Em uma de suas “cartas de viagem”, escritas ficcionalmente a si mesmo quando foi a Londres, Lisboa e Paris, Campos de Carvalho escreveu: “Sonho o livro inatingível (todos nós sonhamos) que eu mesmo venha a compreender na sua totalidade só muitos anos depois, e que me escape justamente porque ainda não estou preparado para entendê-lo mas apenas para escrevê-lo”. O que aqui está em questão é o escritor. O escritor e seu sonho de escrita. Seu sonho de escrita mostra que, para o escritor, a compreensão é sempre secundária em relação à escrita. À revelia do entendimento e de um nome para definir o indefinível, a escrita se realiza no renascimento de cada palavra que, no corpo da sintaxe criada, faz parecer estar sendo usada pela primeira vez, instaurando um sentido inesperado para o leitor, mesmo que este seja o escritor enquanto leitor de seu próprio texto. Com olhar estrangeiro, olhar uma terra, inexistente em qualquer mapa, a que, de repente, se chega sem saber como. O escritor nunca sabe aonde seu livro vai, a próxima linha que será traçada; muitas vezes disfarçado, entre uma linha e outra, entre uma frase e outra, entre uma palavra e outra, há um abismo.
Por ser a arte misteriosa, por ser um acesso ao mistério que vence sua resistência integrando-se a ele, para Campos de Carvalho, só faz sentido o sem sentido de que a linguagem é capaz no desancoramento de suas maneiras estabelecidas e do dado do real, tornados risíveis pela experiência da linguagem criadora. Sendo a palavra escrita a verdadeira palavra, o que importa é a primazia do escrever; a escrita provoca a leitura, seu tempo se impõe sobre o dela, obriga-a a novos caminhos e a sua feitura como criação, não o inverso: “Quem não tem tempo para escrever um livro não deve lê-lo – este é um dos provérbios que faltam ao meu livro de Provérbios – e com razão”. Leitor e escritor se confundem naquele que tem a criação por potência. Resguardando uma zona inapreensível, o livro supera a possibilidade de uma leitura necessariamente parcial; em uma entrevista, acerca de um livro que não terminou de ser escrito, com sua linguagem cheia de paradoxos, afirmou: “Assim como a 4ª Sinfonia de Charles Ivens exige a presença de três maestros para ser bem interpretada, assim também penso que esse meu novo livro, para ser bem compreendido, deva ser lido simultaneamente por três leitores”. Da escrita, que não acata mestres nem discípulos, mas o solitário autocolocar-se, advém a força de criação que a leitura, sofrendo seu impacto, terá de acolher, para, só então, com anos de convívio, tentar compreendê-la, ou, ainda melhor, imitá-la, recriá-la mais do que entendê-la – isto significa fazer da leitura uma obra que lance as palavras no não sentido de onde elas vieram para estar sempre a caminho de novos sentidos, de sentidos primeiros.
Escapando ao fotográfico ou realístico, seja do mundo ou do livro, escritor e leitor enxergam o real já permeável à fantasia, que, dele, libera novas potências. Deste modo, jogar com as palavras não é apenas jogar com as palavras, mas, sobretudo, jogar com o mundo, com a sorte, com o destino de escritor que se apoia no sonho de um livro inatingível que se encarna em todos os livros atingíveis, propiciando-os. Lidar com a forma pelo informe, com o sentido pelo não sentido, com o acabamento pelo inacabamento, misturando-os – injetar aí uma passagem. O dedicar-se a este livro já traz uma ética de crescimento da vitalidade, de uma vivificação, de certo exagero, de uma iluminação excessiva e um enriquecimento muito maior do que os habitualmente alcançados no cotidiano: “Você, que também busca esse livro, sabe que não jogo com as palavras e sim apenas com a sorte (un coup de dés...) e que já o simples fato de buscá-lo representa um enriquecimento interior, quase ia dizendo um deslumbramento, a exemplo do que ocorre com o alquimista diante da Grande Obra, ao mesmo tempo dentro e tão longe dela”.
