais te irritar por acaso?


Registra-me
sou árabe
tu me despojaste dos vinhedos de meus antepassados
e da terra que cultivava
com meus filhos
e não os deixastes
nem a nossos descendentes
mais que estes seixos
que nosso governo tomará também
como se diz
vamos!
escreve
bem no alto da primeira página
que não odeio os homens
que eu não agrido ninguém
mas... se me esfomeiam
como a carne de quem me despoja
e cuidado... cuida-te
de minha fome
e minha cólera.


¹ Célebre tribo da Arábia
² Lenço com desenhos quadriculados, usado para cobrir a cabeça e
que tornou-se símbolo nacional palestino pela liberdade e independência.
Originariamente, esse lenço é usado pelos camponeses para
protegerem a cabeça durante o trabalho no campo.



terça-feira, 13 de setembro de 2011

CIORAN E A ARTE DA PROVOCAÇÃO – por Pedro Maciel

Filósofo do tédio traça perfis de escritores como Beckett e Borges e se revela a si mesmo ao desvendar seus universos literários


Pedro Maciel

O tédio alimenta o pessimismo. Segundo Cioran “o pessimista deve inventar para si mesmo, a cada dia, outras razões para existir: é uma vítima do sentido da vida”. Entedia-se diante da vida aquele que busca revelar o tempo. “Entediar-se é mascar tempo”. A experiência do tédio nos leva a perambular através do tempo exasperado. A vida só é possível porque não temos consciência dos momentos que passam.
E. M. Cioran (1911-1995), o filósofo do tédio e do êxtase, mestre da desesperação, apresenta em “Exercícios de Admiração”, ensaios e perfis de escritores, filósofos e poetas. As divagações são “exercícios de aprofundamento do conhecimento de si”, um auto-retrato, como no ensaio dedicado a Michaux: “Não tendo nem a sorte nem o azar de se fixar no absoluto, se inventa abismos, suscita sempre novos, mergulha neles e os descreve.“
E prossegue: “Assim conseguiu, com suas inquietações metafísicas, com suas inquietações simplesmente, permanecer _ pela obsessão do conhecimento _ exterior a si mesmo. Enquanto nossas contradições e nossas incompatibilidades nos escravizam e nos paralisam com o tempo, ele conseguiu se tornar senhor das suas, sem escorregar para a sabedoria, sem se afundar nela."
Cioran herdou a descrença de Nietzsche e a forma de narrar de La Rochefoucauld e Pascal, inspirou-se nos filósofos místicos e foi guiado pelos poetas: “Embora freqüentasse os místicos, no meu foro íntimo estive sempre do lado do demônio: não podendo me igualar a ele pela força, tentei ser equivalente ao menos pela insolência, pela aspereza, pelo arbítrio e pelo capricho.”
Em “Exercícios de Admiração”, o autor de aforismos, silogismos e breviários, desvenda o universo literário de Samuel Beckett, autor de Malone Morre: “Muitas de suas páginas me soam como um monólogo após o fim de algum período cósmico. Sensação de entrar num universo póstumo, em alguma geografia imaginada por um demônio, livre de tudo, até mesmo de sua maldição”. Uma das falas do protagonista Malone sintetiza o pensamento de Beckett: “O tempo que temos para passar na terra não é tão longo para que o utilizemos em outra coisa além de nós mesmos”.
Já no perfil de Jorge Luis Borges, Cioran descreve o autor argentino como um intelectual sem pátria, um aventureiro, um “monstro magnífico e condenado”, alguém que poderia “tornar-se um símbolo de uma humanidade sem dogmas nem sistemas e, se existe uma utopia que subscreveria de bom grado, seria aquela em que cada um o tomasse como o modelo, um dos espíritos menos pesados que já existiram, o último dos delicados”.
Há outros ensaios, exercícios, evocações que ajudam a traçar o percurso existencial de Cioran. O filósofo retrata o seu ídolo de juventude, Otto Weinninger, analisa a obra de Joseph de Maistre, o reacionário que defendia a Inquisição, relembra a amizade com Benjamin Fiondane, o judeu romeno discípulo de Léon Chestov, entre outros retratos literários.
Cioran revela-se por inteiro através dos retratos dos seus interlocutores. O filósofo se revela ao desvendar os outros. Segundo Saint-Beuve, o portrait littéraire é uma forma utilizada “para produzir nossos próprios sentimentos sobre o mundo e sobre a vida, para exalar com subterfúgio uma certa poesia oculta.”
A arte da provocação de Cioran encontra-se também em Baudelaire, poeta da “franqueza absoluta”, dos Fusées e de Meu coração desnudado: “O que consideramos verdadeiro devemos dizê-lo e dizê-lo corajosamente. Gostaria de descobrir, mesmo se me custasse caro, uma verdade que chocasse todo o gênero humano. Eu a diria à queima-roupa”.



