“É preciso falar da criação como trançando seu caminho entre impossibilidades...
A criação se faz em gargalos de estrangulamento. Se um criador não é agarrado pelo pescoço por um conjunto de impossibilidades, não é um criador. Um criador é alguém que cria suas próprias impossibilidades, e ao mesmo tempor cria um possível. É preciso lixar a parede, pois sem um conjunto de impossibilidades não se terá essa linha de fuga, essa saída que constitui a criação, essa potência do falso que constitui a verdade. É preciso escrever líquido ou gasoso, justamente porque a percepção e a opinião ordinária são sólidas, geométricas. Nada de abandonar a terra. Mas tornar-se tanto mais terrestre quanto se inventa leis do líquido e do gasoso de que a terra depende. O estilo, então, tem necessidade de muito silêncio e trabalho para produzir um turbilhão no mesmo lugar, depois, lança-se como um fósforo que as crianças vão seguindo na água da sarjeta. Pois certamente não é compondo palavras, combinando frases, utilizando ideias que se faz um estilo. É preciso abrir as palavras, rachar as coisas, para que se liberem vetores que são os da terra. Todo escritor, todo criador é uma sombra. Como fazer a biografia de Proust ou Kafka? A partir do momento em que se escreve, a sombra é primeira em relação ao corpo. A verdade é da ordem da produção de existência. Não está dentro da cabeça, é algo que existe. O escritor emite corpos reais. No caso de Pessoa são personagens imaginários, não tão imaginários, porque ele lhes dá uma escrita, uma função. Mas ele sobretudo não faz, ele mesmo, o que os personagens fazem. Não se pode ir longe na literatura com o sistema "Viajamos e vimos muito", onde o autor primeiro faz as coisas e em seguida relata. O narcisismo dos autores é odioso porque não pode haver narcisismo de uma sombra. Então a entrevista acabou. O que é grave, não é atravessar o deserto, tendo a idade e a paciência para isto; grave é para os jovens escritores que nascem no deserto, porque correm o risco de verem sua empreitada anulada antes mesmo que aconteça. E no entanto, é impossível que não nasça a nova raça de escritores que estão aí para os trabalhos e estilos.”
Fragmento de entrevista de Gilles Deleuze
(L´Autre Journal, outubro de 1985)
in: Conversações -Gilles Deleuze - editora 34
3 comentários:
EXCELENTE!
Criar, a partir das rasuras da impossibilidade. É preciso abrir as palavras, quem sabe submetê-las ao fogo.
Gostei muito, espero que mais e mais escritores o leiam!
Uma verdadeira aula de MESTRE!
Abraços!
Mirze
Maravilhoso o texto, menino! E aí fico pensando criar é, de antemão, acreditar que o impossível pode ficar visível de alguma forma.
Textaço!
Beijos,
Um dos grandes pensadores franceses do século XX!
Postar um comentário