Quando se tem em vista a Grande Obra, escrever é a luta do deslumbramento contra o desespero, a luta da vida contra a morte, a luta da gênese contra o apocalipse, a luta do enriquecimento interior contra o empobrecimento interior, a luta da empatia contra a antipatia, a luta da vocação contra a repugnância, a luta da admiração contra o tédio, a luta de uma promessa de felicidade contra a tristeza e o desinteresse. Escrever é aceitar uma dualidade que nos possui, tomando partido de um compromisso com o polo da alegria. A partir desta dualidade original, deste hiato que nos fende impondo-nos um vácuo no qual mergulhamos ou uma falta que nos constitui, a partir desta ranhura por onde passa o pensamento, a escrita consolida uma seletividade. Se trazemos em nós a corda da forca, a escrita é o privilégio de outra corda, que também trazemos em nós, lançada ao mar ao afogado para que ele não se afogue, para que ele saia vivo. A escrita é a corda ou o fio do pensamento que ousa passar pela frincha sem desprezar o polo reativo que a envolve, mas corroborando, ou mesmo inventando, com muito mais força, o polo afirmativo que a circunda.
Se um dos personagens narradores de Campos de Carvalho se diz possuído por um pessimismo doentio, “tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido”, escrever é, na gravidade da hora presente, o despertar do duplo que, submetendo o outro a sua potência afirmativa, desviará a bala da cabeça. Apesar de todos os riscos e temores, uma ética, portanto, interessada, a favor da vida, para conseguir estar mais à altura (ou à baixeza) dela, para conseguir chegar ao dia seguinte – o que já se constitui como uma promessa de alegria, como uma felicidade possível: “De volta ao quarto do hotel, ainda mais desesperado, punha-me a escrever cartas e mais cartas, a maior parte delas dirigidas a mim mesmo e sem nenhuma relação com meu desespero, como se apontasse um revólver contra o teto ou a lâmpada em vez de apontá-lo contra a minha cabeça. Bem ou mal, sobrevivi e continuo sobrevivendo – e só a você resolvi contar agora esse inferno íntimo em que me debati todo esse tempo, porque a conheço e sei igualmente possuída pelo demônio da eterna dúvida, que infelizmente para nós se confunde com a eterna certeza. Comecei esta carta à maneira de outras que escrevi sem destino nenhum, apenas para não morrer até o dia seguinte, e de novo até o dia seguinte”.
Não se trata de uma escrita confessional que escreveria o desespero vivido ou qualquer outro afeto previamente experimentado. O puro desespero não escreve; quem escreve é a espera – a esperança – que ainda reside no escritor mesmo durante o desespero, o não se assujeitar completamente a ele. Quem escreve é a saúde que resiste, a primazia da desintoxicação, o riso de um humor que se impõe sobre qualquer pessimismo. Quem escreve é o que não quer se entregar, que aposta, se não em algo mais, no vigor da escrita que alavanca o da vida e, mesmo, na soberania do escrever – libertário, anarquista – sobre o ser lido. Escrever é o alimento do escritor, que, com ele, ainda que temporariamente, deixa suas debilidades de lado apostando nas robustezas que o atravessam. A escrita: uma conquista de forças para remover o revólver da própria cabeça, direcionando-o a qualquer outro lugar; trata-se de uma arte do desvio, de, pela escrita, trocar o “inferno íntimo” por uma salvação possível fora de si (na escrita, onde o escritor se vê mais do que em si), por mais um dia, e mais um, e, renovadamente, mais um. Chegar ao dia seguinte pela escrita, a partir da qual a salvação não se dá pela certeza – finalmente – de um encontro apaziguador consigo ou da descoberta de uma verdade própria e pessoal, mas pela força conquistada para mergulhar um pouco mais tranquilamente na perdição que, constantemente, “cria verdades a torto e a direito, cada dia é uma verdade diferente, sem querer até que disse uma coisa que preste: cada dia uma verdade diferente”. A escrita: uma saída de emergência.
Se o vazio se faz presente por todos os lados, por cima, por baixo, por dentro, se a cratera e o buraco fundam a condição humana, mais do que nos incomodando, se “Posso ser um antecadáver, o abismo debaixo dos pés, mas recuso-me a ser enterrado em vida”, vale dizer que, diante do mais inquietante e terrífico, afirmando-o tragicamente, a arte é uma potência anticadavérica, de recusa ou adiamento da morte em vida, em nome de mais vida. Inventando verdades diferentes a cada instante, os momentos líricos são venenos para os vermes que nos querem devorar. Em uma entrevista, Campos de Carvalho afirma: “A arte é a única coisa em que se pode confiar nessa vida”. Confiar na arte, para confiar na vida. Em seu elogio nietzschiano, é o que diz Agamben, com a mesma intensidade de uma arte interessada, ou seja, vitalista: “A arte – para quem a cria – transforma-se em uma experiência cada vez mais inquietante, diante da qual falar de interesse é pelo menos um eufemismo, porque o que está em jogo não parece ser de maneira nenhuma a produção de uma bela obra, mas a vida ou a morte do autor ou, pelo menos, sua salvação espiritual”.
