“ O plural implícito de “se” e o plural confessado do “nós” constituem o refúgio confortável da existência falsa. Só o poeta assume a responsabilidade do “eu”, só ele fala em seu próprio nome, só ele tem o direito de fazê-lo. A poesia se degrada quando torna-se permeável à profecia ou à doutrina: a “missão” sufoca o canto, a idéia entrava o vôo. O lado “generoso” de Shelley torna caduca a maior parte de sua obra: Shakespeare, felizmente, nunca “serviu” para nada.
O triunfo da autenticidade tem seu acabamento na atividade filosófica, esta complacência no “se”, e na atividade profética (religiosa, moral ou política), esta apoteose do “nós”. A definição é a mentira do espírito abstrato; a fórmula inspirada, a mentira do espírito militante: uma definição encontra-se sempre na origem de um templo; uma fórmula reúne inelutavelmente os fiéis. Assim começam todos os ensinamentos.
Como não se voltar então para a poesia? Ela tem – como a vida – a desculpa de não provar nada.”
“ Escrever seria um ato insípido e supérfluo se pudéssemos chorar à vontade, e imitar as crianças e as mulheres tomadas pelo furor... Na matéria de que somos moldados, em sua mais profunda impureza, encontra-se um princípio de amargura que só as lágrimas suavizam. Se cada vez que os desgostos nos assaltam tivéssemos a possibilidade de nos livrar deles pelo pranto, as doenças vagas e a poesia desapareceriam. Mas uma reticência inata, agravada pela educação, ou um funcionamento defeituoso das glândulas lacrimais, condena-nos ao martírio dos olhos secos. Aliás, as tempestades de pragas, a automaceração e as unhas cravadas na carne, com as consolações de um espetáculo de sangue, não figuram mas entre nossos procedimentos terapêuticos."
O EQUIVOCO DO GÊNIO
“Toda inspiração procede de uma faculdade de exagero: o lirismo – e todo o mundo da metáfora – seria uma excitação lamentável sem esse ardor que incha as palavras até fazê-las estourar. Quando os elementos ou as dimensões do cosmo parecem demasiado reduzidos para servir de termos de comparação a nossos estados, a poesia só espera – para superar sua fase de virtualidade e de iminência – um pouco de claridade nas emoções que a prefiguram e a fazem nascer. Não há verdadeira inspiração que não surja da anomalia de uma alma mais vasta que o mundo ... No incêndio verbal de Shakespeare e de um Shelley, sentimos a cinza das palavras, resíduo e traço da impossível demiurgia. Os vocábulos se incrustam uns nos outros, como se nenhum pudesse alcançar o equivalente da dilatação interior; é a hérnia da imagem, a ruptura transcendente das pobres palavras, nascidas do uso cotidiano e alçadas milagrosamente às alturas do coração.
As verdades da beleza nutrem-se de exageros que, ante um pouco de análise, revelam-se monstruosos e ridículos. A poesia: divagação cosmogônica do vocabulário ... Já se combinou mais eficazmente o charlatanismo e o êxtase? A mentira, fonte das lágrimas!, esta é a impostura do gênio e o segredo da arte. Ninharias infladas até o céu; o inverossímil, gerador de universos! É que em todo gênio coexiste um marselhês e um Deus.”
Cioran E M. Breviário de decomposição; tradução de José Thomaz Brum. – Rio de Janeiro: Rocco, 2011.