‘Escrevo para me aliviar’

Só tenho vontade de escrever num estado explosivo, na excitação ou na crispação, num estupor transformado em frenesi, num clima de ajuste de contas em que as invectivas substituem as bofetadas e os golpes. (...) Escrevo para não passar ao ato, para evitar uma crise. A expressão é alívio, desforra indireta daquele que não consegue digerir uma vergonha e que se revolta em palavras contra os seus semelhantes e contra si mesmo. A indignação é menos um gesto moral que literário, é mesmo a mola da inspiração. E a sabedoria? É justamente o oposto. O sábio em nós arruina todos os nossos élans, é o sabotador que nos enfraquece e nos paralisa, que espreita em nós o louco para dominá-lo e comprometê-lo, para desonrá-lo. A inspiração? Um desequilíbrio súbito, volúpia inominável de se afirmar ou de se destruir. Não escrevi uma única linha na minha temperatura normal. (...) Escrever é uma provocação, uma visão infelizmente falsa da realidade, que nos coloca acima do que existe e do que nos parece existir. Competir com Deus, ultrapassá-lo mesmo apenas pela força da linguagem, esta é a proeza do escritor, espécime ambíguo, dilacerado e enfatuado que, livre da sua condição natural, se entregou a uma vertigem magnífica, sempre desconcertante, algumas vezes odiosa. Nada mais miserável do que a palavra, e no entanto, é através dela que atingimos sensações de felicidade, uma dilatação última em que estamos completamente sós, sem o menor sentimento de opressão. O supremo alcançado pelo vocábulo, pelo próprio símbolo da fragilidade! Pode-se alcançá-lo também, curiosamente, através da ironia, com a condição de que esta, levando ao extremo sua obra de demolição, cause arrepios de um deus às avessas. As palavras como agente de um êxtase invertido... Tudo o que é realmente intenso participa do paraíso e do inferno, com a diferença de que o primeiro só podemos entrevê-lo, enquanto o segundo temos a sorte de percebê-lo e, mais ainda, de senti-lo. Existe uma vantagem ainda mais notável de que o escritor tem o monopólio: a de se livrar de seus perigos. Sem a faculdade de encher as páginas me pergunto o que eu viria a ser. Escrever é desfazer-se de seus remorsos e rancores, vomitar seus segredos. O escritor é um desequilibrado que utiliza essas ficções que são as palavras para se curar. Quantas angústias, quantas crises sinistras venci graças a esses remédios insubstanciais!

(Confissão Resumida, páginas 123 e 124; “Exercícios de Admiração”, de E. M. Cioran – Editora ROCCO)


(Publicado no caderno "Idéias/Livros", Jornal do Brasil)


Pedro Maciel é autor dos romances “Previsões de um cego”, (ed. LeYa 2011), “Retornar com os pássaros”, (ed. LeYa 2010),“Como deixei de ser Deus”, (ed. Topbooks 2009) e “A hora dos Náufragos”, (ed. Bertrand Brasil 2006).





sábado, 3 de setembro de 2011

Obliquo

Cada qual tem seu Vesúvio,
seu desterro,
e sua gleba nas nuvens...

Jorge Elias Neto

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Cioran - História e Utopia

"No ponto em que as coisas se encontram, só merecem interesse as questões de estratégia e de metafísica, aquelas que nos fixam na história e as que nos afastam dela: a atualidade e o absoluto, os jornais e os Evangelhos...
Vislumbro o dia em que só leremos telegramas e orações. Fato notável: quanto mais o imediato nos absorve, mais sentimos necessidade de tomar a direção oposta, de forma que vivemos, no interior do mesmo instante, dentro e fora do mundo.
Da mesma maneira, ante o desfile dos impérios, só nos resta buscar um meio-termo entre o ricto e a serenidade."