Por ser a arte misteriosa, por ser um acesso ao mistério que vence sua resistência integrando-se a ele, para Campos de Carvalho, só faz sentido o sem sentido de que a linguagem é capaz no desancoramento de suas maneiras estabelecidas e do dado do real, tornados risíveis pela experiência da linguagem criadora. Sendo a palavra escrita a verdadeira palavra, o que importa é a primazia do escrever; a escrita provoca a leitura, seu tempo se impõe sobre o dela, obriga-a a novos caminhos e a sua feitura como criação, não o inverso: “Quem não tem tempo para escrever um livro não deve lê-lo – este é um dos provérbios que faltam ao meu livro de Provérbios – e com razão”. Leitor e escritor se confundem naquele que tem a criação por potência. Resguardando uma zona inapreensível, o livro supera a possibilidade de uma leitura necessariamente parcial; em uma entrevista, acerca de um livro que não terminou de ser escrito, com sua linguagem cheia de paradoxos, afirmou: “Assim como a 4ª Sinfonia de Charles Ivens exige a presença de três maestros para ser bem interpretada, assim também penso que esse meu novo livro, para ser bem compreendido, deva ser lido simultaneamente por três leitores”. Da escrita, que não acata mestres nem discípulos, mas o solitário autocolocar-se, advém a força de criação que a leitura, sofrendo seu impacto, terá de acolher, para, só então, com anos de convívio, tentar compreendê-la, ou, ainda melhor, imitá-la, recriá-la mais do que entendê-la – isto significa fazer da leitura uma obra que lance as palavras no não sentido de onde elas vieram para estar sempre a caminho de novos sentidos, de sentidos primeiros.
Escapando ao fotográfico ou realístico, seja do mundo ou do livro, escritor e leitor enxergam o real já permeável à fantasia, que, dele, libera novas potências. Deste modo, jogar com as palavras não é apenas jogar com as palavras, mas, sobretudo, jogar com o mundo, com a sorte, com o destino de escritor que se apoia no sonho de um livro inatingível que se encarna em todos os livros atingíveis, propiciando-os. Lidar com a forma pelo informe, com o sentido pelo não sentido, com o acabamento pelo inacabamento, misturando-os – injetar aí uma passagem. O dedicar-se a este livro já traz uma ética de crescimento da vitalidade, de uma vivificação, de certo exagero, de uma iluminação excessiva e um enriquecimento muito maior do que os habitualmente alcançados no cotidiano: “Você, que também busca esse livro, sabe que não jogo com as palavras e sim apenas com a sorte (un coup de dés...) e que já o simples fato de buscá-lo representa um enriquecimento interior, quase ia dizendo um deslumbramento, a exemplo do que ocorre com o alquimista diante da Grande Obra, ao mesmo tempo dentro e tão longe dela”.
Quando se tem em vista a Grande Obra, escrever é a luta do deslumbramento contra o desespero, a luta da vida contra a morte, a luta da gênese contra o apocalipse, a luta do enriquecimento interior contra o empobrecimento interior, a luta da empatia contra a antipatia, a luta da vocação contra a repugnância, a luta da admiração contra o tédio, a luta de uma promessa de felicidade contra a tristeza e o desinteresse. Escrever é aceitar uma dualidade que nos possui, tomando partido de um compromisso com o polo da alegria. A partir desta dualidade original, deste hiato que nos fende impondo-nos um vácuo no qual mergulhamos ou uma falta que nos constitui, a partir desta ranhura por onde passa o pensamento, a escrita consolida uma seletividade. Se trazemos em nós a corda da forca, a escrita é o privilégio de outra corda, que também trazemos em nós, lançada ao mar ao afogado para que ele não se afogue, para que ele saia vivo. A escrita é a corda ou o fio do pensamento que ousa passar pela frincha sem desprezar o polo reativo que a envolve, mas corroborando, ou mesmo inventando, com muito mais força, o polo afirmativo que a circunda.
