Luiz Guilherme Santos Neves
- Sonhos
são rios. Eu me afogo neles - ela disse, enquanto a tarde morria num mar de
cobre.
- Eu não sonho - disse ele. – Sou seco de sonhos.
-
Impossível! Você deve sonhar e não lembrar quando acorda. Até os animais sonham
– replicou ela. - Eu tive uma cadelinha que gania quando sonhava. Chegava a dar
pena ver a bichinha dormindo e sofrendo. Mas nem assim eu tinha coragem de
acordá-la.
Ele
pareceu não a ter ouvido, o olhar perdido no mar que entardecia. Estavam no
deck de um restaurante, diante do oceano incrível e cúpreo, ela bebendo um
refrigerante que puxava da garrafa por um canudinho, ele saboreando uma cerveja
gelada em goles espaçados.
-
Meus sonhos costumam ser estranhos – continuou ela. – Uma vez sonhei que eu não
fui reconhecida por minha mãe.
-
Era mesmo sua mãe quem não a reconheceu? – perguntou ele.
-
Era. Eu me aproximei dela e disse ‘mãe’! Ela me olhou com um jeito estranho e
fuzilou: ‘você não é a minha filha’. Ainda me lembro das suas palavras, secas e
cortantes. Ela não disse que não tinha filha, nem que não estava me
reconhecendo. Foi categórica. Me olhou e disse: ‘você não é a minha filha”. Portanto, ela sabia que tinha uma filha, mas
que esta filha não era eu, muito embora eu soubesse que ela era a minha mãe.
Acordei chorando e repetindo, mãe, sou sua filha, sou sua filha! Foi assim que
descobri que os sonhos são rios em que a
gente se afoga.
-
Já ouvi dizer que são nuvens... – disse ele, embocando outro gole de cerveja.
Ela
agora pareceu não ter ouvido. Mas depois
de alguns instantes, confirmou sua teimosia: - Para mim são rios. A gente fica
muitas vezes com o corpo molhado, quando sonha. Comigo já aconteceu acordar com
a pele úmida. Uma nuvem não faz isso. Os rios fazem!
- Os sonhos bons também são rios? – perguntou
ele.
-
Também. Eles causam uma sensação de prazer, e não de dor como os maus, mas
quando a gente acorda, eles se foram como as águas de um rio que não podem ser
retidas, nem retornadas, deixando apenas lembranças.
-
Mas são lembranças boas, não é? – indagou ele com espuma de cerveja branqueando
os fios do bigode.
-
São lembranças líquidas, entende o
que eu tento dizer? Porque é assim que eu as sinto.
-
E os sonâmbulos, você acha que eles sonham que navegam enquanto andam?
-
Com os sonâmbulos eu acho que é diferente... Se eles sonham e andam, eles
tornam seus sonhos possíveis, mecanicamente possíveis, ainda que momentâneos.
Com eles os sonhos se processam fisicamente, pelo menos é o que eu penso.
Então, para mim, os sonâmbulos são os próprios rios... Os rios dos sonhos
deles, o que não é a mesma coisa que sonhar deitado,
com o sonho-rio invadindo a nossa mente, como acontece com toda gente...
menos com você, é claro. Eu sei que é complicado explicar, mas
ainda assim, no caso dos sonâmbulos, os sonhos continuam sendo rios, da forma
como eu vejo a coisa, você me entende...?
- Não é fácil entendê-la apesar do esforço da
explicação. Lembre-se de que eu não sonho... A minha experiência em matéria de
sonhos é uma lacuna triste – disse ele, pedindo outra cerveja ao garçom.
-
Então vamos supor – disse ela, querendo levá-lo à compreensão do que estava
expondo. - Vamos supor que o que está se passando aqui, entre nós dois, fosse
apenas um sonho, um sonho seu, ou nosso... Por favor, não ria.
- Sabemos
que não é sonho... – disse ele, rindo. – Estamos aqui terminando o nosso
encontro num restaurante, há umas poucas pessoas concretamente à nossa volta, a minha cerveja acabou e eu pedi
outra, o seu canudinho já está dobrado dentro da garrafa, esta mesa em que
estamos é dura e sólida – e bateu no tampo de madeira com o fundo do copo para
confirmar suas palavras. – Ouça: dura como a realidade...
-
E o mar? Você não mencionou o mar... – ela desdenhou desafiadora.
-
Então ponha também o mar neste cenário...
-
No entanto, se você observar com atenção vai ver que o mar visto daqui onde nós
estamos, neste apagar de tarde, parece absurdamente irreal, imobilizado e plano
em sua cor afogueada... Não lhe parece esquisito?
-
Este pormenor tem para você algum sentido onírico? – ironizou ele.
- É apenas
um acréscimo em favor da proposta que eu lhe fiz. Deixe de lado o seu espírito
lógico, que o impede de sonhar, e admita, por um momento, um momento mínimo,
que a realidade em que nós estamos não exista. Faça um esforço, um grande
esforço, meu amigo. Feche os olhos se quiser e me responda: se você acordasse
deste sonho imaginário o que você acha que teria ficado da realidade que nos
envolve e que também somos eu e você?
-
A sensação de um rio que passou? – perguntou ele, sabendo que era a resposta
que ela desejava ouvir.
-
Exatamente. A sensação de um rio que passou. A abstrata matéria dos sonhos ou a
“imatéria” deles – disse ela convicta das suas metafísicas. – Nós, que aqui
estamos, é como se fizéssemos parte das águas de um rio, o rio dos sonhos! Nada
mais do que isto, percebe o que quero dizer?
Ele
disse que sim para não a contrariar. E em silêncio ficaram contemplando o mar,
em sua planura metálica, engolir a tarde numa bocada derradeira.