1957

Cioran E M. História e utopia; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Àngel González

[ Para que yo me llame Ángel González]

Para que yo me llame Angel González,
para que mi ser pese sobre el suelo,
fue necesario um ancho espacio
y um largo tiempo:
hombres de todo mar y toda tierra,
fértiles vientres de mujer, y cuerpos
y más cuerpos, fundiéndose incesantes
em outro cuerpo nuevo.
Solstícios y equinoccios alumbraron
com su cambiante luz, su vario cielo,
el viaje milenario de mi carne
trepando por los siglos y los huesos.
De su pasaje lento y doloroso
de su huida hasta el fin, sobreviviendo
naufrágios, aferrándose
al último suspiro de los muertos,
yo no soy más que el resultado, el fruto,
Lo que queda, podrido, entre los restos;
esto que veis aqui,
tan sólo esto:
um escombro tenaz, que se resiste
a su ruína, que lucha contra el viento,
que avanza por caminos que no llevan
a ningún sítio. El êxito
de todos los fracasos. La enloquecida
fuerza del desaliento ...


Eso no es nada

Si tuviésemos la fuerza suficiente
para apretar como es debido um trozo de madera,
sólo nos quedaria entre las manos
um poco de tierra.
Y si tuviésemos más fuerza todavía
para presionar com toda la dureza
esa tierra, sólo nos quedaría
entre lãs manos um poco de agua.
Y si fuese posible aún
oprimir el agua,
ya no nos quedaría entre las manos
nada.


Cumpleaños

Yo lo noto: cómo me voy volviendo
menos cierto, confuso,
disolviéndome en el aire
cotidiano, burdo
jirón de mí, deshilachado
y roto por los puños
yo comprendo: he vivido
un año más, y eso es muy duro.
¡mover el corazón todos los días
casi cien veces por minuto!

Para vivir un año es necesario
morirse muchas veces mucho.


El derrotado

Atrás quedaron los escombros:
humeantes pedazos de tu casa,
veranos incendiados, sangre seca
sobre la que se ceba -último buitre-
el viento.

Tú emprendes viaje hacia adelante, hacia
el tiempo bien llamado porvenir.
Porque ninguna tierra
posees,
porque ninguna patria
es ni será jamás la tuya,
porque en ningún país
puede arraigar tu corazón deshabitado.

Nunca -y es tan sencillo-
podrás abrir una cancela
y decir, nada más: «buen día,
madre».
Aunque efectivamente el día sea bueno,
haya trigo en las eras
y los árboles
extiendan hacia ti sus fatigadas
ramas, ofreciéndote
frutos o sombra para que descanses.


Otro tiempo vendrá distinto a éste...

Otro tiempo vendrá distinto a éste.
Y alguien dirá:
«Hablaste mal. Debiste haber contado
otras historias:
violines estirándose indolentes
en una noche densa de perfumes,
bellas palabras calificativas
para expresar amor ilimitado,
amor al fin sobre las cosas
todas.»
Pero hoy,
cuando es la luz del alba
como la espuma sucia
de un día anticipadamente inútil,
estoy aquí,
insomne, fatigado, velando
mis armas derrotadas,
y canto
todo lo que perdí: por lo que muero.


Son las gaviotas, amor

Son las gaviotas, amor.
Las lentas, altas gaviotas.
Mar de invierno. El agua gris
mancha de frío las rocas.
Tus piernas, tus dulces piernas,
enternecen a las olas.
Un cielo sucio se vuelca
sobre el mar. El viento borra
el perfil de las colinas
de arena. Las tediosas
charcas de sal y de frío
copian tu luz y tu sombra.
Algo gritan, en lo alto,
que tú no escuchas, absorta.
Son las gaviotas, amor.
Las lentas, altas gaviotas.

González À. Antologia poética; – Madrid: Alianza Editorial, terceira reimpressão, 2008.

domingo, 10 de julho de 2011

Emil Cioran - Breviário de decomposição (parte 1)


“ O plural implícito de “se” e o plural confessado do “nós” constituem o refúgio confortável da existência falsa. Só o poeta assume a responsabilidade do “eu”, só ele fala em seu próprio nome, só ele tem o direito de fazê-lo. A poesia se degrada quando torna-se permeável à profecia ou à doutrina: a “missão” sufoca o canto, a idéia entrava o vôo. O lado “generoso” de Shelley torna caduca a maior parte de sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca “serviu” para nada.
O triunfo da autenticidade tem seu acabamento na atividade filosófica, esta complacência no “se”, e na atividade profética (religiosa, moral ou política), esta apoteose do “nós”. A definição é a mentira do espírito abstrato; a fórmula inspirada, a mentira do espírito militante: uma definição encontra-se sempre na origem de um templo; uma fórmula reúne inelutavelmente os fiéis. Assim começam todos os ensinamentos.
Como não se voltar então para a poesia? Ela tem – como a vida – a desculpa de não provar nada.”

“ Escrever seria um ato insípido e supérfluo se pudéssemos chorar à vontade, e imitar as crianças e as mulheres tomadas pelo furor... Na matéria de que somos moldados, em sua mais profunda impureza, encontra-se um princípio de amargura que só as lágrimas suavizam. Se cada vez que os desgostos nos assaltam tivéssemos a possibilidade de nos livrar deles pelo pranto, as doenças vagas e a poesia desapareceriam. Mas uma reticência inata, agravada pela educação, ou um funcionamento defeituoso das glândulas lacrimais, condena-nos ao martírio dos olhos secos. Aliás, as tempestades de pragas, a automaceração e as unhas cravadas na carne, com as consolações de um espetáculo de sangue, não figuram mas entre nossos procedimentos terapêuticos."

O EQUIVOCO DO GÊNIO

“Toda inspiração procede de uma faculdade de exagero: o lirismo – e todo o mundo da metáfora – seria uma excitação lamentável sem esse ardor que incha as palavras até fazê-las estourar. Quando os elementos ou as dimensões do cosmo parecem demasiado reduzidos para servir de termos de comparação a nossos estados, a poesia só espera – para superar sua fase de virtualidade e de iminência – um pouco de claridade nas emoções que a prefiguram e a fazem nascer. Não há verdadeira inspiração que não surja da anomalia de uma alma mais vasta que o mundo ... No incêndio verbal de Shakespeare e de um Shelley, sentimos a cinza das palavras, resíduo e traço da impossível demiurgia. Os vocábulos se incrustam uns nos outros, como se nenhum pudesse alcançar o equivalente da dilatação interior; é a hérnia da imagem, a ruptura transcendente das pobres palavras, nascidas do uso cotidiano e alçadas milagrosamente às alturas do coração.
As verdades da beleza nutrem-se de exageros que, ante um pouco de análise, revelam-se monstruosos e ridículos. A poesia: divagação cosmogônica do vocabulário ... Já se combinou mais eficazmente o charlatanismo e o êxtase? A mentira, fonte das lágrimas!, esta é a impostura do gênio e o segredo da arte. Ninharias infladas até o céu; o inverossímil, gerador de universos! É que em todo gênio coexiste um marselhês e um Deus.”

Cioran E M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011.





quarta-feira, 15 de junho de 2011

PENHOR

                       Para Gabriel, meu pai


Dezessete anos...
Essa distância
não se mede pelo quanto de terra
cobre teus restos,
teus sonhos...


Tua sombra não tem o gosto
que meu paladar deseja.
Não lambi o granito preto
de teu túmulo;
mas sinto o gosto de cera,
que não me satisfaz – pois não
é teu gosto.
Por isso não te visito.
Meus filhos não te visitam.
Se eu morresse hoje,
e decidisse pelas cinzas,
ficarias perdido na última
alameda, à esquerda da figueira.


Nem teu relógio de ouro me serve.
Fosse de couro a pulseira,
eu a lamberia,
e ficaria refestelado,
com o sal de teu suor.


Jorge Elias Neto

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Sonolento


Quisera eu poder contar-te tudo, lúdico luar...
É que pálpebras me pesam de mais um dia...
Mas bem sei que, entre amantes, basta um sutil entreolhar,
para retirar dos guardados a palavra fugidia.