Se um dos personagens narradores de Campos de Carvalho se diz possuído por um pessimismo doentio, “tal como um xifópago que de repente se dispusesse a meter uma bala na cabeça sem ao menos consultar seu companheiro adormecido”, escrever é, na gravidade da hora presente, o despertar do duplo que, submetendo o outro a sua potência afirmativa, desviará a bala da cabeça. Apesar de todos os riscos e temores, uma ética, portanto, interessada, a favor da vida, para conseguir estar mais à altura (ou à baixeza) dela, para conseguir chegar ao dia seguinte – o que já se constitui como uma promessa de alegria, como uma felicidade possível: “De volta ao quarto do hotel, ainda mais desesperado, punha-me a escrever cartas e mais cartas, a maior parte delas dirigidas a mim mesmo e sem nenhuma relação com meu desespero, como se apontasse um revólver contra o teto ou a lâmpada em vez de apontá-lo contra a minha cabeça. Bem ou mal, sobrevivi e continuo sobrevivendo – e só a você resolvi contar agora esse inferno íntimo em que me debati todo esse tempo, porque a conheço e sei igualmente possuída pelo demônio da eterna dúvida, que infelizmente para nós se confunde com a eterna certeza. Comecei esta carta à maneira de outras que escrevi sem destino nenhum, apenas para não morrer até o dia seguinte, e de novo até o dia seguinte”.
Não se trata de uma escrita confessional que escreveria o desespero vivido ou qualquer outro afeto previamente experimentado. O puro desespero não escreve; quem escreve é a espera – a esperança – que ainda reside no escritor mesmo durante o desespero, o não se assujeitar completamente a ele. Quem escreve é a saúde que resiste, a primazia da desintoxicação, o riso de um humor que se impõe sobre qualquer pessimismo. Quem escreve é o que não quer se entregar, que aposta, se não em algo mais, no vigor da escrita que alavanca o da vida e, mesmo, na soberania do escrever – libertário, anarquista – sobre o ser lido. Escrever é o alimento do escritor, que, com ele, ainda que temporariamente, deixa suas debilidades de lado apostando nas robustezas que o atravessam. A escrita: uma conquista de forças para remover o revólver da própria cabeça, direcionando-o a qualquer outro lugar; trata-se de uma arte do desvio, de, pela escrita, trocar o “inferno íntimo” por uma salvação possível fora de si (na escrita, onde o escritor se vê mais do que em si), por mais um dia, e mais um, e, renovadamente, mais um. Chegar ao dia seguinte pela escrita, a partir da qual a salvação não se dá pela certeza – finalmente – de um encontro apaziguador consigo ou da descoberta de uma verdade própria e pessoal, mas pela força conquistada para mergulhar um pouco mais tranquilamente na perdição que, constantemente, “cria verdades a torto e a direito, cada dia é uma verdade diferente, sem querer até que disse uma coisa que preste: cada dia uma verdade diferente”. A escrita: uma saída de emergência.
Se o vazio se faz presente por todos os lados, por cima, por baixo, por dentro, se a cratera e o buraco fundam a condição humana, mais do que nos incomodando, se “Posso ser um antecadáver, o abismo debaixo dos pés, mas recuso-me a ser enterrado em vida”, vale dizer que, diante do mais inquietante e terrífico, afirmando-o tragicamente, a arte é uma potência anticadavérica, de recusa ou adiamento da morte em vida, em nome de mais vida. Inventando verdades diferentes a cada instante, os momentos líricos são venenos para os vermes que nos querem devorar. Em uma entrevista, Campos de Carvalho afirma: “A arte é a única coisa em que se pode confiar nessa vida”. Confiar na arte, para confiar na vida. Em seu elogio nietzschiano, é o que diz Agamben, com a mesma intensidade de uma arte interessada, ou seja, vitalista: “A arte – para quem a cria – transforma-se em uma experiência cada vez mais inquietante, diante da qual falar de interesse é pelo menos um eufemismo, porque o que está em jogo não parece ser de maneira nenhuma a produção de uma bela obra, mas a vida ou a morte do autor ou, pelo menos, sua salvação espiritual”.
Texto originalmente publicado no livro O amante da literatura e reproduzido no Portal Cronópios de Literatura
Alberto Pucheu é poeta e professor de Teoria Literária da UFRJ. Entre vários livros, acaba de publicar O amante da literatura (Ed. Oficina Raquel), que contém o texto aqui publicado.
E-mail: apucheu@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário