domingo, 29 de agosto de 2010

Luz e sombra, uma questão semântica?


Luz e sombra, uma questão semântica?




Hoje sei que também a sombra se recolhe.

Resfria o solo

para o corpo que tomba,

no interminável instante

do anônimo suspiro.

O baque expande

as possibilidades da sombra.

Que se debate,

e rompe, deparando

num deslumbramento, com o Sol.

O paradoxo da despedida.

Parte se dispersa.

Parte se integra aos mortos.

A sombra debruçada

na mansarda da eternidade.

(Os ossos da baleia)

quarta-feira, 25 de agosto de 2010




Na paisagem doméstica



E se dissesse: fica ...
Varreríamos de vez nossas obscenidades,
ou deixaríamos estendido
sob o chão de casa
esse falso tapete de culpas?
Vê essas garrafas enfileiradas?
Os silêncios que rasguei das paredes,
colei nos gargalos em que me perdi.
Na profundeza úmida,
resta, olvidado, seu nome.

(Os ossos da baleia



domingo, 22 de agosto de 2010

Mário Faustino


O HOMEM E SUA HORA


Et in saecula saeculorum: mas
Que século, este século - que ano
Mais-que-bissexto, este -
Ai, estações -
Esta estação não é das chuvas, quando
Os frutos se preparam, nem das secas,
Quando os pomos preclaros se oferecem.
(Nem podemos chamá-la primavera,
Verão, outono, inverno, coisas que
Profundamente, Herói, desconhecemos...)
Esta é outra estação, é quando os frutos
Apodrecem e com eles quem os come.
Eis a Quinta estação, quando um mês tomba,
O décimo-terceiro, o Mais-Que-Agosto,
Como este dia é mais que Sexta-feira
E a Hora mais que Sexta e roxa.
Aqui,
Sábia sombra de João, fumo sacro de Febo,
Venho a Delfos e Patmos consultar-vos,
Vós que sabeis que conjunções de agouros
E astros forma esta Hora, que soturnos
Vôos de asas pressagas este instante.
Nox ruit, Aenea, tudo se acumula
Contra nós, no horizonte. As velas que ontem
Acendemos ou brancas enfunamos
O vento apaga e empurra para o abismo.
As cidades que erguemos, nós e nossos
Serenos ascendentes se arruinam
(Muros que escravos levantamos, campos
Ubi Troja - Nossa Tróia, Tróia! - fruit ...)
E no céu onde a noite rui só vemos
Pálidos anjos, livros e balanças,
Candelabros, cavalos, crocodilos
Vomitando tranqüilos cogumelos
Róseos de sangue e lava - bestas, bestas
Aladas pairam, à hora de o futuro
Fazer-se flama, e a nuvem derreter-se
Em cinza presente.- Vê, em torno
De mesas tortas jogam meus sonâmbulos,
Meus líderes, meus deuses. Como ocultam
As cartas limpas, como atiram negros
Naipes no vale glauco de meu sonho!
Erza, trazem mais putas para Elêusis
E hoje Amatonte é todo o vasto mundo:
Prostitutas sagradas! - Se esta carne
Demais sólida pudesse dissolver-se,
Derreter-se e em rocio transformar-se!
Príncipe louro, oh náusea, proibição
Do mais ilustre amor, oh permissão,
Oh propaganda santa do mais rude!
L'amor che move il sole e l'altre stelle
Aqui parou, em ponto morto. Nem
Cometas hoje aciona, ou gestos de
Ternura move rumo aos eixos trêmulos
De seres enlaçados; nem desperta
Encantados centauros de seu sono.
Amor represo em ritos e remorsos,
Eros defunto e desalado. Eros!
(...)
Aqui devo deixar-te, Herói. Retiro-me
Para uma ilha, Chipre, onde nascido
Outrora fui, onde erguerei não uma
Turris ebúrnea, torre inversa, torre
Subterrânea, defesa contra as pombas
Cobálticas, columbas de outro Espírito -
Torre abolida! No marfim que leves
Lunares unicórnios cumularam
Em cemitérios amorosos, eu,
Pigmalion, talharei a nova estátua:
Estátua de marfim, cândida estátua,
Mulher primeira, fêmea de ar, de terra,
De água, de fogo - Hephaistos, sobe, ajuda-me
A compor essa estátua; fácil corpo
Difícil Face, Santa Face - falta
O sopro acendedor de tua esperta
Inspiração... à noite, enquanto durmo,
128 Cava-lhe, oh coxo, o gesto e o peito, pede
À deusa tua esposa dê-lhe quantos
Encantos pendem de seu cinto. Phanos,
Phanos, imagens de beleza, chagas
Na memória dos homens... pede a Hermes
Idéias que asas gerem nos tendões
Das palavras certeiras - logos, logos
Carregando de força os sons vazios -
Dá-lhe tu mesmo, Fabro, o mel, a voz
Densa, eficaz, dourada, melopaico
Néctar de sete cordas, musical
Pandora de salvar, não de perder...
Orfeu retesa a lira e solta o pássaro.
Pronta esta estátua, agora, os deuses e eu
Miramos o milagre: branca estátua
De leite, gala, Galatéia, límpida
Contrafação de canto e eternidade ...
(...)
Vai, estátua, levar ao dicionário
A paz entre as palavras conflagradas.
Ensina cada infante a discursar
Exata, ardente, claramente: nomes
Em paz com suas coisas, verbos em
Paz com o baile das coisas, oradores
Em paz com seus ouvintes, alvas páginas
Em paz com os planos atros do universo -
(...)
Vênus fará de teu marfim fecunda
Carne que tomarei por fêmea, carne
Feita de verbo, cara carne, mãe
de Paphos, filho nosso, que outra ilha
Fundará, consagrada a tua música,
Teu pensamento, paisagem tua.
Ilha sonora e redolente, cheia
De pios templos, cujos sacerdotes
Repetirão a cada aurora (hrodo,
Hrododaktulos Eos, brododaktulos!)
Que Santo, Santo, Santo é o Ser Humano
Flecha partindo atrás de flecha eterna -
Agora e sempre, sempre, nunc et semper...