Mesmo assim, me esquivo dos teus olhos, cândida Lua...
É que as verdades fogem mais fácil de um olhar cansado...
Sei, entretanto, que é inútil querer poupar-te do que
                                                         [se insinua.
Em cada gesto tenso de meus dedos crispados.

Queria deitar-me em teu colo, luar idílico.
Apagar de minha mente esses pensamentos nômades;
e num ressonar de anjo te dizer de meu medo.


Só que a bruta vida que me faz ridículo
fez-me preso a esse chão de homens distantes.
Parto... outra vez sem ti... para o sono...
                                         [com meus segredos...

Jorge Elias Neto
(Verdes versos - ed. Flor&cultura - 2007)

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Mesmas palavras

Muitas vezes, uma avaliação mais simplória, feita sobre a palavra, nos faz pensar ser impossível algo de novo – todas as palavras já foram ditas – salvo raros neologismos, por vezes até brilhantes. Posso assim desistir e encerrar por aqui este texto. Mas isso é um sofisma. Isso só seria verdade se considerássemos a palavra existindo sem o homem para nortear seus caminhos e sentidos.
Cada boca sabe de sua palavra. A palavra esta sujeita a toda a mecânica respiratória, ao vibrar das cordas vocais; ao segundo sentido do canto dos lábios. Todo invólucro humano se expressa através da palavra ofertada, da palavra jogada, da palavra beijada, da palavra interrompida ao meio (mas mesmo assim entendida), por conta de um arrependimento tardio.
Uma mesma palavra pode ter seu sentido alterado na dependência se proferida revestida pelo vermelho do entardecer do verão ou no calor entre dois olhos aferventados de ódio.
A palavra goza do paradoxo de ser atemporal e, ao mesmo tempo, ser sujeita às tempestades do instante. A palavra pode ser verdade, pode ser mentira; mas geralmente é revestida de sedução, podendo assim ser classificada como meia-verdade.
Já a palavra, quando escrita, fica a mercê da capacidade de quem a garimpa, de quem a transfigura em arte: a palavra bem escrita é a própria arte.
Pois bem, eu saúdo as palavras.
Palavras ... Razão pela qual venho degladiando com minhas limitações, tentando elaborar algo que realmente me faça sentido.

Jorge Elias Neto

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Silêncio


É necessário buscar espaço para o silêncio — ocupar-se dele.
Até que nada mais sobre solucionável pela palavra.

Jorge Elias Neto

sábado, 21 de maio de 2011

Mme du Deffand - moralista francesa (séc. XVIII)


" [...]
A mim me cabe falar-vos deste mundo de cá. Em primeiro lugar digo-vos que ele é detestável, abominável etc. Há pessoas virtuosas, ao menos que podem parece-lo, enquanto não atacamos sua paixão dominante, que é de ordinário, naquelas pessoas, o amor da glória e da reputação. Embriagadas com elogios, muitas vezes parecem modestas; mas os cuidados que tomam para consegui-los denunciam o motivo e deixam entrever a vaidade e o orgulho. Eis o retrato da maioria das pessoas de bem. Nas outras são o interesse, a inveja, o ciúme, a crueldade, a maldade, a perfídia. Não há uma só pessoa a quem se possa confiar as aflições sem lhe proporcionar uma alegria maligna e sem se aviltar a seus olhos. Falar de prazeres e êxitos? Isso faz nascer o ódio. Praticais o bem? O reconhecimento pesa, e encontram-se razões para se eximir dele. Cometeis algumas faltas?
Elas jamais se apagam; nada pode repara-las. Vedes pessoas inteligentes? Só estão ocupadas com elas mesmas; desejam ofuscar-vos e não se darão ao trabalho de vos instruir. Tendes negócio com espíritos mesquinhos? Eles estão atrapalhados com o próprio papel, manifestarão descontentamento com sua esterilidade e sua pouca inteligência. Na falta de espírito encontram-se sentimentos? Alguns, nem sinceros, nem constantes. A amizade é uma quimera: só reconhecem o amor; e que amor! Mas basta, não quero levar mais longe minhas reflexões: elas são o produto da insônia; reconheço que um sonho seria preferível."

Mme du Deffand - carta endereçada à Walpole - 1-04-1769


Marie Anne de Vichy-Chamrond, marquise du Deffand (1697– 23 September 1780)