quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

EPIFANIA ( breves palavras sobre o tempo)


Esse amanhã,
com cheiro de saudade,
roubou a cena de hoje.


segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

O vai-e-vem da esperança


Ilustração "Morro de Vitória": Lorena Elias


A cidade cresce, se descaracteriza, fica cinza.
Os faróis dos carros só são belos nas fotos noturnas com longa exposição do diafragma – se disfarçam em fachos luminosos.
Os indivíduos não se apercebem, é massa disforme à espera do sinal verde que chega e parte sem que eles saiam do lugar.
Sou mais um, mas insisto em olhar em volta, pro lado, ser chamado de desatento, esbarrar nas calçadas. Não me arrependo.
E foi por ser assim que olhei para cima.
No morro, um mundaréu de casas, tão juntas como uma corda de caranguejos postos à venda nas calçadas – cinzas e sufocadas.
Fui olhando cada vez mais alto, e na iminência do azul, em uma imprevista descontinuidade entre as casas, eu vi balangando uma criança alada.
Ela estava lá, com seu balanço, alheia aos casuísmos, estatísticas, caos, fatalidades... Indo e vindo sobre as malfadadas casas.
Pêndulo de minha vida! Chuta pro alto, com seus pés meu desassosego!
Um beijo criança... Mil beijos! Estremece o Morro; seja o centro gravitacional de seu Universo; desmente nesse segundo as verdades do Absoluto!
Abriu o sinal...
Despeço-me da criança, pois tardar não posso (podia ser um pouco pior o trânsito em minha cidade).
Ao menos agora sei que naquele sinal existe a árvore com seu balanço. Sei que ali encontrarei, quem sabe outra vez, alguma criança a pincelar de verde um sinal de esperança para os que tentarem vislumbrar o céu.

* Para quem quiser ver o menino, é só parar no sinal de entrada da terceira ponte, na Avenida Desembargador Santos Neves, no sentido Praia do Canto – Centro, ao lado do posto da Shell. Bem no alto do morro está a arvore com seu balanço.


Para todos os amigos que desça, sobre todos, o olhar de nossas crianças.

Forte abraço nestes dias de festa,


Jorge

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

José Augusto Carvalho


PRESENTE DE NATAL

José Augusto Carvalho




Quando eu soube que Jesus nasceu em março, antes de Cristo, e que o dia 25 de dezembro foi fixado pela Igreja no ano 525 para cristianizar festas pagãs em homenagem ao deus Mitra, adorado em Roma, apesar de persa, senti que o Natal havia perdido para mim grande parte do que ainda tem de divino. Senti-me enganado não mais na minha fé, que já a havia perdido, mas na minha devoção a um líder carismático que tinha a pureza de um Gandhi ou de uma Madre Teresa de Calcutá e a santidade de um Dalai-Lama ou de um Francisco Cândido Xavier
O Natal teria virado uma farsa, não fosse o milagre das crianças que acreditam em Papai Noel. São elas que ainda dão ao Natal o espírito cristão que falta na maioria das religiões que cultuam Cristo.
Mudou o Natal e mudei eu – respondo à pergunta do soneto de Machado de Assis. Mudamos todos, mas seria bom que o Natal, mesmo com sua origem pagã, não mudasse nunca, que fosse sempre um Natal para a criança que temos dentro de nós. As crianças não estão interessadas apenas nos brinquedos de Papai Noel. As crianças vivem a magia do Natal que ainda tem, sequer para elas, aquela aura de religiosidade, de esperança e de fé.
Quando visitava o campo de concentração de Auschwitz, o Papa Bento XVI perguntou onde estava Deus, que permitira tudo aquilo. Embora tal pergunta não devesse ser formulada por um líder cristão, ela procede: onde estava Deus que permitiu sagrar-se Papa um inquisidor que calou a voz de um intelectual e sacerdote como Leonardo Boff?
Diz a Bíblia (Gen. 2: 2-3) que Deus fez o mundo em seis dias e no sétimo descansou. Não sei se um Deus de verdade se cansa, mas, se a Bíblia diz a verdade, acho que é por ainda estar descansando que Deus não viu o holocausto, não viu eleger-se um Papa censor reacionário, não viu as guerras entre os homens, não viu o fim das torres gêmeas, não viu homens armados massacrarem jovens estudantes em escolas, não viu a invasão do Iraque pelo maior de todos os terroristas do mundo moderno, nem vê a violência crescente no nosso quotidiano...
Seria bom que o presente de Natal para todos os homens deste mundo fosse o fim do descanso de Deus...



Escritor, tradutor, jornalista e professor universitário, José Augusto Carvalho é mineiro de nascimento e capixaba por adoção.
Um dos principais lingüistas do Brasil.Bacharel e licenciado em Letras Neolatinas, também é mestre em Lingüística pela Unicamp e doutor em Letras pela USP. Atua principalmente como professor, mas traduz desde a década de 1970 textos do francês, inglês e italiano. Possui uma extensa obra publicada tendo também realizado traduções para as principais editoras do País.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Carlos Drummond de Andrade


A Máquina do Mundo

Carlos Drummond de Andrade


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste... vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.


Este poema fica aquí para todos os apreciadores de Drummond.
Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Memorial da língua


Esta língua que te invade
é do mundo.

Esta língua que te cobre;
cuspida e engolida por muitos.

Sou tua mãe incestuosa;
metade digerida do fruto.

A toxidez, o divino
que ouviste no útero.

Acompanho-te vida a fora;
tua maldita consciência.

Sou tua aura de incertezas,
causa de tuas mortes.

Sou indecente, protuberante;
o arrebatamento do grito arremessado.

Sou o princípio e o fim;
parte do gozo.

A primitiva interjeição,
o deslumbramento, a eternidade.

Trago-te o gosto dos séculos.
Sou tua memória.

Sou comprida, ágil, afiada.
Lembro-te todas as palavras vãs.

Sou o vício evanescente.
Afetada e mansa.

Acordo e vivo contigo.
E, quando partes, me disperso com a bruma de tua alma.


MINHA HOMENAGEM AO ESPIRITO DA LINGUAGEM