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poema

Nada saberei dizer de tuas agruras.
A fenda obscura de teu beijo cala;
é ironia pura.
Disfarça a dura pele que trazes
a sustentar a boca
cariada de desejos.

Lembrarei apenas a distraída forma
que contornou certa manhã meus desencontros.
E percorreu-me afoita a alma,
e num enlace torto, desvendou meus medos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Hilton Valeriano




O JANSENISTA

A promiscuidade dos séculos.
Estar morto e não sabê-lo.


PASCAL


Ser e não obstante sucumbir
ante razões que não justificam
a recusa de ser perecível.


CIRCUNSTÂNCIAS

Vês a aparente necessidade de todas as coisas?
Aceite-as em sua fragilidade essencial.

Acolhimento e recusa aguardam incautos andarilhos.

Vês a perplexidade de todos os fatos?
Aceite-os em sua precária alegria de ser.

Resignação e esquecimento aguardam altivos andarilhos.

Acaso reclamas os despojos de tua derrota?
Soma de nulidades!

Todas as circunstâncias são inelutáveis.


Hilton Valeriano. Formado em filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas. Residente em Hortolândia-SP. Tem poemas publicados nas revistas Zunái, Germina, Sibila, Jornal de Poesia, Veropoema, A Cigarra, Diversos e afins. Edita o blog Poesia Diversa:http://poesiadiversidade.blogspot.com

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

POMPEI


Foto: grávida - Pompéia


Revisito o silêncio das trevas.
Sonhos adormecidos,
desfeitos por gestos
que precedem a consciência.
Sigo nos séculos,
interrompido no ventre da mãe.
Restos calcinados,
dispersos, estremados,
entrecortados pelo espanto.
O Céu sabe das cinzas.
Sempre soube...
E aproveitou-se da inocência
dos que não me conheceram
para dizer que me negaram a existência
ao renegar o Deus, o Cristo.
O Céu, criação humana, é ilusório.
Não este céu furioso,
de fuligem e chamas;
este é terreno, pragmático,
irrespirável,
eficiente em devolver à Terra
suas entranhas.
Não este céu preciso,
entornando água,
moldando,
fazendo onipresente
o ventre que me gerou.
Estou onde não existo.
Persisto.
Desafio o intransponível tempo
nesse ventre vazio
que seu olhar disperso fita.
Parto contigo.
Em sua memória o calor da sombra que não fui.
Assim o caos, serenamente,
retingirá de verde o olhar baço.
Estou além do pretenso molde
que permaneceu guardado pela redoma de vidro.