Acostumei-me a tomar o café da manhã na
janela da cozinha, ouvindo os bem-te-vis. Um retorno à infância, no parque
Moscoso, entre árvores e lagos tortuosos, ainda sem muros e assaltos.
Lembro-me das idiossincrasias... Das
tartarugas marinhas, esbaforidas, enormes, não entendendo a falta de sal
naquelas águas paradas, cheias de marrecos e gansos.
Mas o que
mais me intrigava, criança ainda, desconhecedor do saudosismo dos primeiros
imigrantes europeus, foi ter que substituir em meu imaginário, os
canários-da-terra, e sua plumagem amarelo-canarinho – isso em plena copa de 70
–, que me acostumei a admirar na fazenda do meu pai, pelos tons pastel dos
pardais. Aquela variação de cinza e marrom podia ser uma camuflagem adequada à
falta de biodiversidade dos bosques e cidades europeias, mas dava um tom meio
insosso às minhas manhãs. Se bem que eles eram engraçadinhos com seus saltos e
ousadias...
Passaram-se
longos anos e com eles sumiram os canários. Pássaro perseguido por seu canto e
plumagem, preso em gaiolas (que muitas vezes eram mantidas abertas para entrada
e saída dos casais que sempre retornavam para alimentar seus filhotes).
Recentemente,
com um certo “adestramento” de meus iguais, os canários repovoaram as cidades
do interior. Isso me deu até a ideia de conversar com os órgãos responsáveis
sobre se seria possível trazer alguns casais para a ilha de Vitória ...
Hoje, vim
mais cedo para o trabalho, parei em frente ao hortomercado e fiquei surpreso
quando vi dois filhotes de canário brincando em meio à ansiedade dos carros no
sinal vermelho. Fiquei preocupado: vai que alguém atropela aqueles jovens
indefesos ...
Então observei o macho adulto, com a
sua plumagem amarelo-vivo e cabeça vermelha, sair de um fio elétrico e
arrebanhar suas crias. Surpreso, vi esverdear o sinal, e tive que cruzar a
avenida.
Andei, talvez uns 50 metros , pensando, que
mesmo com o passar o tempo, a cor amarela do canário permaneceu entranhada em
mim.
Mas lá estava ele, interrompendo
meus devaneios, com um tom pardacento sem vida, fugindo aos saltos, da marquise
do prédio que começava a ser lavada. Só
que desta feita já não era um pardal e sim um homem que recolhia, torporoso, um colchão aos farrapos. Lá estava ele,
o usuário de crack, para me lembrar o quão fragmentada é a esperança e que a
realidade vestiu de cinza nossa cidade.
Vitória, 10 de agosto de 2012
Jorge Elias Neto
Um comentário:
Minha mãe sempre diz que as pessoas não percebem o quanto a cidade está triste, violenta. Uma cidade sem aconchego. Mas digo a ela que as pessoas percebem, sim,essa tristeza, e que talvez busquem, nos ricos alimentos, ou no quanto conseguem de algum alimento, para sobreviverem,os seus oásis de cores entre os cinzas.
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